04 Julho 2022
"O crime instalou-se tão profundamente na sociedade que parece até que impôs não ser incomodado e exigiu não ser reprimido."
O comentário é de Flávio Tavares, professor aposentado da Universidade de Brasília - UnB, escritor, autor de seis livros, dois deles, Memórias do Esquecimento (Porto Alegre: L&PM, 2012) e O dia em que Getúlio matou Allende (Porto Alegre: L&PM, 2014), receberam o Prêmio Jabuti de Literatura, em artigo publicado por O Estado de S. Paulo, 01-07-2022. O texto foi enviado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
O título acima busca ser uma advertência, pois, em verdade, o crime instalou-se tão profundamente na sociedade atual que parece até que impôs não ser incomodado e exigiu não ser reprimido. O crime nos controla. Saímos à rua cuidando que não nos assaltem e só os mais ousados se atrevem a atender uma chamada do telefone celular ao andar pela calçada.
E cada dia caminhamos menos pelas calçadas, por temor dos assaltos. Sair em automóvel já não nos assegura proteção, pois podem roubar o carro a mão armada…
Aquela madrugada de terror em Araçatuba, no interior paulista, tempos atrás, foi apenas o modelo inicial do que se está construindo, que são o desdobramento da violência e sua aceitação por cada um de nós. O pior e mais nocivo é quando a violência chega às decisões judiciais. Por acaso, não foi assim que, em Santa Catarina, uma juíza se negou a ordenar o aborto numa menina grávida de 10 anos de idade, estuprada por um menino de 13, e ainda a mandou para um abrigo distante da casa materna? Como “prêmio”, a juíza foi promovida, mesmo sendo autora de decisão que reúne todas as facetas do horror.
Não é preciso descrever as diárias matanças de rua em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em outras cidades, em que bandidos e policiais disputam entre si o “direito de matar”. Os fatos aparecem nos jornais diariamente. Chegamos a criar, até, a expressão “bala perdida” para descrever uma situação em que matar não tem autores, mas apenas vítimas.
A bandidagem e o crime se infiltraram no aparelho governamental e, até, na religiosidade popular, com a livre criação de pseudo “igrejas” destinadas, mais do que tudo, a arrecadar dinheiro falsamente em nome de Deus. Certas vezes, ambas situações se reúnem, como se viu na prisão, pela Polícia Federal, do ex-ministro da Educação Milton Ribeiro e de dois “pastores” de igreja pentecostal, aparentemente envolvidos em corrupção.
Ao surgirem indícios de corrupção quando Milton Ribeiro era ministro, o presidente Bolsonaro o defendeu dizendo que, por ele, colocava “a cara no fogo”, não apenas as mãos, como no refrão popular. Vinda do presidente da República, a frase significava a antecipada absolvição do ministro. Depois, investigação da Polícia Federal levou o ex-ministro à prisão, que, mesmo revogada por um desembargador, não apaga o crime.
Nada disso, porém, define o desdém do governo atual pela paz e segurança dos brasileiros como as execuções do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na Amazônia.
Reservo-me à Amazônia porque lá o crime se multiplica em si mesmo e o assassinato é uma forma de expandir o narcotráfico e a devastação de rios com mercúrio e de florestas que regulam o clima.
O assassinato de Bruno e Dom teve requintes de crueldade mórbida. Mortos em emboscada, os corpos foram esquartejados e a lancha em que viajavam, afundada nas profundezas do Rio Itacoaí.
Nada disso, porém, supera a crueldade maior tornada pública pelo presidente Jair Bolsonaro ao avaliar por que ambos foram mortos. Ou que outra interpretação podem ter as palavras do presidente da República? Bolsonaro disse textualmente que o jornalista britânico era “malvisto” porque “fazia muitas matérias contra garimpeiros, questão ambiental” e, “naquela região isolada, muita gente não gostava dele”.
Não será isso transformar a vítima em algoz e carrasco de si próprio? Ou é crime atuar em favor da preservação do meio ambiente?
Na Amazônia, o assassinato de defensores da natureza não surgiu agora. A missionária católica norte-americana Dorothy Stang foi morta em 2005. Antes dela, em 1988, mataram Chico Mendes e mais de outros 20 sertanejos protetores das florestas.
Jamais, porém, qualquer autoridade sequer tinha culpado a vítima. O novo e preocupante, agora, é o próprio presidente da República dizer o que disse, como se buscasse justificar o crime e a devastação da Amazônia.
Nos primeiros cinco meses de 2022, foram derrubados 3.360 km² de florestas na Amazônia, cifra espantosa e descomunal em apenas 151 dias, mas que deverá crescer ainda mais com a redução das chuvas na região, a partir de junho e julho. Trata-se da maior área desmatada na Amazônia nos últimos 16 anos.
Calcula-se que a devastação da Mata Atlântica aumentou 66% de 2020 a 2021, crescendo ainda em maior ritmo neste 2022.
Em verdade, trata-se de assunto de segurança nacional, para usar expressão corriqueira na proteção das fronteiras do País. No caso da devastação da Amazônia e da Mata Atlântica, trata-se das fronteiras da vida no planeta inteiro.
Por que não preparar as Forças Armadas para isso e levá-las a proteger a natureza e a vida em si?
Seria, ao menos, mais altruísta do que culpar as vítimas, pois o crime já não comandaria tudo! Não toco sequer nos dois crimes sociais – a fome e o desemprego – num país em que (na faixa de 18 a 29 anos) há quase 8 milhões sem emprego.
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Cultuar o crime comanda tudo. Artigo de Flávio Tavares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU