04 Julho 2022
"É cedo para dizer se as manifestações destes dias são a semente de um protesto mais estruturado, mas não há dúvida de que temos denominadores comuns: o desespero coletivo pela situação econômica e o roubo de recursos, a frustração pelos acordos políticos não alcançados, a exigência de uma mudança. Acima de tudo, são protestos liderados por jovens que há dez anos assistem ao fracasso das promessas da revolução de 2011. A esperança para o futuro próximo é que as instâncias desses protestos do leste, sul e oeste da Líbia consigam convergir e impelir a classe política à mudança. O realismo, no entanto, diz que é muito mais provável que essas manifestações sejam o prelúdio da próxima guerra civil", escreve Francesca Mannocchi, em artigo publicado por La Stampa, 03-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um grupo de manifestantes atacou e incendiou a sede regional do Ministério das Finanças de Sebah, em Misurata os cidadãos atacaram a sede do Conselho Municipal, em Trípoli os grupos armados leais ao governo dissolveram as manifestações com tiros contra as pessoas, em Sirte as pessoas saíram às ruas com as bandeiras verdes, aquelas de Kadafi. A algumas centenas de quilômetros, em Bengasi, no leste do país, foram incendiadas as imagens de seu filho Saif al Islam Kadafi. Desde a última sexta-feira, grupos de manifestantes invadiram e incendiaram a sede do parlamento da Cirenaica, em Tobruk.
Esta é o resumo das notícias das últimas semanas líbias, eventos que parecem, por um lado, levar o país de volta dez anos, e por outro, trazê-lo de volta - pela enésima vez desde 2014 - à beira de um conflito armado.
A história do país ensina que as evoluções e os tropeços da vida política estão ligados ao petróleo e que o petróleo está ligado às atividades das milícias armadas. Os eventos deste verão líbio seguem, infelizmente, o mesmo roteiro.
Na sexta-feira, a NOC, a National Oil Corporation da Líbia, declarou estado de força maior nas exportações de petróleo após semanas de protestos gerados pela divisão na classe política líbia sobre quem deveria governar o país.
A disputa, hoje, é entre Fathi Bashaga, o primeiro-ministro nomeado pelo parlamento no início deste ano, e o primeiro-ministro Abdul Hamid Dbeibah, nomeado no ano passado por meio de um processo apoiado pelas Nações Unidas. Dbeibah, de acordo com o processo de paz inaugurado em 2020, deveria ter desempenhado seu papel interino até as eleições de dezembro que, no entanto, nunca foram realizadas, e hoje, uma vez que o processo de paz fracassou, ele se recusa a entregar o poder. Assim, o parlamento com sede no leste alegou que o governo de unidade provisória de Abdul Hamid Dbeibah havia expirado e nomeou Fathi Bashagha para substituí-lo.
O conflito entre os dois governos deu origem a intensos combates entre as milícias influentes na parte ocidental do país, por um lado a Brigada Nawasi, leal a Bashaga, pelo outro a Força de Apoio à Estabilidade, que apoia Abdul Hamid Dbeibah.
Assistindo, mais uma vez, as Nações Unidas que, após o fracasso do processo de paz de Genebra 2020, após o não acordo no início de junho durante as conversações realizadas no Cairo, na quinta-feira passada afirmaram que as negociações entre as facções rivais não conseguem resolver as diferenças e as visões distantes sobre o futuro do país.
Assim, mais uma vez, a Líbia continua dividida ao meio e tem dois parlamentos. Uma parte do país está sob o controle de Fathi Bashaga, apoiado pelo Parlamento com sede na Cirenaica, em Sirte, no leste da Líbia, outra parte sob o controle de Dbeibah com sede em Trípoli.
No meio, os cidadãos e a riqueza líbia – o petróleo - ameaçada pelas milícias que bloquearam poços e refinarias.
Nos últimos meses, as condições de vida dos líbios pioraram muito, assim como a frustração de um país que vive de gás e petróleo e deve acertar as contas com uma crônica falta de combustível.
Alguns dos principais terminais de petróleo foram fechados desde abril passado, e a National Oil Corporation registrou perdas de mais de US$ 3,5 bilhões. O bloqueio tinha o objetivo de cortar as principais receitas do Estado do primeiro-ministro Dbeibah, que novamente se recusou a renunciar.
Na quinta-feira, o presidente da NOC, Mustafa Sanalla, falando à imprensa líbia, disse ter tentado de todas as maneiras evitar a declaração de um estado de força maior, mas as condições haviam se tornado insustentáveis em todo o Golfo de Sirte, nos terminais de Sidra. Ras Lanuf, além do campo Al-Feel, e Brega e Zueitina. Devido aos bloqueios, a National Oil Corporation deixou de prestar fornecimento às centrais elétricas Zuetina, Benghazi e Sarir, devido à ligação entre a produção de petróleo bruto e gás dos campos das empresas Waha e Mellitah, que levou à falta de abastecimento de gás natural no gasoduto costeiro.
Significa nada de petróleo e nada de gás nas refinarias, nada de exportações e nada de eletricidade para os cidadãos. Acima de tudo, significa que não há receitas com a venda dos recursos energéticos dos quais toda a economia líbia depende. Com as receitas do petróleo são pagos os salários dos funcionários públicos, são financiadas as infraestruturas, os geradores de eletricidade utilizados por cidadãos e hospitais e os preços dos bens de primeira necessidade, como o pão. "O petróleo é a linfa vital dos líbios - disse Mustafa Sanalla após declarar estado de força maior - e é usado como moeda de troca, isso é um pecado imperdoável."
Não é a primeira vez que isso acontece, nem é a primeira vez que Sanalla denuncia que os poços e refinarias estão sob constante ameaça das milícias, os grupos armados que há anos fazem da segurança da infraestrutura uma arma de chantagem no plano político.
Os protestos nas últimas semanas paralisaram novamente as exportações de petróleo, enquanto o mercado está lidando com a perda do fornecimento de petróleo russo devido às sanções ocidentais. Segundo a NOC, a produção “caiu acentuadamente” e as exportações diárias diminuíram 865 mil barris por dia em relação aos níveis normais de produção, perda a que se somam os 220 milhões de metros cúbicos de gás, necessários para alimentar a rede elétrica.
Sem petróleo não há eletricidade, como se disse. E sem eletricidade, a Líbia vive em um estado de apagões crônicos de até 18 horas por dia, enquanto o dinar líbio se desvalorizou 300% em poucos anos.
A raiva pelas condições de vida e a desconfiança em relação aos representantes políticos explodiram nos ataques às sedes do governo em todo o país. As imagens mais dramáticas vieram de Tobruk, sede de uma das duas administrações rivais da Líbia, onde manifestantes invadiram o parlamento e incendiaram parte do prédio. As primeiras imagens mostram colunas de fumaça subindo do prédio enquanto manifestantes queimam pneus do lado de fora gritando "queremos eletricidade". Outro vídeo, divulgado ontem pela mídia líbia al-Wasat, mostra um manifestante dirigindo uma escavadeira rompendo uma das cercas do Parlamento: alguns manifestantes entram no prédio, enquanto outros agitam as bandeiras verdes do regime de Kadafi.
Ontem do outro lado do país, na capital Trípoli, as ruas de metade da cidade estavam fechadas, barradas pelos veículos blindados das milícias.
É cedo para dizer se as manifestações destes dias são a semente de um protesto mais estruturado, mas não há dúvida de que temos denominadores comuns: o desespero coletivo pela situação econômica e o roubo de recursos, a frustração pelos acordos políticos não alcançados, a exigência de uma mudança.
Acima de tudo, são protestos liderados por jovens que há dez anos assistem ao fracasso das promessas da revolução de 2011.
A esperança para o futuro próximo é que as instâncias desses protestos do leste, sul e oeste da Líbia consigam convergir e impelir a classe política à mudança.
O realismo, no entanto, diz que é muito mais provável que essas manifestações sejam o prelúdio da próxima guerra civil.
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O paiol de pólvora líbio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU