20 Junho 2022
"O verdadeiro problema é que a Rússia tem muitas armas nucleares. Se não as tivesse, provavelmente já não existiria mais. Mas já que as tem, é inútil acrescentar outras armas aos nossos barris de pólvora, porque só serviriam para provocar um estrondo mais alto. Talvez seja melhor parar antes do abismo e meditar com o Papa Francisco sobre as palavras de Russell e Einstein", escreve o matemático e lógico italiano Piergiorgio Odifreddi, ex-professor da Universidade de Turim e da Cornell University, em artigo publicado por La Stampa, 17-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Papa Francisco voltou a falar sobre a guerra, em tons que surpreendem os ocidentais. Por exemplo, ele usou uma expressão como "o ladrar da OTAN às portas da Rússia", que nunca teria saído da boca de um papa polonês antirrusso como João Paulo II, mas que é natural naquela de um papa argentino, antiamericano como Francisco.
Nós europeus não podemos entender como alguém pode odiar os norte-americanos, mas os sul-americanos não podem entender como alguém pode amá-los. Praticamente não há um país de seu atormentado subcontinente que, mesmo em tempos não distantes, não tenha sofrido intervenção direta do exército estadunidense, ou não tenha visto seus ditadores apoiados indiretamente pelos governos dos Estados Unidos: México, Guatemala, Nicarágua, Panamá, Cuba, Brasil, Peru, Chile e Argentina são todos países de soberania limitada, que não só ouviram "o ladrar do vizinho às portas", como muitas vezes foram abocanhados, dilacerados e oprimidos.
O Papa Francisco dá voz também a esses sentimentos, mas sua mensagem vai muito além e aborda o grave problema dos armamentos. Já na mensagem Urbi et Orbi no dia da Páscoa disse: "Quem tem a responsabilidade pelas nações ouça o grito de paz das pessoas. Ouça aquela pergunta perturbadora feita por cientistas há quase setenta anos: vamos acabar com a humanidade, ou a humanidade será capaz de renunciar à guerra?".
A citação foi tirada do chamado Manifesto Russell-Einstein de 9 de julho de 1955, que entrou para a história por vários motivos. Primeiro, porque foi a última tomada de posição pública de Einstein antes de morrer. E segundo porque esse manifesto foi a semente da qual nasceu o Movimento Pugwash de Cientistas Contra a Bomba Atômica em 1957.
Em 1995, quarenta anos após o manifesto de Russell-Einstein, o Prêmio Nobel da Paz foi para o Movimento Pugwash e seu histórico secretário, Józef Rotblat, que havia sido o colaborador mais próximo de Russell em ambos os eventos. E que também foi o único cientista atômico que se recusou a continuar trabalhando na bomba atômica em Los Alamos, depois que em 1944 os serviços de inteligência britânicos informaram os EUA que eles agora tinham certeza de que os nazistas não a estavam construindo.
Rotblat foi tratado como traidor e desertor por todos os seus colegas em Los Alamos, cada um dos quais encontrou suas próprias motivações políticas ou científicas para continuar construindo as bombas que foram usadas pelos estadunidenses em Hiroshima e Nagasaki em 1945. No entanto, não é preciso ser pacifista (como Russell foi durante a Primeira Guerra Mundial, quando passou seis meses na prisão na Inglaterra por propaganda antiguerra) para afirmar que a produção de armas há muito saiu do controle.
Mesmo um militar de carreira como o presidente Eisenhower, em seu discurso de despedida de 17 de janeiro de 1961, advertiu a nação: “Devemos estar alertas contra a presença de uma influência injustificada pelo complexo militar-industrial. Não devemos permitir que o peso dessa combinação coloque em risco nossas liberdades ou os nossos processos democráticos.”
Setenta anos depois, os dados do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute) atualizados até 2022 mostram que o mundo gasta 2 trilhões de dólares em armas todos os anos. Desse enorme valor, 40% (800 bilhões) são gastos apenas pelos Estados Unidos, e 16% (320 bilhões) pelos países europeus. A Rússia, que hoje é frequentemente apresentada como uma superpotência militar, na verdade gasta apenas 3% (60 bilhões): quase 20 vezes menos que os países da OTAN!
No entanto, nos últimos três meses, vimos uma corrida armamentista frenética de países europeus, incluindo a Itália. Hoje a Itália sozinha gasta a metade que a Rússia em armas. Sem falar da Inglaterra, Alemanha e França, cada uma das quais já gasta aproximadamente tanto quanto a Rússia. A disparidade de armamentos é, no entanto, também visível a olho nu, na fraqueza demonstrada pelo exército russo no campo ucraniano.
O verdadeiro problema é que a Rússia tem muitas armas nucleares. Se não as tivesse, provavelmente já não existiria mais. Mas já que as tem, é inútil acrescentar outras armas aos nossos barris de pólvora, porque só serviriam para provocar um estrondo mais alto. Talvez seja melhor parar antes do abismo e meditar com o Papa Francisco sobre as palavras de Russell e Einstein.
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A guerra só termina com o desarmamento e o Papa tem a coragem de dizê-lo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU