25 Junho 2022
"Uma longa tradição, que a escolástica valorizou de modo exemplar, sabe que a diferença do matrimônio em relação aos outros sacramentos reside precisamente na sua irredutibilidade à lógica eclesial. O matrimônio “se projeta” aquém e além da Igreja. O desejo natural e o vínculo civil fazem parte dele e não se deixam determinar simplesmente pela lógica da fé".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 18-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Igreja Católica se interessa pelo casamento há muitos séculos, mas só pensou em geri-lo em primeira pessoa nos últimos 500 anos. Este desenvolvimento moderno, que levou a unificar, sob a competência eclesial, todas as dimensões do casamento, a ponto de reivindicar a “competência exclusiva” da Igreja contra o Estado liberal, inspirou também uma dupla deriva, que se apoia solidamente na tradição, mas que também a exaspera e a leva a consequências incontroláveis. Vejamos melhor do que se trata, partindo de longe.
O matrimônio tem a ver com as coisas extremas. Tem em si um excesso. Por isso, foi colocado, ainda nas primeiras listas dos sete sacramentos, ao mesmo tempo à frente e atrás, no início e no fim, no primeiro e no último lugar. Tem um primado temporal e simbólico que o faz sobressair e tem um vínculo com a divisão e com a alteridade que o situa no fim. Por um lado, diz a união e a unidade como nenhum outro. Por outro lado, põe à prova todo entendimento e todo projeto como nenhum outro. No matrimônio, a natureza é graça, e a graça se reconhece natureza. Mas a natureza pode se impor sobre a graça, e a graça pode se distrair da natureza. Todos os escolásticos estão cientes disso, ao lembrarem que só o matrimônio precede à queda do pecado e, portanto, nasceu apenas “para o dever”, e não “para a salvação”. Embora possa ser invocado para a salvação, mas em uma certa tensão constitutiva com o dever!
O matrimônio é da zona rural, mas o matrimônio também é da cidade. É natural e artificial. Os homens e as mulheres se casam porque não são simplesmente naturais. A gestão da sexualidade, que no cavalo, ovelha, no rouxinol e no tubarão responde simplesmente ao que a natureza dita, no homem e na mulher deve encontrar não simplesmente a “conformidade com a natureza”, mas também a integração na “natureza humana”, que, junto com a divina, é a única no mundo a ser determinada pela palavra e pelas mãos. Os homens e as mulheres não apenas “fazem sexo”, como os outros animais, mas também “interpretam a sexualidade” de acordo com a natureza humana, que é estruturalmente marcada pela relação com o próximo e com Deus. Nenhum ser humano é natural como um galo ou como um castor. Todo homem e toda mulher estão em equilíbrio entre uma dimensão natural “disforme”, que se estrutura na relação com o próximo e com Deus; em termos medievais em relação à cidade e à Igreja.
Existem animais que geram sem ter um relacionamento com os próprios filhos. Existem animais que têm uma relação curta e funcional com seus descendentes. Só no ser humano a relação requer tempo, cuidado, presença por longos anos. O mesmo vale para a relação horizontal, entre homem e mulher. Gerar pode significar uma relação pontual, uma certa colaboração de dias, meses ou anos. No ser humano, é razoável e de acordo com a sua natureza interpretar a geração de modo responsável, seja assumindo-a, seja suspendendo-a, seja ainda deslocando-a para o nível espiritual. Essa liberdade, no que diz respeito ao ato de gerar, é típica apenas do homem, da mulher e de Deus.
Assim, parece-me, a tradição se deixou tocar por esses dois aspectos, mas o fez dentro da solução adotada pelas “sociedades fechadas”: ou seja, em sociedades que adotam um controle capilar do exercício do sexo por parte de cada sujeito (acima de tudo, o sujeito feminino). A mulher é submetida a um controle rigoroso, primeiro pela família de origem e depois pela família de escolha (escolha que muitas vezes não é dela). O limiar matrimonial torna-se, nessas sociedades, o limiar do exercício do sexo para a mulher. O homem é largamente dispensado desse limiar. Quando falamos hoje, eclesialmente, de “troca dos anéis”, devemos lembrar que, por muitos séculos, o único anel abençoado era aquele que o homem colocava na mão da mulher.
A descoberta do sujeito tardo-moderno libertou o sexo da sua exclusiva destinação à geração. Nasceu a sexualidade, que lê a dimensão sexual como “experiência” e como “expressão” do sujeito masculino e feminino. Especialmente para a mulher, essa passagem mudou profundamente a consciência, a posição social, a liberdade de reconhecimento da identidade e inaugurou também a sua entrada com autoridade no espaço público. Nesse contexto renovado, a leitura cristã do matrimônio não pode se confundir com as regras contingentes de uma sociedade fechada e deve se confrontar com as novas regras de uma sociedade aberta, com as novas identidades e as novas competências. Pensar em “defender a doutrina matrimonial” confundindo-a com as regras de uma sociedade fechada é um dos piores erros que se podem cometer.
A tradição cristã não deixa de ter elementos para interpretar essa nova fase também. Muitas vezes, tais elementos estão presentes mais na tradição sapiencial e profética do que na tradição legal. Isso é óbvio e não deve surpreender. Uma hermenêutica renovada da tradição é uma tarefa que sempre coube à Igreja. Desse ponto de vista, Paulo já é um “tradutor”. E o faz também no nível do exercício do sexo, estabelecendo que o “matrimônio legítimo” é um limiar decisivo para a relação com Cristo mediada pelo uso do sexo.
Muitos dos eventos interpretativos que o cristianismo e o catolicismo consideraram insuperáveis dependem dessa afirmação paulina, que Paulo deriva das evidências da sociedade judaica do seu tempo. Mas a descoberta do matrimônio não apenas como “ato”, mas também como “processo” implica uma profunda releitura dessa tradição. Que se inaugura no momento em que o controle social sobre a sexualidade muda, deixando ao sujeito uma nova disponibilidade para gerir a própria experiência e a própria expressão. Mesmo que em termos redutivos, a Humanae vitae marca o reconhecimento dessa separação parcial entre a função de geração e a função expressivo-experiencial da sexualidade. Essa é uma das condições radicais da sociedade aberta. Grande possibilidade e grande tentação.
Toda essa dinâmica de recuperação do “gradus ad matrimonium”, porém, não pode se identificar simplesmente com um caminho catecumenal. Essa leitura, assimilando o matrimônio ao batismo e à ordem, perde pelo caminho as razões da diferença do matrimônio em relação ao catecumenato de iniciação cristã e à formação em vista da ordenação. Em ambos os casos, de fato, não há uma dimensão natural e civil que colabora originalmente na definição do sacramento. O justo reconhecimento do “processo” não pode ser gerido com a absolutização do ato. Aqui, a tradição matrimonial católica ainda se deixa condicionar por uma lógica jurídica de um Estado moderno. Casar-se em Cristo é diferente de fazer o pároco registrar o ato. A intuição tridentina foi superada pelos eventos, há pelo menos 200 anos.
Uma longa tradição, que a escolástica valorizou de modo exemplar, sabe que a diferença do matrimônio em relação aos outros sacramentos reside precisamente na sua irredutibilidade à lógica eclesial. O matrimônio “se projeta” aquém e além da Igreja. O desejo natural e o vínculo civil fazem parte dele e não se deixam determinar simplesmente pela lógica da fé. Aqui o desafio é o maior e não pode ser enfrentado com o recurso que o Concílio de Trento adotou em 1563. Ou seja, com a determinação da Igreja de ser o primeiro “Estado moderno” a estruturar uma competência capilar sobre os contratos matrimoniais. Essa pretensão da “lei objetiva”, para a Amoris Laetitia, parece “mesquinha” (AL 304).
O “percurso” que estrutura o matrimônio não é simplesmente a preparação do “ato”, mas sim a constituição de relações profundas e novas entre a vivência do desejo natural, a estruturação do vínculo social e a releitura “por graça” do primeiro assim como do segundo. Se o “percurso” for lido com óculos tridentinos, ele é negado antes mesmo de ser assumido e é pensado e modulado com uma espécie de “híbrido” entre “iniciação cristã” e “formação de seminário”. Os esposos cristãos não podem ser reduzidos a catecúmenos falhos ou seminaristas em potencial. Os esquemas dessa “orientação catecumenal” parecem assumir a dimensão do processo, mas de uma forma desfasada também em relação à dinâmica sempre natural e civil da qual pretendem cuidar. Uma confusão ainda forte demais entre “primeiro” e “último” sacramento incide profundamente sobre o teor expressivo e sobre a eficácia pastoral do texto.
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Matrimônio, primeiro e último dos sacramentos: uma questão antiga em 10 pontos. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU