A guerra em tempo de Páscoa, lendo a Summa Theologiae. Artigo de Andrea Grillo

Bucha, Ucrânia. (Foto: President Of Ukraine, Flickr, domínio público)

26 Abril 2022

Lendo a “Summa Theologiae”, de Tomás de Aquino, é possível entender alguns pontos importantes da guerra travada em pleno tempo de Páscoa.

 

O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, publicado por Come Se Non, 25-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

O fato de que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia atravessou a Páscoa tanto do ano litúrgico católico quanto sobretudo do ano litúrgico ortodoxo, que une em grande medida as partes envolvidas, levantou a questão sobre se era oportuno “cessar o fogo” pelo menos no dia festivo, por respeito e por caridade.

São Tomás, na “Summa Theologiae”, dedica um artigo justamente a esse tema. Aqui está o texto, que examinaremos em relação a outro texto, também de Tomás, para captar alguns elementos de julgamento sobre o que está ocorrendo de trágico hoje nas fronteiras da Europa.

 

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Summa Theologiae, II-II, q. 40, a.4 – “Se é lícito guerrear nos dias de festa”

 

Parece que não é lícito guerrear nos dias festivos. De fato:

 

1. As festas se destinam a se ocupar das coisas de Deus: é por isso que estão incluídas na observância do repouso sabático, imposto por Deus no Êxodo; sábado, de fato, significa repouso. Ora, as guerras envolvem as mais graves agitações. Portanto, de forma alguma pode-se guerrear nos dias de festa.

2. Em Isaías, são repreendidas algumas pessoas, porque nos dias de jejum “cobravam as dívidas dos devedores, brigavam e chegavam às vias de fato”. Com maior razão, portanto, nos dias de festa é proibido guerrear.

3. Nunca se deve fazer uma ação desordenada, para evitar um dano temporal. Ora, guerrear em um dia de festa, por si só, é uma ação desordenada. Portanto, não se deve guerrear em dia de festa, pela necessidade de evitar um dano temporal.

IN CONTRARIO: No Livro dos Macabeus, lê-se que os “judeus, com razão, fizeram este propósito, dizendo: ‘Qualquer um que venha nos atacar em dia de sábado, nós combateremos contra ele’”.

RESPONDO: A observância das festas não impede as coisas que são ordenadas também à salvação física do homem. Tanto é que o Senhor repreendia os judeus dizendo: “Como vocês podem ficar indignados contra mim, porque no sábado eu curei completamente um homem?”. É por isso que os médicos podem tratar as pessoas em dias de festa. Ora, com maior empenho deve-se promover a salvação da pátria, com a qual se evitam múltiplas mortes e inúmeros danos temporais e espirituais, do que a saúde corporal de um homem. Por isso, para a salvação da pátria, é lícito aos fiéis combater as guerras justas nos dias de festa, se, porém, a necessidade o exigir: de fato, encontrando-se em tal necessidade, seria tentar a Deus se abster de guerrear. Mas, se a necessidade vem a faltar, não é lícito guerrear nos dias de festa, pelos motivos indicados.

Ficam, assim, resolvidas também as dificuldades.

 

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Como é evidente, a guerra só pode ser justificada também em um dia de festa se for efetivamente “ordenada à salvação física do homem” ou, com mais razão, “à salvação da pátria”.

O texto de Tomás torna-se claro, mesmo nos seus limites históricos, se for lido à luz do artigo 1º da mesma questão. É evidente que a justificativa da “guerra em dia de festa” deriva da possibilidade de identificar uma guerra “sem pecado”. Pode ser útil lembrar aqui que a guerra entra no “sistema” como “vício contra a caridade”. Mas há casos em que a guerra, se deriva da autoridade legítima, se estiver fundamentada em uma causa justa e se for guiada por uma reta intenção, não é mais pecado.

Como podemos ler claramente no texto, a autoridade pela qual Tomás se deixa guiar é Agostinho. Que fala das guerras de 1.500 anos atrás, nas quais o “campo de batalha”, as regras de engajamento, o impacto sobre os civis, o poder das armas eram estruturalmente diferentes. O “fenômeno guerra” era profundamente diferente, e diante dele Tomás refletia com esses argumentos.

 

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Summa Theologiae, II-II, q.40, a1 – Se a guerra é sempre pecado

 

Parece que guerrear é sempre pecado. De fato:

 

1. O castigo é infligido apenas por um pecado. Ora, o Senhor ameaça um castigo a quem guerreia: “Todos os que tomarem a espada perecerão pela espada”. Portanto, qualquer guerra é ilícita.

2. Aquilo que se opõe aos preceitos de Deus é pecado. Mas guerrear é contrário ao preceito de Deus; pois está escrito: “Mas eu vos digo: não resistais ao maligno”; e em outros lugares: “Não vos vingueis uns aos outros, caríssimos, mas deixai agir a ira”. Por isso, guerrear é sempre pecado.

3. Nada além do pecado é incompatível com uma virtude. Mas a guerra é incompatível com a paz. Portanto, a guerra é sempre pecado.

4. Exercitar-se em qualquer coisa lícita é sempre lícito: o que é evidente nos exercícios científicos. Ao invés disso, os exercícios bélicos, que se fazem nos torneios, são proibidos pela Igreja: pois quem morre em tais exercícios é privado da sepultura eclesiástica. Portanto, a guerra é pecado em sentido absoluto.

 

 

 

IN CONTRARIO: Santo Agostinho escreve: “Se a religião cristã condenasse totalmente as guerras, no Evangelho, aos soldados que pediam um conselho de salvação, teria sido dado o de abandonar as armas e fugir da milícia. Em vez disso, foi-lhes dito: ‘Não façam violência a ninguém; contentem-se com o seu salário”. Por isso, não é proibido o ofício de soldado a quem é ordenado que se contente com o salário”.

 

RESPONDO: Para que uma guerra seja justa, são necessárias três coisas. Primeiro, a autoridade do príncipe, por ordem do qual ela deve ser proclamada. De fato, uma pessoa privada não tem o poder de fazer a guerra: pois ela pode defender o seu próprio direito recorrendo ao juízo do seu superior. E também porque não cabe a uma pessoa privada reunir a multidão, o que é indispensável nas guerras. E como o cuidado da coisa pública é reservado aos príncipes, cabe a eles defender o estado da cidade, do reino ou da província que presidem. E assim como o defendem licitamente com a espada contra os perturbadores internos, punindo os malfeitores, segundo as palavras do Apóstolo: “Não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para para exercer a ira divina contra aquele que pratica o mal”; assim também cabe a eles defender o estado dos inimigos externos com a espada da guerra. É por isso que, nos Salmos, se diz aos príncipes: “Salvem o pobre e libertem o mendigo das mãos do ímpio”. E Santo Agostinho escreve: “A ordem natural, indicada para a paz dos mortais, exige que a autoridade e a deliberação de recorrer à guerra residam junto aos príncipes”.

Segundo, requer-se uma causa justa: isto é, uma culpa por parte daqueles contra quem se faz a guerra. Por isso, escreve Santo Agostinho: “Costuma-se definir como justas as guerras que vingam as injustiças: isto é, no caso de derrotar um povo, ou uma cidade, que negligenciou punir os malfeitos dos seus súditos, ou de restituir aquilo que tinha sido retirado injustamente”.

Terceiro, requer-se que a intenção de quem combate seja reta: isto é, que vise a promover o bem e a evitar o mal. É por isso que Santo Agostinho escreve: “Entre os verdadeiros adoradores de Deus, mesmo as guerras são pacíficas, as quais não são travadas por ganância ou por crueldade, mas por amor à paz, ou seja, para reprimir os malvados e para socorrer os bons”. De fato, pode ocorrer que, embora sendo justa a causa e legítima a autoridade de quem declara a guerra, a guerra se torne ilícita por uma má intenção. Por isso diz Santo Agostinho: “A ânsia de ferir, a crueldade em se vingar, a indignação implacável, a ferocidade no guerrear, o desejo de dominar e outras coisas do gênero são justamente reprovadas na guerra”.

 

SOLUÇÃO DAS DIFICULDADES: Como diz Santo Agostinho, “toma a espada aquele que se arma contra o sangue de alguém, sem o mandato ou a permissão de nenhum poder legítimo e superior”. Por outro lado, quem usa a espada com a autoridade do príncipe ou do juiz, se for uma pessoa privada, ou por zelo da justiça e, portanto, com autoridade de Deus, se for uma pessoa pública, não toma a espada para si mesmo, mas se usa dela por encargo de outros. E, portanto, não merece uma pena. No entanto, mesmo aqueles que usam a espada de maneira pecaminosa nem sempre são mortos pela espada. Mas eles sempre perecem com a sua espada; porque, se não se arrependerem, serão punidos pelo pecado da espada por toda a eternidade.

2. Como observa Santo Agostinho, tais preceitos devem ser sempre observados com as disposições internas: isto é, de tal modo que se esteja sempre disposto a não resistir, ou a não se defender, quando for necessário. Mas às vezes é necessário agir de forma diferente pelo bem comum e pelo próprio bem daqueles contra os quais se combate. De fato, Santo Agostinho escrevia: “Muitas vezes é preciso se esforçar muito com os adversários para dobrá-los com uma dureza benevolente. De fato, para quem é privado da liberdade de pecar é bom ser derrotado: pois nada é mais infeliz do que a felicidade de quem peca, que aumenta uma iniquidade digna de pena, enquanto a má vontade se fortalece como um inimigo doméstico”.

3. Aqueles que fazem guerras justas têm como objetivo a paz. Por isso, são contrários apenas à má paz, que o Senhor “não veio trazer à terra”, como diz o Evangelho. Santo Agostinho escrevia a Bonifácio: “Não se busca a paz para fazer a guerra; mas se faz a guerra para ter a paz. Portanto, fica pacífico ao guerrear, para induzir com a vitória ao bem da paz aqueles contra quem deves combater”.

4. Nem todos os exercícios de guerra são proibidos, mas apenas os desordenados e perigosos, que levam a matar e a depredar. Em vez disso, entre os antigos, os exercícios de guerra estavam livres de tais perigos: por isso, eram chamados de “preparações de armas” ou “guerras incruentas”, como revela uma carta de São Jerônimo.

 

 

 

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A justificativa da guerra deriva, para Tomás, da escola de Agostinho, a partir do princípio “não faça violência contra ninguém”: isso demonstra que a teoria da “guerra justa” deve ser pensada em um horizonte mais adequado, pelo menos por duas grandes razões:

 

a) o “fenômeno guerra” não é o mesmo em relação ao que Agostinho e Tomás conheciam. Especialmente no nível da “terceira causa de justificação”, a “reta intenção”, é evidente que a grande diferença entre intenção e efeito, hoje determinada em grande medida pelos meios à disposição dos soldados, incide profundamente sobre o julgamento. Uma única bomba lançada por um único soldado pode causar a morte de centenas de civis desarmados. Esse é um elemento diferencial, que não pode ser resolvido simplesmente no plano da “reta intenção”. E é aqui que o “inútil massacre” se torna uma nova evidência, teológica e civilmente relevante.

b) A referência que Agostinho fornece a Tomás, sobre aquilo que deve excluir a “reta intenção”, assume a forma de uma sequência trágica de vícios que hoje vemos diante dos nossos olhos cotidianamente: “A ânsia de ferir, a crueldade em se vingar, a indignação implacável, a ferocidade no guerrear, o desejo de dominar e outras coisas do gênero são justamente reprovadas na guerra”. Deveria ficar claro que aqui, do ponto de vista de Tomás e de Agostinho, não estamos diante de “vícios internos a um ato justificado”, mas de “vícios que tornam o ato bélico injustificável” e o qualificam como pecado.

Seria útil se pelo menos todas as autoridades religiosas tivessem isso em mente, para evitar chamar o mal de bem e o bem de mal. As pequenas distinções, finas como um fio de cabelo, que encontramos nos textos de 800 ou 1.500 anos atrás, mesmo nos limites de uma leitura anacrônica, ajudam-nos a compreender a exigência de uma teologia que olhe para o fenômeno bélico tal como ele se apresenta hoje e que não se contente em repetir uma leitura limitada e idealizada, que a tradição elaborou com base em outras evidências e em outros fenômenos.

 

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