A “Matthäus-Passion” de Bach é um dos grandíssimos pilares da cultura humana. Seria verdadeiramente importante que – assim como se estuda a “Divina Comédia” nas escolas – os jovens tivessem a oportunidade de estudar ou simplesmente de ouvir essa música, porque se trata de uma daquelas raras realizações que são capazes de mostrar do que um ser humano inspirado é capaz.
O comentário é de Chiara Bertoglio, concertista de piano, musicóloga, escritora e teóloga italiana. É mestra em Teologia Sistemática pela Universidade de Nottingham e doutora em musicologia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra. Realizou seu primeiro concerto com orquestra aos nove anos de idade e, desde então, já se apresentou em salas como o Carnegie Hall, o Concertgebouw de Amsterdã, a Royal Academy de Londres e a Accademia di Santa Cecilia de Roma. O artigo foi publicado pot Settimana News, 15-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Acho que falar da beleza da música – de uma música tão profundamente tecida de espiritualidade como a da “Matthäus-Passion”, de Johann Sebastian Bach – pode ser uma forma de nos dispormos para receber um pouco daquela graça de que todos nós precisamos, crentes ou não. Especialmente nos momentos sombrios da vida individual e da história.
Gostaria de lhes falar sobre a minha relação pessoal com “A Paixão segundo Mateus”, de Johann Sebastian Bach, para antecipar o tom que desejo dar a esta conversa.
Conheci a “Paixão segundo Mateus” quando eu tinha cerca de nove ou dez anos de idade. Meu tio me deu um CD que continha trechos da “Matthäus-Passion”. Comecei a colocá-lo como música de fundo enquanto fazia meus temas de casa, apaixonando-me por essa música.
Essa composição gradualmente se tornou uma companheira da minha vida. Todos os anos eu me impus – com alegria – escutá-la na íntegra na Quaresma e no Tríduo Pascal.
Trata-se de uma daquelas grandíssimas obras-primas da história, da cultura humana, da arte e da espiritualidade que, assim que são conhecidas e ouvidas, entram em nós, nos enriquecem, nos comovem. Esse “algo a mais” que a “Matthäus-Passion” continua me dando me investe em diversos níveis.
Há um nível de entrada afetivo, pelo qual muitas vezes – admito com franqueza – me comovi. Depois, há um nível espiritual, pelo qual eu posso dizer que – ouvindo-a e ouvindo-a novamente – encontrei mais luz nas próprias palavras do Evangelho. Depois, há o nível de entrada profissional, de musicista, por meio do qual a partitura continua me fascinando e me estimulando, porque todas as vezes eu descubro detalhes que ainda não tinha percebido bem. Tudo isso eu gostaria de poder transmitir a vocês nesta conversa.
Como eu disse, a “Matthäus-Passion” é um dos grandíssimos pilares da cultura humana. Na minha modesta opinião, seria verdadeiramente importante que – assim como se estuda a “Divina Comédia” nas escolas – os jovens tivessem a oportunidade de estudar ou simplesmente de ouvir essa música, porque se trata de uma daquelas raras realizações que são capazes de mostrar do que um ser humano inspirado é capaz.
Na história da música – e eu diria da cultura ocidental – essa partitura se situa em um divisor de águas simbólico, não tanto na época da composição, mas a partir do século XIX, ou seja, desde que ocorreu a passagem da chamada música sacra: da Igreja ao mundo inteiro.
Como vocês provavelmente sabem, Johann Sebastian Bach, depois da sua morte ocorrida em 1750, quase havia desaparecido da consideração geral. Não totalmente, é claro: os seus inúmeros filhos – muitos dos quais musicistas também – continuaram cultivando a sua memória na música. Assim como outros de seus alunos.
Não esqueçamos que Bach foi um professor de altíssimo nível e criou um verdadeiro discipulado. Mesmo assim, era considerado um compositor para compositores, um musicista apreciado por outros musicistas. Mas, no nível do grande público, ele não era conhecido e – de fato – tinha quase desaparecido do horizonte musical europeu. Só em meados do século XIX é que Bach volta à cena: precisamente com a “Matthäus-Passion”.
Neste ponto, permitam-me lhes contar uma história que sempre me fascinou: a história de como a partitura emergiu do esquecimento para ser entregue à posteridade, a nós. As suas páginas haviam sido conservadas pelos filhos de Bach. Dois deles eram amigos de uma judia chamada Sara Levi, uma das mulheres mais inteligentes e mais cultas da sua época. Ela animava um salão cultural de altíssimo nível. Sara Levi, entre outras coisas, também era musicista. Foi ela quem encontrou em suas mãos esse patrimônio imenso de notas.
Sara Levi era tia-avó de Felix Mendelssohn Bartholdy, então um jovem e muito promissor musicista, que por sua vez pertencia a uma família de origem judaica convertida ao cristianismo.
A conversão da família Mendelssohn havia sido compreensivelmente muito indesejada ao restante da grande família. A própria Sara Levi tinha vivido muito mal essa escolha, talvez nem mesmo muito convencida. Sabe-se que havia frieza entre os parentes. Até que Sara decidiu fazer um gesto altamente significativo: por ocasião do Natal – portanto, de uma festividade tipicamente cristã – ela deu ao seu jovem bisneto a partitura da “Matthäus-Passion”.
A partir disso, Mendelssohn, com apenas 19 anos – induzido e ajudado pelo seu professor de música, já admirador de Bach –, tomou a resolução, que depois se tornou histórica, de montar uma execução pública, dando origem à chamada Bach Renaissance, ou seja, à redescoberta de toda a obra de Johann Sebastian Bach.
Mendelssohn reelaborou a partitura para a execução, tornando-a, pelo menos ao seu modo de ver, mais consoante com a estética da sua época. Ele não foi muito fiel ao autor. Mas teve o mérito artístico e histórico de dar início à extraordinária redescoberta da “Matthäus-Passion” e, portanto, de toda a imensa obra de Bach.
Na Itália, a “Matthäus-Passion” chegou atrasada e com pouca frequência, basicamente pelos mesmos motivos que ainda a tornam de execução e escuta nada fáceis. É uma obra muito exigente. Mesmo hoje não é tão fácil, na Itália, ouvi-la, seja em salas de concerto, seja nas nossas igrejas. Ainda se trata de uma partitura que requer mais de três horas de execução: três horas em alemão antigo, com muitos recitativos que certamente não estão ao alcance de todos os solistas. Além disso, trata-se de uma linguagem musical que requer muita concentração e empenho também por parte do ouvinte.
Entre os pioneiros da difusão na Itália da “Paixão segundo Mateus”, houve um sacerdote: o abade Fortunato Santini. Esse é um detalhe interessante. Hoje pode parecer óbvio que tenha sido um sacerdote católico quem propôs uma composição tão impregnada de espiritualidade, embora de um autor protestante luterano. Mas eu lhes garanto que na época não era nada óbvio.
O ecumenismo – isto é, a relação entre as Igrejas – ainda tinha que dar os seus primeiros passos. O abade Santini percebeu a grandeza da partitura e, tanto para torná-la mais fruível ao público italiano, quanto para de alguma forma colocar um selo católico na sua sacralidade, decidiu traduzir o seu texto para a língua latina. É bom dizer que, nessa versão, “La Passione” nunca foi executada nem, portanto, cantada. Mas o esforço feito pelo abade é igualmente significativo.
Perto do fim do século XIX, outra figura – o conde Francesco Lurani Cernuschi – começou a traduzi-la ao italiano para fazer uma versão rítmica dela, que se prestasse a ser cantada com a mesma música. Os esforços de Lurani Cernuschi também não tiveram sucesso: apenas trechos individuais foram utilizados. Somente no século XX – portanto, muito recentemente – é que chegaram à Itália os momentos para executá-la na íntegra, de acordo com a partitura original.
Bach a compôs nos primeiros anos da sua estadia em Leipzig. Leipzig foi a última das etapas da sua intensa vida como musicista. Antes disso, ele havia atravessado inúmeros outros centros urbanos, dos menores aos maiores, em várias funções, mas obviamente sempre como musicista. Finalmente, em 1723, ele se estabeleceu em Leipzig, onde lhe foi atribuída a tarefa muito prestigiosa de Thomaskantor, ou seja, de responsável pela música sacra de toda a cidade de Leipzig. Muitos tipos de deveres estavam conectados com esse cargo, alguns agradáveis, outros um pouco menos agradáveis.
Entre os deveres certamente apreciados por Bach estava a composição da música sacra para a liturgia. Dos poucos documentos que temos a esse respeito, podemos dizer que Bach – profundamente crente – depositava grande confiança na função da música de Igreja para a evangelização do povo.
Notamos isso, por exemplo, paradoxalmente, justamente nas polêmicas que muitas vezes ele tinha com os seus patrões eclesiásticos, que, segundo ele, não concediam fundos suficientes para poder dispor de musicistas capazes e preparados. Também sabemos que Bach possuía os dois gigantescos volumes da chamada “Bíblia de Calov”: livros impressionantes, precisamente do ponto de vista do tamanho físico, nos quais Johann Sebastian fez os seus sublinhados e escreveu as suas notas à margem. Estas foram estudadas recentemente. Algumas das notas mais desenvolvidas dizem respeito precisamente à função da música de Igreja.
Bach foi procurar aquelas passagens do texto sagrado que falam da função espiritual – para não dizer “divinizante” – da música. Os seus comentários demonstram como ele tinha muita clareza sobre essa dimensão e a levava no coração.
Por outro lado, um dos aspectos menos apreciados para Bach era o ensino. Mas não o ensino como tal. De fato, dispomos de uma quantidade considerável de trechos compostos especificamente para o ensino: a partir disso, podemos intuir como Bach fazia questão de transmitir o seu saber aos jovens alunos.
O que, pelo contrário, não lhe agradava era aquilo que havia em torno de um ensino de tipo institucional. Por outro lado, o fato de uma instituição como a Thomasschule estar ligada à Igreja de São Tomás – à qual ele era principalmente filiado – permitia-lhe dispor de um extraordinário número de alunos musicistas, formados por ele próprio.
Como dito, Bach era luterano. A visão que Lutero tinha sobre a música foi muito importante para Bach. Quero dizer algumas palavras sobre isso.
Lutero foi um monge agostiniano, antes, naturalmente, de dar origem à sua reforma. E Santo Agostinho foi provavelmente o maior teórico da música da antiguidade, seguido pelo próprio Lutero, muitos séculos depois. Lutero era ele próprio um musicista. Ele era capaz de tocar diversos instrumentos e também era capaz de compor cantos polifônicos. Sabia escrever música de forma correta, mesmo que não extraordinária.
A sua grandíssima intuição foi a de popularizar o uso da música dentro das igrejas, por meio sobretudo dos corais. Os corais também são importantes para a nossa conversa sobre a “Matthäus-Passion”. Tecnicamente, um coral é simplesmente um canto ou uma linha melódica, principalmente em língua alemã. Muitas vezes, foram inseridos neles fragmentos mais ou menos extensos em língua latina e até grega. Lutero, de fato, não era nada contrário ao uso do latim e das línguas antigas na liturgia; ele até queria o grego como língua litúrgica da Igreja Luterana.
O coral não foi uma invenção de Lutero. A ele se deve a introdução sistemática na igreja de um repertório pré-existente, feito de cantos devocionais. No entanto, consideramos que a distinção entre o que era litúrgico e o que não era, na época, era bastante tênue. Lutero intuiu a eficácia que esses cantos populares poderiam ter em toda uma série de funções de evangelização, incluindo o fato de transmitir a doutrina, de alimentar o senso de devoção, de criar o senso de comunidade e de moldar, por meio da beleza, a própria comunidade.
O reformador, portanto, decidiu conferir um papel de preeminência ao coral dentro da liturgia, sem, no entanto, se livrar de outras formas mais complexas. Os corais se tornaram o fundamento de outras composições, como os motetos e as próprias composições polifônicas. As melodias corais que Lutero escolheu tinham a capacidade de serem memorizadas muito facilmente pelos ouvintes do povo e contribuíram, de forma determinante, para a difusão da confissão luterana na Alemanha e além.
Essas melodias simples, imediatas, fáceis de lembrar, de ouvir e de cantar podiam ser utilizadas como cantus firmus ou postas como fundamento de construções polifônicas, para se tornarem os elementos de construções ainda mais complexas, como ocorreu, por exemplo, nas cantatas de Bach.
Na “Matthäus-Passion”, encontramos a harmonização do coral: o que significa a utilização da melodia do coral como linha de fundo para sobrepor outras vozes. Por exemplo, tomam-se quatro vozes – soprano, contralto, tenor e baixo – e se atribuem a elas um ritmo praticamente idêntico, mas nem sempre idêntico, fazendo com que os solistas repitam as várias sílabas do texto. Isso obviamente facilita muitíssimo a compreensão, justamente do ponto de vista fonético-verbal.
A forma da “Paixão”, como gênero musical, tem uma longa história. Pode-se dizer que ela tem pelo menos duas origens, bem diferentes entre si. A primeira é a da representação sagrada que, como bem sabemos também na Itália, é uma realidade paralitúrgica, ou seja, uma teatralização do sagrado, normalmente realizada em língua vulgar e muitas vezes enriquecida por um aparato cênico. A segunda é a da leitura dramatizada do texto evangélico em latim no âmbito da liturgia.
Ainda em 1200, William Durandus recomendava que quem fosse ler a “Paixão” não o fizesse com o mesmo tom de voz do início ao fim, mas tentasse traduzir, por exemplo, as palavras de Cristo com um tom de voz mais doce e as do evangelista, do narrador ou do cronista – como nós hoje o chamamos – com uma voz mais distanciada, enquanto os textos atribuídos à multidão fossem declamados com clamor et cum asperitate.
O estilo dramático representativo, portanto, transitou das sagradas representações à leitura litúrgica, embora ainda realizada por uma única pessoa. Precisamente Lutero, em 1526, mais ou menos dois séculos antes da “Matthäus-Passion” de Bach, havia proibido, porém, as representações sagradas, que ele considerava mais mascaradas do que apropriadas. No entanto, a hibridação, em certo sentido, já havia ocorrido.
Na época de Bach, no tempo quaresmal, a música de concerto não podia ser feita na igreja. Isso não nos surpreende. Em particular, a voz não podia ser acompanhada por instrumentos musicais, justamente para tornar mais evidente o significado penitencial. Por isso, o período quaresmal permitiu ao Thomaskantor Bach – que normalmente tinha que compor em ritmo acelerado mais de uma cantata por semana (considerando-se as festividades extradominicais) – encontrar um pouco mais de tempo para preparar melhor a liturgia da Paixão do Domingo de Ramos e depois, naturalmente, para preparar a festividade da Páscoa.
A tradição luterana previa a possibilidade de entoar o texto evangélico da Paixão com um canto monódico em estilo recitativo. Essa forma de declamação entoada era chamada de choraliter e era inspirada no tom de lição gregoriano. Mas, pouco a pouco, surgiram outras formas de recitação entoada. Vou resumi-las.
Havia, por exemplo, a “Paixão a modo de responsório”, que previa intervenções do coro – no estilo do falso bordão – em resposta à leitura entoada por parte do celebrante. Havia a “Paixão em moteto”, em que todo o texto evangélico era traduzido de maneira polifônica e, portanto, com uma partitura de densidade, do ponto de vista composicional. Depois, havia a “Paixão dramática”, em que o texto do recitativo se afastava do evangélico com palavras escritas para esse propósito pelos poetas. Até se chegar à “Paixão oratório”, em que a realização se desvinculava da ação litúrgica.
No início do século XVIII – ou seja, quando Bach começa se mover no mundo da música sacra – eram essencialmente a “Paixão oratório” e a “Paixão oratorial” que tinham sucesso e prática na Alemanha. A “Paixão oratorial” – aquela praticada por Bach – ainda estava ligada ao texto evangélico e à celebração litúrgica, e se dividia em duas partes, antes e depois do sermão.
Como eu disse, Bach era o responsável por toda a música sacra da cidade de Leipzig. Como tal, ele tinha que articular o trabalho nas duas principais igrejas da cidade, a Thomaskirche e a Nikolaikirche. Isso levantava problemas de turnos de trabalho da equipe de musicistas e cantores à sua disposição.
Havia nada menos do que quatro coros de meninos da Thomasschule, e eles eram organizados de acordo com as necessidades do culto. A prioridade de emprego era estabelecida de acordo com o nível musical alcançado. Digamos que dois coros fossem de nível mais elevado, enquanto os outros dois fossem mais modestos. A prática comum em Leipzig era a de entoar a “Matthäus-Passion” no Domingo de Ramos, enquanto a “Johannes-Passion” era entoada na Sexta-Feira Santa.
Na Nikolaikirche, no âmbito do serviço litúrgico da manhã, era realizada uma leitura choraliter no estilo da primeira tradição luterana e, portanto, muito simples. A partir da Sexta-Feira Santa de 1717, teve início o novo costume de executar a Paixão segundo o estilo polifônico – ou seja, figulariter – no decorrer do rito da tarde.
Além disso, estava decaindo a obrigação de se limitar ao texto do Evangelho de João. Assim, havia a possibilidade de extrair os textos da Sexta-Feira Santa também dos Evangelhos sinóticos. E, assim, foi oferecida a Bach a possibilidade de apresentar uma grande Paixão na Sexta-Feira Santa, primeiro na Igreja de São Tomás, depois na Igreja de São Nicolau, com uma condição particular, ou seja, a alternância rígida nas duas igrejas: a nova Paixão – musicalmente mais rica – ocorreria em uma única igreja e, no ano seguinte, na outra. Enquanto isso, a Paixão choraliter permaneceria como alternativa.
Essa prática durou por cerca de 40 anos, ou seja, durante todo o tempo de permanência de Bach em Leipzig. E deu origem a um rito litúrgico de grande complexidade e de enorme duração.
Temos o testemunho de um sacristão: por volta das 13h15, soavam os sinos para convocar a população, e a celebração iniciava com um coral; seguia-se a isso a primeira parte da Paixão; outro coral precedia o sermão; e, quando eu falo de sermão, não devemos pensar nos 10 minutos – que já nos parecem longos – das homilias atuais nas nossas celebrações: às vezes se tratava de sermões que duravam cerca de uma hora; depois havia a segunda parte da Paixão; depois desta, era executado um moteto em latim de Jacobus Gallus, em seguida ainda era cantado um versículo da Paixão; depois a oração, a coleta e mais um coral. Em suma, a duração total da celebração era estimada em cerca de quatro ou cinco horas.
De acordo com o necrológio escrito por um dos filhos, Bach compôs para a liturgia em Leipzig nada menos do que cinco Paixões, incluindo uma de coro duplo. Entre os enigmas da história da música, está precisamente o destino de todas essas partituras. A Paixão de coro duplo só pode ser a “Matthäus-Passion”, mas e as outras quatro?
Temos a “Johannes-Passion”, a outra completa. Certamente Bach compôs uma Paixão sobre o texto do evangelista Marcos, da qual, infelizmente, chegou até nós apenas o libreto, mas não a música. Permanece a dúvida sobre uma “Paixão segundo Lucas”, já atribuída a Bach, mas que, na realidade, não pode ser sua. É legítimo supor que ele compôs uma para cada evangelista, e que havia duas versões da “Matthäus-Passion”, uma justamente para coro duplo – a que temos – e outra para coro simples.
Tudo isso permanece envolto em perguntas sem respostas, mesmo com o pesar de ter perdido outras obras-primas, calculando que Bach organizou a música litúrgica da Semana Santa em Leipzig por nada menos do que 26 vezes, pelo menos. Claramente, ele nem sempre usou apenas as suas próprias músicas. Ele também retomou músicas de compositores que ele apreciava, incluindo, entre os contemporâneos, George Phlipp Telemann e George Friedrich Händel.
Os livretos, ou seja, os textos, as palavras postas em música por Johann Sebastian, são de vários autores. Em particular, na “Matthäus-Passion” e também na “Paixão segundo Marcos”, ele se valeu do trabalho de Christian Friedrich Henrici – conhecido como Picander –, um dos grandes colaboradores de Bach: um poeta talvez de nível não excelente, mas com uma grande musicalidade e uma grande capacidade de adaptação às exigências do compositor. Agora – ao contrário do passado – eu acho que os textos de Picander não apenas aceitáveis, mas até mesmo bonitos. Bonitos pela sua visão teológica. Bonitos pelas suas intuições espirituais. Bonitos porque combinam muito bem com a música.
Na “Matthäus-Passion”, a música é estimulada pela poesia, e a poesia, pela música. Se Picander conhecia a música – e, portanto, trabalhava bem com um musicista – Bach certamente não era desprovido de cultura e de dotes literários para poder trabalhar com Picander. Pelo contrário. É muito interessante notar – do ponto de vista espiritual e teológico – como o próprio compositor quis cuidar da escolha dos corais a serem inseridos na “Matthäus-Passion”. Sabemos disso com certeza, pois o libreto publicado por Picander, em uma coletânea de suas composições poéticas, não inclui os corais. Os corais foram escolhidos e inseridos pelo próprio Bach. Atenção: os corais não devem ser confundidos com os coros.
Os coros são composições em texto livre – poético – que normalmente servem para expressar os sentimentos da comunidade, mas também para dar um movimento dramático muito forte (veja no vídeo abaixo).
Na “Matthäus-Passion”, nós os encontramos no início e no fim das várias partes. Ou encontramos coros com a função de dar voz à multidão, ao povo. Estes segundos coros fazem parte da narrativa evangélica e, portanto, têm uma forma muito diferente, a do recitativo.
O texto narrativo dos Evangelhos – aquele que obviamente é lido também nas nossas igrejas na liturgia do Domingo de Ramos ou na Sexta-Feira Santa – é confiado na “Matthäus-Passion” a uma voz particular que é a do evangelista-tenor: é uma parte extremamente ingrata, porque é dificilíssima e nunca tem uma ária para se poder respirar. O seu é um “recitativo seco”, ou seja, acompanhado por poucos instrumentos: geralmente por um único instrumento a modo de “baixo contínuo”, que pode ser um violone ou um violoncelo, raramente o fagote.
As vozes dos vários personagens evangélicos intervêm dentro da narração. Quando há um diálogo, as partes são entoadas por vozes que naturalmente têm a ver com o personagem representado. A voz do baixo, por exemplo, é a voz do apóstolo Pedro. Quando as personagens femininas intervêm, as vozes são agudas: sabemos que, na época de Bach, as partes femininas eram entoadas por crianças ou, em todo caso, por homens com timbre e altura de voz tipicamente femininos.
A correspondência entre a personagem e o timbre de voz, porém, é deliberadamente rompida pelo próprio Bach nas árias, para criar uma espécie de alienação do fiel-ouvinte, para que este não se limite a assistir à Paixão do Senhor Jesus, mas se envolva nela, justamente pela falta de uma total correspondência entre o personagem e a voz. Isso se nota muito bem, na minha opinião, na ária “Erbarme dich – Tende piedade” (veja no vídeo abaixo), uma das mais belas e comoventes árias da “Matthäus-Passion”.
Uma peculiaridade da “Matthäus-Passion” é o fato de que a voz de Cristo – quando Cristo fala dentro da narrativa – é circundada, por assim dizer, por uma auréola sonora (veja no vídeo abaixo).
Enquanto o evangelista e os outros personagens cantam o “recitativo seco”, Cristo canta o “recitativo acompanhado”. Significa que, para acompanhá-lo, as cordas intervêm. Essa espécie de auréola sonora que circunda a voz de Cristo a torna imediatamente reconhecível e confere às palavras de Cristo uma qualidade musical diferente de todas as outras. É fácil pensar que Bach quis distinguir e enfatizar a sua divina humanidade: um homem como os outros, que fala como os outros e, portanto, canta como os outros, mas que, ao mesmo tempo, é o Senhor Deus.
Como mencionado, as intervenções dos coros também se inserem na narração do evangelista. Quando, por exemplo, o evangelista pronuncia as palavras “a multidão disse”, o coro assume o canto com aquilo que a multidão diz. Em alguns casos raros, ocorrem duetos: por exemplo, no caso das falsas testemunhas que cantam in canone em dueto (veja o vídeo abaixo).
Depois temos, além das árias, os ariosos. O arioso está entre o recitativo e a ária (veja o vídeo abaixo); é uma forma musical não tão lírica, não tão explicada, não tão livre quanto a ária; ao mesmo tempo, é muito mais livre do que o recitativo. É uma forma em que há muita declamação, e ao mesmo tempo o acompanhamento se torna mais musical.
As árias constituem talvez o momento mais imediato e mais agradável da “Matthäus-Passion”. Muitas vezes, elas veem uma presença de protagonismo de instrumentos musicais (veja o vídeo abaixo).
Nesses casos, trata-se mais de um dueto do que de uma verdadeira ária, no sentido de que a voz e o instrumento (ou os instrumentos) duetam, justamente, entre si. Bach quase sempre escolhe os instrumentos não apenas pelo seu timbre, mas também pelo seu valor simbólico. Isso ocorre muitas vezes na “Matthäus-Passion”. A função dos ariosos e das árias é a de oferecer um momento de respiração, de pausa, de meditação, de apropriação do texto evangélico por parte do fiel-ouvinte, a modo de meditação pessoal.
Não por último, na “Matthäus-Passion”, como mencionado, encontramos os corais que, em sua maioria, são apresentados de forma harmonizada (veja o vídeo abaixo), mas que às vezes encontramos na forma de melodias de corais inseridas no arco de outras formas.
Fiz referência à contínua dialética entre identificação e não identificação. Na “Matthäus-Passion”, há a parte fixa, narrada pelo evangelista, como testemunha ocular, e há a parte de assimilação espiritual, móvel, dos fiéis, de ontem, de hoje e de sempre. Há a leitura do Evangelho e há a sua transfiguração poética. Há os fatos históricos e há o memorial litúrgico. Os vários elementos se combinam na construção musical global como em uma grande liturgia. A narrativa evangélica – podemos dizer – corresponde ao momento da lectio divina, as árias e os ariosos juntos correspondem à meditatio pessoal, os corais têm a função da oratio, ou seja, da oração comunitária.
A criação e a primeira execução da Paixão são quase certamente atribuídas a 1727. Pensava-se antigamente em 1729. A retomada de Mendelssohn em 1829 queria ser uma homenagem ao centenário da obra. Temos certeza de que foi um ano ímpar porque, na Thomaskirche, a Paixão mais complexa ocorria precisamente nos anos ímpares. Sendo uma composição com coro duplo e orquestra dupla, era indispensável dispor dos dois órgãos que se encontravam e se encontram na Thomaskirche, e não na Nikolaikirche.
Falei repetidamente de coro duplo, mas se poderia falar de um terceiro coro. De fato, na primeira grande intervenção do coro, os dois coros principais dialogam entre si de uma forma já belíssima, quando um terceiro coro se encaixa de maneira ainda mais admirável do ponto de vista polifônico e contrapontístico. É um momento muito tocante (veja o vídeo abaixo).
Temos um magnífico manuscrito de 1736, ou seja, do período em que Bach estava fazendo as belas cópias das suas composições. É um manuscrito verdadeiramente muito bonito de se observar pela caligrafia, pela ordem e pela limpeza (disponível aqui). Mesmo quem não sabe ler música pode imaginar a sua complexidade: uma partitura para coro duplo e orquestra dupla e, portanto, com muitos pentagramas sobrepostos.
Eu quero dedicar a última parte desta apresentação à abordagem teológica de Bach à “Matthäus-Passion”. Como fino exegeta e homem espiritual que era, Bach captou muito bem o recorte diferenciado que caracteriza a narrativa evangélica da Paixão segundo Mateus em relação à de João: nesta última, o fulcro da narrativa – como sabemos – é posto na realeza de Cristo, porque, em João, a cruz representa a glória de Cristo; enquanto, no caso de Mateus, Cristo é acima de tudo “o homem das dores que conhece bem o sofrimento”, o servo sofredor de Isaías, o mais humano dos homens que pede para entrar na sua paixão com a nossa paixão humana, para assim entendê-la e amá-la.
A outra importante visão da Paixão do evangelista Mateus, na “Matthäus-Passion”, é o cumprimento das profecias das Escrituras em termos de resultados de salvação e de redenção. A divina-humanidade de Cristo é evidenciada pela auréola sonora das cordas e pelo estilo particular com que o Cristo de Bach canta os seus recitativos, com movimentos melódicos extremamente doces, extremamente agradáveis, a ponto de desembocar às vezes no arioso, como no momento da instituição da Eucaristia: um dos momentos mais comoventes, na minha opinião (veja o vídeo abaixo).
O personagem de Cristo nunca canta árias, ele sempre canta apenas as palavras do Evangelho. Na narração de Mateus, ele fala cada vez menos e, por isso, consequentemente, na Paixão bachiana, canta cada vez menos. Ao progressivo desaparecimento do personagem, porém, Bach faz com que se suceda uma presença mais misteriosa e espiritual dele: na segunda parte, de fato, ele aumenta o som das cordas: como se a auréola de que eu falei permanecesse, sem mais o homem Jesus.
O último aspecto bíblico e espiritual que quero destacar é a grande importância do Cântico dos Cânticos na “Matthäus-Passion”. O Cântico é o canto bíblico do amor por excelência. Parece não ter nada a ver com a Paixão e a liturgia da Sexta-Feira Santa. Na realidade, pode-se dizer que – na Paixão musicada por Bach – o olhar é feminino. Como se fosse a Igreja – a Esposa de Cristo –, a apaixonada, que contemplasse o que acontece com o seu Esposo. Desde o início, desde os primeiríssimos compassos e palavras do primeiro coro, encontramos o convite: “Vinde, ó filhas! Ajudai-me a chorar”.
É uma posição feminina que também encontramos depois em outros grandes coros que enquadram a “Matthäus-Passion”: por exemplo, na docíssima e pungente busca do amado, por parte da amada, no momento em que Jesus é capturado (veja o vídeo abaixo).
O aspecto feminino se conecta à importância do ícone do Cordeiro imolado e ressuscitado do Apocalipse, cuja Esposa é a Filha de Sião, a Igreja dos bem-aventurados, já projetada na visão escatológica.
* * *
O texto acima é a transcrição – editada por Tiziana Bacchi e Giordano Cavallari – de uma apresentação verbal revisada pela conferencista. Para uma escuta integral da obra, Chiara Bertoglio sugere a gravação de uma execução ao vivo dirigida pelo maestro Ton Koopman. Veja o vídeo em duas partes abaixo: