Paixão Segundo São João de Bach: fraqueza humana e consolação divina

Yara Caznok (Foto: Ana Paula Abranoski)

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Por: Jonas Jorge da Silva | 20 Março 2018

Do encontro entre música e espiritualidade se abre possibilidades de vivência do Mistério Pascal. Pela maestria de Johann Sebastian Bach (1685-1750), com sua obra Paixão Segundo São João – BWV 245, composta em meados de 1724, um grupo de pessoas atentas e dispostas vai se deixando conduzir pela beleza, profundidade e dinamismo desta obra-prima do barroco, comentada pela professora de música Yara Caznok (UNESP-SP). A audição comentada ocorreu na manhã do último sábado, 17 de março, promovida pelo CEPAT, com o apoio do IHU.

A partir dos capítulos 18 e 19 do Evangelho de São João, Bach consegue oferecer uma obra musical capaz de integrar os sentimentos e vivências da Paixão de Jesus Cristo, conduzindo os ouvintes a uma intensa meditação a respeito do genuíno sentido da entrega do Filho de Deus em favor de toda a humanidade.

Frente à frenesi dos dias atuais, ouvir a Paixão Segundo São João é um exercício libertador e curativo, que aos poucos coloca o ouvinte em uma outra dinâmica interior, suspendendo de si as divagações mentais e lhe abrindo a possibilidade de se concentrar no mistério da fé.

Bach desperta na assembleia reunida o desejo de participar, de estar presente nas cenas da Paixão. Cabe a cada um examinar a si mesmo, colocar-se no lugar do personagem com o qual mais se identifica. Assim como a chuva, a música vai irrigando os corações e o exercício de concentração auditiva vai se estabelecendo.

No contraste entre a assertividade de Jesus, que quando procurado por seus algozes não se exime do que iria enfrentar: “Sou eu”, e a fraqueza humana de Pedro, figura emblemática que sente medo, oscila e nega o Senhor, cada cristão pode se confrontar com suas verdades mais íntimas.

Participantes da "Audição Comentada - A Paixão Segundo São João" de Bach (Foto: Ana Paula Abranoski)

Yara Caznok enfatizou que diante da pergunta categórica: “Não és tu também discípulo deste homem?”, Bach cinge musicalmente a resposta de Pedro, “Não sou eu, não!”, com um sentimento de insegurança e oscilação.  De fato, é próprio da nossa condição humana enfrentar as contradições entre convicção e incerteza, altruísmo e egoísmo, lealdade e traição.

Aliás, a condição de Pedro, na narrativa da Paixão, é tão importante na obra de Bach que para dramatizar o seu choro expansivo, o compositor sai brevemente do Evangelho de João e, de forma cirúrgica, retira do Evangelho de São Mateus o choro arrependido do discípulo: “Então Pedro, lembrando as palavras de Jesus, saiu dali e chorou amargamente” (Mt 26,75).

Nos momentos de maior emoção, como no choro amargo de Pedro, Bach abandona o canto silábico (racional) e conduz o ouvinte ao campo das emoções, não poupando em nada o uso dos melismas. Nesse ínterim, cada pessoa é convidada a adentrar em sua memória afetiva, na intimidade de sua história nem sempre exposta, mas intensamente vivida. A música conduz a sentimentos díspares, mas integrados: dor e consolação, sofrimento e alegria, mesquinhez e gratidão, pecado e arrependimento, morte e vida.

São nos dramas da fraqueza humana e consolação divina que a Paixão Segundo São João vai operando em cada pessoa a graça de meditar a entrega do Filho de Deus por cada um de nós e por toda a humanidade. A mensagem libertadora é clara na interpretação do coral: “Por tua prisão, ó filho de Deus, vem-nos a liberdade/Tua prisão é o trono da graça, o asilo de todos os devotos/Pois se tu não tivesses entrado em servidão/Eterna seria nossa própria servidão”.

Séculos depois, a obra de Bach continua ressoando como um chamado para águas mais profundas. A centralidade da Páscoa do Senhor não cabe em águas rasas. Diante do turbilhão de mensagens e relações instantâneas, nos dias atuais, talvez seja o momento adequado de expandir o grande legado cultural e espiritual da música sacra. O processo de concentração auditiva e meditação profunda é libertador, principalmente em um mundo no qual reina a lógica do trivial e do passageiro. Para que a mensagem evangélica seja frutífera, são primordiais ouvidos atentos e um coração acessível.

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