Chiara Bertoglio é musicista (pianista), musicóloga e teóloga. Aqui a responde às perguntas de SettimanaNews por ocasião da data de aniversário da morte de Johann Sebastian Bach (28 de julho de 1750).
A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 28-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Chiara, você pode traçar uma breve linha de ligação cultural entre a época das Reformas do século XVI - às quais você se dedicou extensivamente - e a época de Johann Sebastian Bach?
Entre a época das grandes Reformas e a época de Johann Sebastian Bach (Eisenach, 31 de março de 1685 - Leipzig, 28 de julho de 1750), há um evento histórico muito longo, muito profundo e dramático, que é a "Guerra dos Trinta Anos".
Como bem sabemos, como toda guerra, essa certamente não favoreceu o estabelecimento de uma convivência pacífica entre as confissões cristãs, especialmente na Alemanha. E ainda assim - como em todo evento ruim – resultou também algo benigno. Do ponto de vista musical - paradoxalmente (mas nada na história é tão paradoxal!) - intensas trocas se desenvolveram entre patrimônios culturais em rápida evolução, ainda que dentro dos limites permitidos pelos respectivos cultos.
No âmbito evangélico, o que Lutero - músico – havia semeado e os seus seguidores já haviam bem cultivado, amadurece justamente no século XVII e, portanto, no 1700 de Bach. Em particular, a forma do "coral" torna-se criativa no serviço litúrgico e na pastoral.
Lutero também havia permitido liberdade de linguagem musical - ao contrário de outros reformadores - possibilitando, quase dois séculos depois, contaminações positivas - até com a "ópera lírica" italiana - e a promoção de talentos e de gênios musicais (e não apenas musicais), como certamente foi J.S. Bach.
A principal referência teológica para o luterano Bach foi, portanto, Lutero?
Lutero com suas obras foi - sim - indubitavelmente e diretamente decisivo na formação de Bach, mas não esqueçamos que Bach foi músico de igreja, portanto a serviço das igrejas para as quais trabalhou, inevitavelmente influenciado, por exemplo, por excelentes pastores e pregadores, conhecidos nessas igrejas.
Esses pastores afundavam as raízes de seus sermões nos textos de Lutero, mas, é claro, também colocavam algo próprio com o objetivo de transmitir uma visão teológica completa às suas comunidades. Os músicos encarregados da liturgia - como Bach - tiveram necessariamente um papel orgânico na transmissão comunitária desta visão teológico-pastoral tão apurada.
Uma fonte de inspiração que hoje - graças às pesquisas mais recentes sobre os estudos de Bach - veio plenamente à luz é a chamada Bíblia de Calov: trata-se de um grande tesouro, enorme também por dimensões, no qual se encontra o texto traduzido da Bíblia traduzido por Lutero e enriquecido pelos comentários do grande teólogo de Wittenberg, Abraham Calovius. Pois bem, foram encontrados e estudados os volumes da Bíblia de Calov nos quais Bach deixou suas numerosas anotações, tanto sobre o Novo quanto sobre o Antigo Testamento.
Lembro-me, por exemplo, de uma anotação muito interessante com que Bach compara seu trabalho ao dos artesãos que construíram a arca da aliança no livro do Êxodo: segundo ele, o mesmo cuidado deveria ser posto, musicalmente, à Palavra de Deus e ao culto de Deus.
Bach trabalhou só ao serviço de igrejas luteranas?
Em Köthen, Bach desempenhou o único trabalho em uma corte calvinista, portanto não luterana. Trabalhava para a igreja e a comunidade, mas não frequentava o culto calvinista. De fato, daquele período existem muitas obras instrumentais de extraordinária riqueza e não menor inspiração religiosa, a meu ver.
Parece que em seu último serviço, tenha manifestado algum dissenso em uma igreja luterana, é verdade?
Em Leipzig, Bach expressou toda a sua contrariedade à "burocracia" que evidentemente passou a interessar tanto ao Estado como à Igreja - evidentemente a todas as Igrejas - impedindo que a criatividade e os talentos pessoais florescessem plenamente.
Com efeito, há documentos que atestam um certo contencioso de sua parte, ou melhor, um certo pesar e indignação em algumas circunstâncias. No entanto, acredito que esse aspecto não deva ser enfatizado. Inclusive porque não temos elementos suficientes para afirmá-lo.
Certamente devemos considerar também a responsabilidade que Bach sentiu, de forma muito forte, por sua numerosa família e, portanto, por sua manutenção. Em suas cartas às autoridades também entraram suas questões econômicas, nunca fáceis, para não dizer difíceis. Bach foi um gênio. Mas principalmente um homem de carne e osso, às voltas com os problemas da vida de todos e do dia a dia.
Quais são os fatos de sua vida e os traços de seu caráter que você considera relevantes?
Entre os aspectos decisivos de sua biografia, certamente devem ser lembrados os lutos precoces e as fortes dificuldades vividas. Seus pais morreram quando ele ainda era um menino. A dor deve ter sido muito grande.
Ele não teve possibilidade de estudar, frequentar a universidade, fazer tudo o que seu potencial lhe teria permitido. A sua primeira esposa morreu muito cedo deixando-o já com vários filhos e não poucos problemas de natureza bem concreta. Os lutos não pararam nem mesmo com os filhos. A mortalidade infantil era muito alta na época. Era normal que alguns filhos não chegassem à idade adulta.
Obviamente, isso não diminuía a dor que a morte dos filhos sempre acarreta. Bach também trouxe consigo a dor da deficiência de algumas dessas crianças, numa época em que a deficiência carecia de reconhecimentos, estima e apoio social. Esses são talvez traços pouco conhecidos ou pouco lembrados da grande figura, muitas vezes transfigurada pela aura magistral de sua música. No entanto, este foi o homem: Bach.
O que é rastreável sobre o que você acabou de dizer na música dele?
A arte como "expressão de si" deve ser entendida como uma ideia posterior à época de Bach: será a nota característica da época romântica, também na música. Mas inevitavelmente - sempre - na música, como na arte em geral, passam as experiências humanas da vida. O objetivo que perseguia em sua música - especialmente música sacra - certamente não era "pessoal".
Sua música "sacra" tinha que transcender os indivíduos, com suas contingências e suas biografias, para chegar ao caráter de universalidade e eternidade. É esse anélito de tornar a música de Bach verdadeiramente universal, verdadeiramente "eterna", pela graça de Deus.
Quero acrescentar que isso não quer dizer que sua música não foi e não esteja carregada de “afetos” humanos: em seu tempo usava-se justamente este termo - afetos - para se referir ao componente emocional da música. E os afetos da música de Bach são infinitos. Mas isso não deve ser entendido de uma maneira intimista, solipsista, muito menos heroica. A sua música tende para a plenitude da vida humana: por isso na sua música “há Deus”.
Você pode citar pelo menos um exemplo musical que represente juntas a visão teológica e a vida?
Bach escreveu música sacra principalmente para celebrações litúrgicas, para os domingos e as festas do calendário. Portanto, sua música cobriu todos os temas teológicos fundamentais do cristianismo, com uma clara orientação luterana, como eu disse. Certamente existem alguns “temas” tão profundos que deixaram um traço inconfundível.
Refiro-me, em primeiro lugar, ao tema da morte. Mesmo o ouvinte contemporâneo - todo ouvinte - não pode deixar de ficar surpreso, impressionado, pela maneira como Bach "medita" sobre o tema da morte, uma meditação amplamente omitida da cultura contemporânea: Bach medita a morte na música sem tirar nada do drama, mas sempre com extrema doçura, tendendo a produzir um efeito consolador, belo, nunca desesperado e desesperador.
A sua meditação musical - em primeiro lugar sobre a humaníssima morte de Jesus - foi capaz de ampliar magnificamente a especificidade dos textos evangélicos. Estou me referindo em especial às Paixões compostas por Bach.
A ideia da ressurreição está obviamente correlacionada com a morte: Bach a representa de uma forma que eu defino, musicalmente, "em relevo", isto é, particularmente esfuziante, capaz de imprimir em todos um sentido de coragem. Não é - atenção - uma versão triunfalista da ressurreição a que aparece.
Que instrumentos estilísticos Bach tinha à disposição em sua época para tais níveis de expressividade?
Bach claramente usa elementos e instrumentos musicais de sua época. Por isso sua música pode perder um pouco de sua força inovadora e explosiva nos ouvidos de nossos contemporâneos. Mas eu diria que ele soube conferir - com esses mesmos instrumentos - sensações muito fortes e certamente inovadoras para a sua época.
Gostaria de esclarecer, mesmo para os não especialistas, quais eram os gêneros musicais “sacros” praticados por Bach?
Como eu disse, a música "sacra" de Bach era pensada exclusivamente para o culto nas igrejas, não para as salas de concerto. É uma música baseada no gênero do "coral" que é propriamente uma melodia que só posteriormente é harmonizada.
Bach nos deixou muitas harmonizações dos numerosíssimos corais que já circulavam em seu ambiente. Deixou-nos também prelúdios de corais, ou seja, peças para órgão - portanto não vocais - em que a melodia simples do coral, em valores longos, é rodeada e enriquecida por outras múltiplas melodias.
Aqui, quero simplesmente expressar que Bach via tudo em função do coral efetivamente entoado em uma específica circunstância litúrgica e de edificação pastoral da comunidade. Mesmo nas grandes Paixões encontramos a harmonização de corais que constituíram – tinham que constituir - a resposta ativa e contemplativa dos fiéis, reunidos em comunidade, em relação à Palavra ouvida.
O modelo da lectio divina - lectio oratio meditatio - ainda era basicamente muito próximo. As "cantatas" - das quais o "oratório" e a "paixão" podem representar versões ampliadas de um determinado ponto de vista - são construídas por Bach a partir da forma do "coral"; outras vezes, têm uma forma construtiva mais livre.
No entanto, nunca devemos esquecer o uso da igreja: as "cantatas" serviam de sermão em música, com recitativos, árias, duetos, peças instrumentais: deviam, assim, servir de moldura para a Palavra e o seu comentário. Normalmente terminavam e terminam com o Amém da assembleia. É fácil, portanto, entender por que compor cantatas para todo o ano litúrgico tenha sido a principal ocupação de Bach.
Por isso, hoje dispomos de uma obra imensa, feita, porém, para ser "usada", não monumentalizada. Certamente as celebrações no tempo de Bach demoravam muito tempo, duravam horas. Portanto, essa música foi transferida - mesmo em âmbito luterano - para a sala de concerto ou para igrejas como salas de concerto. Mas, no mínimo, devemos estar cientes de que Bach não compôs com tal finalidade.
Os textos não bíblicos de suas obras de igreja foram escritos diretamente por ele?
Como mencionei, Bach era uma pessoa muito culta, não apenas musicalmente. Ele conhecia várias línguas muito bem, não apenas a sua; ele conhecia latim muito bem. Ele era perfeitamente capaz também de escrever as letras de sua música religiosa.
No entanto, sempre se colocou ao serviço das igrejas comissionantes, musicando os textos que lhe eram apresentados. Portanto, pessoalmente, acredito que ele tenha se limitado a pequenas intervenções nos textos, principalmente por ajustes vocais para a sua música.
Como você explica a reconciliação nada fácil entre palavras e música em Bach?
Certamente a relação entre Palavra sagrada, palavras de comentário e música é de fundamental importância em Bach que mostrou grande atenção à inteligibilidade dos textos para o benefício das assembleias dos fiéis. Muitas vezes recorreu ao chamado madrigalismo, ou seja, à descrição - repetida - na música até mesmo de uma única e determinada palavra, para que esta fosse bem compreendida e internalizada.
O resto Bach o fazia com a música, com os traços característicos de sua música, passando a "significar", justamente com a música, o sentido das palavras, principalmente as mais importantes. Por exemplo, Bach musicou o Ascendit do Credo (da Missa em Si menor) com uma melodia festiva e ascendente. Ainda mais refinado e original resulta o uso de algumas de suas metáforas, ao mesmo tempo linguísticas e musicais. Vou mencionar uma que aprecio muito.
Em suas obras retorna naturalmente o motivo da aspiração do homem a Deus, ciente da impossibilidade de tal elevação em função de suas fracas forças humanas, senão em virtude - portanto - da intervenção da graça de Deus. Tomemos o famoso Erbarme dich, a oração colocada como comentário sobre a traição de Pedro na Paixão segundo Mateus: é uma ária maravilhosa em que tanto a soprano - a Palavra - como a música - o violino - apresentam um desvio e um salto para o alto: ao socorro da extrema fragilidade humana dirige-se - para elevá-la - à graça divina. É um gesto musical de extrema eloquência. Não precisa de outras palavras.
Certamente os italianos hoje podem ouvir essas belas peças - compostas por palavras e música - em alemão e, além disso, no alemão do século XVIII: as traduções em italiano ajudam, mas não bastam. Perde-se algo precioso. Mas mesmo que não consigamos entender o texto, a música é capaz de nos transportar para onde o texto quer.
Foram cunhadas definições muito elevadas de Bach, especialmente, obviamente, na esfera luterana e reformada em geral: "músico teólogo" ou "quinto evangelista". O que você pensa disso?
Certamente Bach foi um grande músico e um teólogo culto. Eu não usaria definições tão exigentes. Gostaria aqui de tentar transmitir a sua grandeza de músico na sua ordinária humanidade, como é própria de todo cristão autêntico e, portanto, também de músico e de teólogo.
Gostaria, portanto, de dizer que parte este autor teve para mim, também como evangelizador: sim, porque ele doou tanto à minha vida artística como àquela espiritual, juntas. Sou devedora a ele por tantas impressões musicais, teológicas e espirituais.
O que continua a me impressionar é que mesmo outros colegas músicos, em si "não crentes", não fiquem espiritualmente indiferentes à música de Bach. Já ouvi dizer: não sei se Deus existe, acho que não: mas, se existe, acredito que seja como Bach o “descreveu” com a sua música.
Efetivamente, Bach desperta sensações de transcendência - e, digamos, até mesmo de fé - mesmo em pessoas que não cultivam nenhum pertencimento. A música sacra de Bach é hoje amplamente ouvida no mundo, mesmo por pessoas que se dizem "ateias" ou que pertencem a tradições religiosas e culturais muito distantes: por exemplo, no Japão ou talvez na China.
Certamente, se essa percepção fosse acompanhada pelo conhecimento e pela compreensão da cultura da qual provém - isto é, das chamadas "raízes cristãs" - seria uma grande coisa, independentemente da aceitação da fé ou não. É por isso que acredito ser importante que o mundo todo conheça a música de Bach.
Bach também é um ícone ecumênico reconhecido hoje?
A esse respeito, lembro-me apenas de um episódio. Lembro do então cardeal Ratzinger sentado ao lado do bispo luterano de Munique ouvindo a Cantata BWV 140 Wachet auf ruft uns die Stimme: no final da execução, aquele que se tornaria o Papa Bento XVI disse ao bispo luterano: essa é a verdade! Esta expressão - evidentemente provocada pela emoção produzida pela escuta - parece-me perfeita para representar a capacidade dessa música para superar todos os preconceitos e todas as barreiras teológicas e culturais.
Chiara, você está diretamente engajada na obra de divulgação do conhecimento da música de Bach: como?
Meu compromisso, ao mesmo tempo como música, musicóloga e teóloga, pela promoção da música de Bach, aspira posicionar-se em vários níveis. Com Maria Borghesi fundei a associação JSBach.it: o objetivo é divulgar Bach através de iniciativas ligadas à sua figura na Itália.
Além dessa intenção associativa, existe o projeto discográfico que estou realizando com a Da Vinci Classics: 3 CDs já foram publicados, 5 estão gravados; referem-se a peças que Bach dedicou à Itália ou peças que compositores italianos produziram a partir da música de Bach. Em especial, Busoni.
Pessoalmente, sempre me impressionei com a lógica quase matemática com que Bach compõe músicas capazes de despertar tantas emoções e “afetos” humanos, como você disse. Como você me explica isso?
A originalidade dessa música é autêntica, mas a contradição é apenas aparente: a contradição foi engendrada pela cultura sucessiva a Bach, aquela cultura que, até hoje, pretendeu seccionar o humano, separando a razão e tornando-a cada vez mais algo abstrato.
Na realidade, a razão - entendida segundo a Fides et ratio de João Paulo II - é "o sujeito do qual a fé é o predicado", isto significa que a nossa fé só pode passar pela nossa razão integral que certamente não deve ser compreendida como puro exercício de raciocínio, mas também como nosso patrimônio pessoal de experiência, de memória, de afetividade...
É verdade, Bach possuía um cérebro incrível do ponto de vista matemático: provavelmente teria sido capaz de um cálculo combinatório da complexidade de seu contraponto.
Mas Bach não foi um grande músico porque foi um grande "matemático": o foi porque foi uma pessoa verdadeira, autêntica, integral, com seus sofrimentos, seus afetos, fragilidade, com toda a sua inteligente humanidade penetrada pela graça da fé.