Não é exagero dizer que, atualmente, é o evento mais importante no cenário intelectual africano, e também um dos principais no mundo francófono e na esfera da decolonialidade. As Oficinas de Pensamento (Ateliers de la Pensée, em francês) nasceram em 2016, na capital de Senegal, Dakar, pelas mãos de dois grandes nomes do continente, o camaronês Achille Mbembe e o senegalês Felwine Sarr. Desde o início, a intenção de ambos foi reivindicar a soberania teórica da África e sua diáspora.
A reportagem-entrevista é de Laura Feal e Ángela Rodríguez Perea, publicada por El Salto, 19-04-2022. A tradução é do Cepat.
Com quatro edições, o evento se tornou indispensável pela expectativa que suscita, pela capacidade de reunir uma verdadeira constelação de personalidades de todos os horizontes e pela surpreendente lucidez e pluralidade de propostas. Desde a sua criação, incluem reflexões de grandes figuras do pensamento universal, como o filósofo Souleymane Bachir Diagne, a ex-ministra francesa Christiane Taubira, a cientista política Françoise Vergès e escritores como Léonora Miano, Alain Mabanckou e Mbougar Sarr, que recentemente recebeu o Prêmio Goncourt.
As Oficinas, como são popularmente conhecidas, relembram outros momentos históricos como os dois Congressos de Escritores e Artistas Negros, realizados em Paris, em 1956 e 1959, que tinham a mesma vocação de difundir um discurso comum ao mundo, com grande eco midiático, ampliando vozes tradicionalmente não ouvidas.
O evento acontece por meio de mesas-redondas, seguidas de uma rodada de perguntas abertas ao público, onde os convidados refletem sobre o tema geral e apresentam suas últimas linhas de pesquisa. Os painéis também vão até altas horas da madrugada, em um formato pouco usual que faz pensar em um verdadeiro Festival de Ideias.
Ao longo do tempo, além das apresentações acadêmicas, as manifestações artísticas foram adquirindo um papel cada vez mais significativo, integrando disciplinas como a dança contemporânea, a música, a performance e o teatro. Dessa forma, os fundadores procuram produzir saberes a partir de um centro diferente do ocidental, mas também reivindicar formas de conhecimento não discursivas.
A quarta edição das Oficinas do Pensamento foi realizada de 23 a 26 de março, no simbólico Museu das Civilizações Negras de Dakar, reunindo um número considerável de público presencialmente – cerca de 200 pessoas por dia, segundo a organização –, além de mais de 1.000 seguidores online pelas redes sociais, tanto de dentro como de fora da África.
Com o título “Cosmologias do vínculo e formas de vida”, as conferências giraram em torno de temas como o ecofeminismo, os saberes indígenas e as cosmopolíticas da solidariedade. As reflexões forneceram chaves para enfrentar os desafios globais em um mundo pós-pandemia, enunciando soluções que passam pela comunidade e o vínculo, em um contexto em que reações conservadoras e excludentes ressurgem com força inusitada.
Felwine Sarr (1972, Niodior, Senegal), cofundador da iniciativa, é economista, professor, escritor e músico. Seu ensaio Afrotopia (2016), que navega na intersecção de disciplinas como história, economia, sociologia e filosofia, teve forte impacto no ativismo africano e afrodescendente, e seu título atraente foi reutilizado por programas de rádio, bienais e até por peças de teatro. Sarr também foi o responsável pelo famoso registro sobre a Restituição do Patrimônio Cultural Africano presente nos museus franceses, algo que o posicionou por três anos consecutivos no topo da famosa lista Artpower 100, o ranking de referência das pessoas mais influentes na arte contemporânea.
Após vários anos na Universidade Gaston Berger de Saint-Louis, Senegal, atualmente leciona na Universidade Duke, na Califórnia, o que não o impede de realizar projetos em seu país natal, como é o caso das Oficinas, contexto a partir do qual nos recebe. Enquanto acompanha seus mais de 40 convidados internacionais e vinte veículos de comunicação, faz uma pausa para respirar um pouco no terraço do conhecido Hotel Le Djoloff, no centro da cidade: com um café e semblante sério, repassa a origem e arisca o futuro desta experiência.
A entrevista foi publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU no dia 20-04-2022.
O tema das Oficinas de Pensamento de 2019, “Flutuação dos mundos e práticas de desvulnerabilização”, foi uma premonição do que aconteceria em 2020.
Confesso que não sabíamos que haveria uma pandemia, mas naquele momento a questão da “desvulnerabilização” nos interessava. Víamos como essas práticas estavam sendo construídas nas sociedades da África, e também em outras partes do mundo, onde o Estado não cumpre sua função de cuidar dos indivíduos, onde há importantes fissuras na educação e na saúde, por exemplo. Perguntamo-nos como as sociedades cuidam de si mesmas nesses lugares onde o poder público não chega, embora nossa análise não tivesse como objetivo que o público deixe de assumir essa função, é claro.
Quando a pandemia chegou em Dakar e a resposta foi fechar as fronteiras, vimos que os debates daquele momento ignoravam a forma de pensar o cuidado dentro das comunidades, esses saberes que a humanidade foi construindo ao longo prazo. Houve um momento em que as pessoas, aqui, não acreditavam no vírus, porque não viam mortos ao seu redor. Os imaginários em relação à doença, produto de uma longa história, não foram objeto de nenhum trabalho sociológico ou antropológico, embora fossem ao menos para melhor transmitir a mensagem de que estávamos diante de uma verdadeira pandemia, que não se tratava de uma história dos ocidentais.
Como essa experiência impactou nesta última edição das Oficinas?
Antes da pandemia, sonhávamos com um mundo unido, tentávamos dar uma resposta ao contexto da globalização econômica neoliberal. Trabalhávamos questões como mobilidade entre fronteiras, formas de lidar com a crise ecológica, de criar uma comunidade humana etc. Em resumo, como “fazer o mundo” de uma forma positiva…
Contudo, com a crise, os processos de desagregação que já estavam em curso se cristalizaram: a chamada comunidade internacional se retraiu na esfera nacional, o comum se reduziu ao tribal. Cada um administrou suas dificuldades separadamente, houve uma guerra mundial pelas máscaras, e com a vacina chegamos realmente a uma situação extrema, de “não fazer mundo”: a solução que supostamente deveria reequilibrar a situação global se vê monopolizada por alguns países, que guardam mais reservas do que precisam e distribuem vacinas para outros países com menos recursos a quatro dias de sua data de vencimento...
Diante disso, decidimos repensar a questão ecológica: como restabelecer o vínculo com as espécies animais e vegetais que fomos despojando de seus habitats, e também a política, sobre como refazer as comunidades em escala mais ampla. Daí nasceu a ideia de pensar as cosmologias que já existem em algumas partes do mundo, como na África e na América Latina, que articulam vínculos e outras formas de habitar o território diferentes daquelas que a economia neoliberal nos propõe. Também nos interessaram as novas práticas econômicas e sociais que poderíamos inventar e quais poderiam ser os novos espaços para colocá-las em prática.
Pandemia, crise climática, reorganização geopolítica intensificada a partir da guerra na Ucrânia... O tema proposto este ano parece buscar apontar pistas para explorar respostas às conjunturas mundiais atuais. Esta é a nova vocação das Oficinas?
Nas duas primeiras edições, quisemos que a África fizesse o uso da palavra, refletir a partir do continente e a diáspora sobre o nosso próprio destino, por isso foram tratadas principalmente questões decoloniais, embora não deixassem de ser assuntos globais que talvez concernem um pouco mais a nós, africanos.
No processo de reflexão posterior, decidimos não nos concentrar em assuntos exclusivamente africanos: devíamos ser um lugar para discutir problemáticas comuns deste mundo que compartilhamos, e pensá-las com pessoas que vêm de diferentes lugares, assumindo essa abertura. Nesse sentido, não queremos reproduzir o que jogamos na cara da Europa: seu eurocentrismo, sua maneira de pensar o mundo a partir deles mesmos. Se queremos pensar o mundo, temos que fazer isso com os outros.
Nesta edição, queríamos começar um diálogo com a América Latina e, embora Natalia Brizuela (professora associada de literatura e cultura latino-americana moderna e contemporânea da Universidade da Califórnia, Berkeley, NDLR) tenha participado, não conseguimos atingir o nível que desejávamos, por questões logísticas. Também convidamos personalidades europeias e estadunidenses, e tentamos contar com pessoas das África lusófona... Faltou a Ásia, embora tenhamos exibido um documentário do cambojano Rithy Panh, que participou por videoconferência. Temos a vontade e o desejo de incluir a diversidade dos espaços que ainda faltam.
Como as ideias que estão sendo criadas nas Oficinas podem influenciar na forma de fazer política?
O espaço político é muito difícil como regra geral. Minha experiência pessoal é que, para que não haja risco de manipulação, deve haver uma missão clara quando um responsável político pede expressamente uma opinião especializada sobre um tema e o trabalho é realizado para atender a essa solicitação concreta.
Amartya Sen (economista e filósofo indiano, NDLR) me ensinou que a atividade mais produtiva é reintroduzir no corpo social certo número de resultados dos saberes produzidos, na ótica de sua inteligibilidade. Quando a elite política se preocupa em ter uma boa informação, vai encontrá-la, mas se, ao contrário, quer outra versão, também sabe onde encontrá-la. Basicamente, penso que é mais útil colocar certas ideias à disposição da sociedade do que da classe política.
E considera que efetivamente as novas ideias e propostas que vêm sendo discutidas nesses fóruns, ao longo dos anos, acabam sendo disseminadas na sociedade?
É a grande questão. As Oficinas recebem constantemente uma crítica por elitismo e falta de disseminação. As pessoas se perguntam como essas reflexões podem afetar o senhor da cidade de Thiaroye, aqui no Senegal, e a sua vida cotidiana de forma prática. Eu renunciei à ideia de que os saberes que estamos plasmando, que exigem paciência, influenciem de forma imediata nas sociedades humanas. Acredito que há um segundo trabalho de divulgação e de reinjeção dessas ideias no corpo social. Essa tarefa não pode ser realizada no mesmo tempo em que o saber se constitui.
De qualquer forma, os recursos produzidos pelas Oficinas ficam à disposição do mundo todo por meio de livros, vídeos etc. É preciso aceitar a sequencialidade dos processos e a distribuição de papéis entre diferentes atores sociais e, nesse sentido, é necessário pensar quais são os formatos ou plataformas para efetivá-los de forma prática. Nós tentamos fazer isso em Souza, uma cidade da região litorânea dos Camarões. Montamos um pequeno laboratório lá para experimentar, a Fábrica de Souza, para onde voltaremos no próximo mês de abril.
Conte-nos um pouco mais sobre essa experiência que vai além da esfera teórica.
A Fábrica de Souza é um espaço experimental, a 40 km de Douala (Camarões), onde estamos tentando colocar em prática uma economia experimental agroecológica, relacional e de comunhão com os demais seres vivos. Após a segunda edição das Oficinas de Pensamento, em 2017, cujo tema foi “Condição planetária e política dos seres vivos”, a responsável pela Galeria MAM, Marlène Malong, presente naquela edição, nos convidou para tornar seu espaço um lugar da prática para aterrissar as ideias teóricas. A primeira ação foi fazer uma cartografia, que realizamos com uma equipe multidisciplinar para estudar a história, geografia e antropologia etc., do lugar, com o objetivo de identificar os saberes que existem no território.
Na equipe em que estamos trabalhando, há três doutorandos de universidades dos Camarões, e também a filósofa Séverine Kodjo-Grandvaux, a professora de ciência política Nadine Machikou, o antropólogo Parfait D. Akana e o economista colombiano Diego Landivar, entre outras pessoas. Neste ano, a ambientalista Isabelle Delannoy [participante da quarta edição das Oficinas, trazendo o seu conceito de economia simbiótica] se juntou a nós com sua equipe. Possuem mais de uma década de experiência na criação de economias neutras em carbono. O objetivo é criar uma economia de circuitos curtos, na qual o campesinato da região possa obter receitas melhores e se inserir melhor nas redes de troca, descarbonizando, ao mesmo tempo, suas práticas.
Após esta última edição, as Oficinas estão se consolidando como um evento histórico e gerando muita expectativa, tanto dentro como fora do continente. Como estão planejando o futuro da iniciativa?
Vamos nos dar um tempo para avaliar com mais clareza como abordar uma edição futura. No entanto, em relação à Escola Doutoral [uma iniciativa acadêmica também derivada das Oficinas] temos uma ideia mais clara de transformá-la em uma universidade de verão. A pandemia havia impedido a realização da convocação anterior a esta, em 2020, mas acabamos de encerrar a segunda edição com 18 doutorandos e doutorandas de todo o mundo: Colômbia, Brasil, Itália, Mali, Gana, Camarões etc.
As mesmas questões que seriam debatidas nas Oficinas, algumas semanas depois, foram tratadas lá, e deu muito certo. Sentimos que a iniciativa evoluiu positivamente, com reflexões mais qualificadas. Agora estamos pensando em como garantir um acompanhamento das diferentes promoções, criar também uma universidade de verão onde sejam oferecidos oficinas e seminários e preparar uma plataforma online para trabalhar em rede de forma mais permanente.
No dia 20 de julho (quarta-feira), às 10h, o Prof. Dr. Felwine Sarr ministrará a conferência Afrotopia, Ética e Economia. “Habitar o mundo” no Antropoceno. A atividade integra o Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo.
Afrotopia, Ética e Economia. “Habitar o mundo” no Antropoceno