16 Março 2022
Ela vem se projetando como uma das principais vozes da comunidade científica brasileira contra o negacionismo que potencializou a crise sanitária no país. Trata-se da médica Margareth Dalcolmo, que lançou recentemente o livro Um tempo para não esquecer – A visão da ciência no enfrentamento da pandemia do coronavírus e o futuro da saúde (Editora Bazar do Tempo).
Capa do livro (Foto: Divulgação)
A reportagem é de Marcelo Menna Barreto, publicada por Extra Classe, 15-03-2022.
Em menos de um mês de lançamento, a primeira tiragem já havia se esgotado nas livrarias. Com nova impressão, o livro já voltou a ficar à disposição do público para comercialização desde o final de janeiro, segundo informações da editora.
Pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Margareth Dalcolmo foi reconduzida em fevereiro para um novo mandato de quatro anos no grupo de peritos responsáveis pela aprovação de medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Única cientista latino-americana no Expert Group for Essential Medicines List, que tem um processo de seleção muito rigoroso para evitar conflitos de interesses com a grande indústria farmacêutica – as tais Big Pharma na boca dos negacionistas “mais ilustrados”, a doutora Margareth passava sem chamar muito a atenção do grande público até 2020.
Não foi à toa que, antes de completar um ano da pandemia, o escritor Zuenir Ventura, em sua coluna no jornal O Globo, escreveu: “Vocês já repararam que se fala mais em Margareth Dalcolmo do que de Neymar?”. E ainda era fevereiro de 2020.
O status de ser uma médica discreta para os olhos leigos se modificou, como tantos outros, pela forte penetração do ambiente digital. Ao voltar de uma reunião no Ministério da Saúde com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a OMS, em Brasília, Margareth dividiu, no dia 15 de março de 2020, informações sobre as diretrizes de combate à pandemia em uma live do site Pneumoimagem.
Em um só dia, Margareth Dalcolmo obteve um milhão e meio de visualizações. Para se ter uma ideia do volume, em se tratando de um ano que foi marcado por lives de artistas, a maior audiência no YouTube até então havia sido da cantora sertaneja Marília Mendonça, no dia 8 de abril, com 3,31 milhões de visualizações.
A diferença é que, ao contrário da artista, Margareth não estava fazendo um show, nem tinha milhões de fãs. Estava falando de ciência, um tema ainda considerado árido nos dias de hoje. Dalcolmo, neste caso, gosta de referir um exemplo histórico: “Depois da peste do século 14, veio o Renascimento. Que sejamos capazes de um pequeno renascimento. Precisamos sair disso convencidos de que a ciência tem que servir para melhorar as relações humanas”.
Do site a ser convidada para dar entrevistas nas mais variadas rádios e TVs do país e até para a agência internacional de notícias France Press, onde se comunicou em um francês perfeito, foi um pulo.
Margareth ainda passou a ser colega de Zuenir Ventura, em O Globo, menos de um mês após a pergunta retórica do escritor, assinando, ao lado de outros quatro articulistas, a coluna A Hora da Ciência.
O certo é que Margareth cada vez mais se notabiliza pelo traquejo como comunicadora. Diante do bate-cabeças promovido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) na gestão da crise sanitária que acabou ceifando mais de 600 mil vidas, ela foi uma voz forte e determinada.
De forma muito didática e, por vezes, emocionada, Margareth defendeu a necessidade do uso das máscaras, do distanciamento social e da vacinação. Os discursos a favor da cloroquina ou contra a vacina também não escaparam. Ela os denunciou como “absurdos” e “inaptos”.
“As forças obscurantistas fazem um mal enorme à população brasileira. Eu me sinto muito estimulada a repetir mil vezes as mesmas informações e o farei até cair.” Foi o que ela disse ao correspondente da France Press no Brasil, com objetivo de explicar aos franceses como as atitudes negacionistas de Bolsonaro dividiram o país, em um momento que deveria ser de união diante da situação de calamidade.
Dalcolmo é doutora em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); pesquisadora da Fiocruz; integrante da Comissão Científica da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) – entidade que a elegeu presidente para o biênio 2022-2024; integrante também das comissões científicas da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e da Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose (Rede-TB).
Além de integrar os quadros da OMS, a cientista está presente no comitê diretor do grupo chamado Resist TB, o qual realiza estudos sobre a tuberculose na Boston Medical School e no comitê consultor do Banco Mundial para projetos de saúde na África Subsaariana em doenças respiratórias.
Professora da pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Margareth já publicou mais de cem artigos científicos dentro e fora do Brasil.
Apesar do vasto currículo, sendo pesquisadora principal de ensaios clínicos para o tratamento da tuberculose e, em especial, de vacinas e tratamentos para covid-19, Margareth não foi elegível para a Ordem Nacional do Mérito Científico, concedida por Bolsonaro a si mesmo e a ministros do seu governo no final de 2021.
Por outro lado, em um ato de reconhecimento, ela foi a primeira brasileira a receber no braço o imunizante da AstraZeneca, coproduzida pela Fiocruz, fato que a proeminente pesquisadora da instituição deixa claro ter ficado muito orgulhosa.
Com efeito, a vacina foi um prêmio para a médica que, durante seu trabalho incansável, chegou a contrair o coronavírus. A covid-19 sobrecarregou ainda mais ela que, na sua especialidade, também trata de pacientes com bronquite, asma e câncer.
Seus dias normais de expediente começam às sete da manhã, com consultas de pacientes que vão até às 21 horas, entre idas à Fiocruz e a hospitais.
“Até nos fins de semana, em casa, eu trabalho. Eu tenho de ler muitos artigos científicos”, conta a doutora.
Mesmo assim, Margareth dá um jeito de encontrar tempo para a literatura: “Meu segundo amor, depois da medicina”. Literatura, aliás, que ela conhece bem de perto.
Viúva do recém-falecido integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) Cândido Mendes de Almeida (1928-2022), Margareth integrou círculos de amizade que incluíram José Saramago (1922-2010) e Edgar Morin, além, obviamente, de vários imortais da ABL.
Porém, engana-se, no entanto, quem pensa que essa paixão iniciou ao lado do marido. “Eu sempre li muito desde cedo. Eu, digamos, fui uma criança precoce. Lia muito, muito, muito. E a minha formação, embora seja médica, não veio das exatas, veio das humanas. A minha família tem tradição jurídica, pais advogados, tias juízas, promotoras”, lembra.
Quando criança, continua Margareth, “dizia que eu iria ser diplomata”. Só que, na proximidade de fazer o vestibular, ela teve o que chama de uma crise interna de consciência no final da adolescência. “Decidi: eu não quero mais ser diplomata, quero ser médica.”
A decisão teve influência justamente da leitura de A montanha mágica, de Thomas Mann, que transcorre em um sanatório para tuberculosos nos Alpes Suíços, e que impulsionou a jovem Margareth rumo à pneumologia. “Pandemia é um tema literário e médico que sempre me interessou”, afirma.
O que os leitores vão encontrar no seu livro?
Os artigos publicados desde abril de 2020 no O Globo, sem os cortes e edições que foram necessários para caber na coluna do jornal. Eu tenho os originais. Então, eu editei os artigos na cronologia e os artigos montam toda a cronologia desse processo pandêmico, desde o início até outubro de 2021.
De onde surgiu a ideia dessa publicação?
De muita gente que leu os artigos. Eu tenho amigos, pacientes, colegas, muita gente querida da Academia Brasileira de Letras, como a Nélida Piñon. Ela fez a orelha do livro. O prefácio foi do Domício Proença Filho (Nota da redação: quinto ocupante da Cadeira 28 da ABL) e o posfácio do doutor José Camargo (Nota da Redação: pioneiro no transplante de pulmão na América Latina), um grande médico que é do Rio Grande do Sul; também escritor, que tem muitos livros publicados. Outro gaúcho que tem uma tradição literária bem grande.
Quem não acompanhou sua coluna em O Globo pode temer algo muito técnico?
Não. E o livro não é só factual; não sou jornalista. Tem muitas incursões literárias. Eu tenho essa, digamos, bigamia entre a literatura e a medicina.
E como foi essa mudança repentina que você teve de querer ser diplomata para cursar Medicina?
Era um momento muito difícil no Brasil. Governo militar, muita pressão, muita perseguição; amigas minhas tendo problemas. Daí, se puder usar esse termo, eu sempre fui muito jeitosa nessa coisa de cuidar. Sabe aquela coisa que o Vinícius de Moraes dizia, ‘meu negócio é gente’? É mais ou menos isso, meu negócio sempre foi gente, embora eu nunca tenha sido muito expansiva, pelo contrário, eu era muito tímida, muito fechada. Não era uma criança esportiva. Eu nem sei andar de bicicleta, por exemplo.
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Dalcolmo e a voz da ciência na pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU