19 Abril 2022
O economista austríaco Christian Felber é conhecido por ser o precursor da Economia do Bem Comum, uma visão alternativa que propõe substituir o PIB como indicador de riqueza por um Índice do Bem Comum (IBC), que também leve em conta a saúde, a felicidade e a coesão social como elementos para medir o desenvolvimento de uma sociedade.
Seus postulados são considerados pela Generalidade Valenciana quando desenvolve suas políticas, pois o secretário de economia sustentável, Rafael Climent, tem em Felber uma de suas principais referências. Para promover a pesquisa, o desenvolvimento e a divulgação dessa visão alternativa da economia, em 2017, a Universidade de Valência lançou uma Cátedra de Economia do Bem Comum com o apoio da Generalidade Valenciana.
Por ocasião da realização do II Congresso Internacional de Economia do Bem Comum - 2022, em Valência, organizado pela Cátedra, Felber aproveitou sua visita à capital para refletir sobre a relação entre seu modelo alternativo de medição da riqueza e fenômenos que se manifestaram com a pandemia, como a crise nas cadeias de abastecimento, a concentração de riqueza e a dependência de outros países no fornecimento de energia e bens essenciais.
A entrevista é de Xavi Moret, publicada por Valencia Plaza, 14-04-2022. A tradução é do Cepat.
Depois da pandemia, vê o mundo mais preparado para abraçar os postulados da Economia do Bem Comum - EBC?
Por um lado, vejo que existem forças muito poderosas que tendem mais à guerra e a produção em massa de armas. O poder econômico se concentra a passos tão forçados que quase me enojo e as democracias estão em retrocesso há mais de dez anos, mundialmente. Se deseja ser pessimista, há motivos. Mas, ao mesmo tempo, acredito que mais pessoas do que antes estão percebendo tais retrocessos e buscam modelos alternativos viáveis para melhorar a economia, torná-la mais sustentável e descentralizar o poder em todos os níveis. Estamos em uma luta feroz entre forças opostas.
O poder daqueles que não estão interessados em decisões democráticas está aumentando. Se as pessoas pudessem decidir diretamente sobre questões de justiça, sustentabilidade, democracia e um não à guerra, não sei se nos últimos séculos teria ocorrido uma só guerra, com as pessoas tendo a última palavra. Mesmo agora, não tenho certeza se a Rússia teria começado essa guerra, caso a decisão tivesse sido das pessoas.
A democracia representativa não é o suficiente e deve ser acompanhada em maior grau pela democracia direta, principalmente quando os governos agem contra a vontade da maioria das pessoas. Não sei se a maioria dos alemães apoia um investimento em armamentos de 100 bilhões de euros. Se tivéssemos a democracia direta, várias alternativas poderiam ser apresentadas e, certamente, a militarista não seria a vencedora.
E sua visão sobre quais devem ser os eixos dessa economia mais humanizada incidiu com a pandemia?
Foi uma freada enorme em muitos âmbitos, mas, por outro lado, muitas pessoas começaram a refletir sobre a vida, a convivência, a política... Aproveitamos esse aumento da sensibilidade e da busca por soluções alternativas. Pode haver maior receptividade e isso seria um benefício colateral da pandemia para nós.
Nos últimos tempos, foram tomadas medidas impensáveis há alguns anos, como a implementação de impostos mínimos comuns às grandes corporações em todo o mundo. Isso nos aproxima de um modelo baseado em uma distribuição mais justa da riqueza?
Tenho minhas dúvidas porque esse avanço é fruto de um processo que iniciamos há duas décadas. Testemunhei a fundação da Rede Internacional de Justiça Fiscal e fomos preparando tal decisão que considero bastante modesta, pois pode acontecer que países que atualmente possuem uma taxação mais alta sobre o lucro das grandes corporações a reduzam para este padrão mínimo muito baixo. Existem outras fragilidades, como, por exemplo, um lucro mínimo em relação às vendas muito alto, então, não vejo como um grande salto, é um pequeno passo e não é uma consequência da pandemia.
A concentração de poder em diversos âmbitos é enorme em comparação a esse passo mínimo de regulação. Não vejo disposição dos governos em diminuir o poder das grandes corporações transnacionais, algo que para mim é um imperativo supremo. Não os vejo dispostos a isso. Um lado da moeda é a fragilidade da democracia e o outro é a superconcentração de poder nas grandes corporações não contestada pelos governos.
Porque são muito grandes?
Formalmente, o tamanho não importa. Os governos poderiam agir porque têm 100% do poder político, mas o problema é que não estão dispostos a usá-lo. Sim, existe um motivo: a influência do poder econômico se tornou grande demais para que o poder político possa ser exercido.
Considera que a pandemia foi uma demonstração do poder da colaboração para superar um problema coletivamente ou muito pelo contrário?
Aqui, também tenho minhas dúvidas porque, por exemplo, nós, austríacos, não saímos melhores da pandemia. Em 2020, nenhuma criança de 1 a 15 anos morreu na Áustria, segundo o [Ministério da Saúde]. No entanto, metade dos nossos jovens tem sintomas comuns de depressão. E isso não foi provocado pelo vírus, mas pela gestão política da pandemia. O [UNICEF] apontou que incríveis 100 milhões de crianças em todo o mundo caíram na pobreza. Por outro lado, em 2020, morreram mais pessoas na Europa pela poluição do que pelo coronavírus, mas nada se faz para preveni-la. Para mim, não é convincente que tenha sido uma gestão com o objetivo de maximizar a saúde.
Avalia que o mercado falha mais ou menos do que antes?
Não são os mercados que falham, mas o desenho político ineficaz dos mesmos. A economia não é um evento natural, mas um artefato criado pelos seres humanos, mas nas últimas décadas desenhamos os mercados de tal forma que contribuímos para o crescimento das desigualdades, a destruição dos ecossistemas e a acumulação da riqueza.
Deveríamos melhorar o desenho dos mercados conforme propõe a Economia do Bem Comum, de tal forma que não contribuam mais para a destruição ecológica. Seria um mercado no qual somente empresas responsáveis e sustentáveis poderiam participar. Além disso, seriam menores do que as que existem hoje. É uma questão de decisão política se a uma empresa se permite receitas de 100 bilhões de euros.
A crise revelou os perigos de depender excessivamente de um único mercado e a fragilidade dos modelos econômicos baseados em uma espiral de consumo interminável. Que lição considera que deveria ser tirada deste período?
A reorientação para aquilo que realmente vale e traz felicidade para as pessoas. Estamos desenvolvendo o Índice do Bem Comum - IBC, que um dia poderá substituir o do PIB. Diferente deste, o IBC mediria a saúde, a felicidade, o florescimento das relações, a coesão social, a distribuição justa, a estabilidade dos ecossistemas, a força dos direitos fundamentais e a paz. As medidas políticas do futuro seriam avaliadas de acordo com sua contribuição positiva para o IBC. O PIB, com seu crescimento ilimitado de valores financeiros, não importaria mais.
O Plano de Recuperação para a Europa concentra a maior parte de seus recursos na transição para um novo modelo econômico ambientalmente sustentável e na digitalização. Considera que são eixos acertados para um modelo econômico mais sustentável?
A Transição Ecológica é um fim em si mesma e sou absolutamente a favor dela, mas a digitalização é um meio e com uma digitalização é possível agir igualmente bem ou mal. Por exemplo, o trabalho e o trabalhador podem ser despojados de todo o sentido e é possível controlar as pessoas e minar os direitos fundamentais e a liberdade. Propomos ferramentas digitais para fins nobres, maior sustentabilidade e maior desenvolvimento da dignidade dos trabalhadores.
Frente às grandes plataformas, tanto estadunidenses como chinesas, eu proporia uma plataforma europeia em formato de cooperativa pública, sem publicidade ou fins lucrativos, na qual todos pudessem contribuir e sem algoritmos que a manipulassem para qualquer direção. Assim, domaríamos a tecnologia para colocá-la a serviço das pessoas, pois enquanto houver regras tão pouco democráticas, parece mais um instrumento de controle do que um instrumento útil para a sociedade.
Como avalia a resposta que as grandes potências ocidentais estão dando à Guerra na Ucrânia?
Pergunto: O que fizeram para evitá-la? Parece-me que sem qualquer provocação da OTAN, a guerra não teria começado. Sonho com uma desmilitarização progressiva dos países em favor das Forças Armadas restantes da Organização das Nações Unidas. Nos últimos casos improváveis de uma guerra de ataque, a ONU deveria intervir militarmente.
A desmilitarização para a “paz perpétua” de Immanuel Kant poderia ser novamente acelerada com base em uma democracia mais direta. Esta seria uma parte da solução, porque as guerras costumam ser assunto dos governos. Se o povo russo tivesse sido consultado, a invasão provavelmente não teria ocorrido.
Em sua opinião, como a crise energética deveria ser resolvida? Percebe alguma solução a curto prazo?
Este seria um exemplo da autarquia energética. A crítica à globalização e às cadeias de abastecimento excessivamente longas não é uma aposta na autarquia plena, mas, sim, na subsidiariedade econômica: o que você puder fazer no âmbito mais regional, faça. O global também tem o seu papel, mas não central. O local e o regional deveriam começar pelo alimento, a energia e a circularidade dos restos, dos resíduos.
A natureza existe há 2.000 milhões de anos e metaboliza milhares de milhões de toneladas de matéria sem produzir nenhum resíduo. Essa é a ideia da circularidade. Não existe problema em existir produtos e produzir bens, mas deveríamos desenhá-los de forma que não gerassem nenhum tipo de descarte. Quanto à energia, há décadas apostamos na total independência das importações de fontes de energia, independentemente da guerra atual.
A Espanha, em particular, está tomando medidas para melhorar a renda dos setores mais desfavorecidos, como a Renda Mínima Vital e o aumento do SMI [Salário Mínimo Interprofissional]. Tais medidas são suficientes?
São passos na direção desejada, mas gostaria de ver mais em direção a uma renda básica incondicional, enquanto continuarmos no capitalismo, e no limite da renda máxima. Hoje, existem tantas pessoas excluídas, que sou a favor de uma renda básica incondicional suficiente para subsistir e de um teto para as rendas máximas.
Propusemos isso em 25 países. Perguntamos às pessoas onde se limitaria a renda máxima e para nove em cada dez a proposta mais apoiada é a de fixar um limite de dez para um. Continuaria existindo desigualdade, mas seria mais moderada e razoável. A partir de cerca de 2.000 dólares por mês, está cientificamente comprovado que um aumento da renda financeira não aumenta significativamente a felicidade pessoal.
Qual é a sua opinião sobre outras medidas como as que a Comunidade Valenciana está adotando para avançar na semana de trabalho de quatro dias?
Gosto dos pioneiros, mas seria flexível na forma concreta de reduzir o número de horas trabalhadas. Inicialmente, diminuímos de 80 horas para 40 e agora a questão é ver como chegamos a 20. Seria um imperativo por motivos ecológicos, mas também para ter mais tempo para a nossa família, relacionamentos e simplesmente viver bem.
Acredita que na Comunidade Valenciana houve avanços substanciais em direção à Economia do Bem Comum - EBC?
Minha percepção é que há avanços, pequenos, mas contínuos. Um exemplo é a resolução da Chancelaria de Economia Sustentável a favor da Economia do Bem Comum e da Economia Social e Solidária. Outra é a Cátedra de Economia do Bem Comum, da Universidade de Valência. Não são muitas, mas há mais empresas que aplicam o Balanço do Bem Comum.
Onde está mais avançado?
Na Alemanha, existem cidades que aplicam o Balanço do Bem Comum em suas compras públicas e instituições. Por exemplo, Münster. Já são sete os bancos que aplicam o Balanço e existe até uma conta bancária. Criamos um banco corporativo para o bem comum que oferece essa conta. Agora, estamos desenvolvendo o Índice do Bem Comum nas primeiras regiões, entre outras, na Espanha.
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“O local e o regional deveriam começar pelo alimento, a energia e a circularidade”. Entrevista com Christian Felber - Instituto Humanitas Unisinos - IHU