16 Março 2022
"Aos olhos de muitos, as bombas em Kiev são um horror, mas também o foram as bombas da OTAN em Belgrado, Trípoli, Bagdá ou Kandahar, em países que não haviam agredido ninguém, contra a legalidade internacional. As bombas de fabricação italiana que hoje caem no Iêmen também são um horror, em uma guerra que, como a guerra afegã desencadeada ilegalmente pelo Ocidente, causa mais mortes, refugiados, devastação e dor do que a Ucrânia. A guerra na Ucrânia não nasceu agora: era uma sangrenta guerra civil há quase uma década. O Ocidente estava apoiando os gastos militares (o impeachment de Trump, lembram? Era pelos mais de US$ 400 milhões em ajuda militar a Zelensky)".
O comentário é do físico italiano Carlo Rovelli, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy, em artigo publicado por Corriere della Sera, 15-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A guerra tão perto desencadeia emoções intensas em nós. Temos um nó na garganta. Queima a pergunta de como parar o horror. Como parar o sofrimento insensato que é a guerra? Há solidariedade e a preocupação de que nossa segurança também seja frágil. É difícil desembaraçar emoções e razão. É fácil, levados pela emoção, cometer erros. Para nós, e para aqueles que tomam decisões coletivas, respondendo às paixões comuns.
Muitos estão pressionando por uma diminuição imediata do conflito, negociações sem preconceitos, abertas a concessões mútuas. Do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, aos países que preferiram não apoiar a resolução da ONU de condenação da Rússia: mais de 30, representando mais de 3 bilhões de habitantes. O Papa, o Dalai Lama, generais do exército italiano como o general Fabio Mini, intelectuais de distintas orientações, vozes de cores políticas que vão dos sindicatos de esquerda ao mundo católico da Pax Christi, aos que há anos estão engajados contra a guerra, não só esta, como a Rede Italiana Pace e Disarmo ou Emergency.
Por outro lado, há a reação a uma evidente agressão de um país com um regime político que a maioria de nós detesta - eu primeiro -, contra um país reduzido a escombros por ter se aproximado da nossa Europa. Pela primeira vez, parece claro qual lado está errado. A reação é focar apenas nisso, condenar o agressor e defender o país agredido com as armas. Essa reação instintiva alimenta o “nós contra eles”, o espírito de grupo. Aumenta a beligerância. É a lógica da guerra: concentrar-se nas atrocidades do inimigo (reais) ignorando o resto, demonizando-o, frisar a luta, sentindo-se do lado da justiça, e por isso atirar, matar. A mesma lógica das rixas entre gangues, em que a última ofensa grave autoriza a fazer crescer o embate. A lógica das brigas entre os indivíduos, em que ambos estão convencidos, muitas vezes com razão, de que são vítimas. Qualquer compromisso é percebido como ceder ao mal. Vozes de dúvida são ouvidas como apoio ao inimigo. Hoje essa segunda reação prevalece nos Estados Unidos e, com mais dúvidas, na Europa.
Considero que seja um erro do qual nos arrependeremos, especialmente na Europa. A primeira razão é que dar mais importância ao confronto do que à cessação das hostilidades aumenta o sofrimento dos seres humanos.
Alguns realmente pensam que enviando armas diminuímos os sofrimentos da guerra, o número de mortes, a quantidade de devastação? Ouvimos "lutaremos até a morte" de jovens ucranianos. Não me sinto do lado deles. Vamos reler "A História" de Elsa Morante para entender a guerra. Há os "lutaremos até a morte", e há a multidão sofredora das Iduzze que não quer a guerra. Eu me sinto mais do lado destes. Enviar armas para a Ucrânia me parece cair no jogo das superpotências: armar os pequenos para que continuem a guerra, por procuração, contra outras potências.
A segunda razão pela qual considero que a reação em curso é um erro é que ela nos empurra para uma lógica que corre o risco de tornar o século XXI ainda pior do que o XX. O mundo maniqueísta, dividido em bons e bandidos perigosos, as boas democracias e os maus autocratas da Rússia e da China, onde a única salvação é impor o nosso domínio com as armas, este é um mundo que está fadado a catástrofes. A alternativa é aquela repetida, entre muitos outros, pelo Secretário-Geral das Nações Unidas: aceitar a variedade ideológica, trabalhar pela legalidade internacional, pela diplomacia. Aceitar que outros países tenham ideias diferentes das nossas, sem nos assustarmos.
O medo é o pior conselheiro. O medo é a raiz da agressão. Leiam Mein Kampf de Hitler: baseia-se no fato de que se deve ter medo dos outros. O primeiro passo para a não beligerância é sairmos (nós que somos muito mais fortes militar e economicamente) da lógica do medo.
A elite dominante na Rússia estava aterrorizada com a ideia de mísseis nucleares da Otan na Ucrânia. Parece estranho para vocês? Para evitar mísseis soviéticos em Cuba, os Estados Unidos estavam prontos e recorrer a uma guerra nuclear. Não é incompreensível que o Kremlin faça o mesmo. A solução de Kennedy e Kruschev foi que a URSS desistia dos mísseis em Cuba em troca da retirada dos mísseis EUA da Turquia.
Um acordo diplomático, em uma situação mais ideologicamente polarizada do que hoje. Um passo para trás. Assim se caminha para a paz. Por que não podemos fazer o mesmo?
Metade do planeta se recusou a condenar a Rússia. Discordo, mas acho que a razão é óbvia: aos olhos de muitos, as bombas em Kiev são um horror, mas também o foram as bombas da OTAN em Belgrado, Trípoli, Bagdá ou Kandahar, em países que não haviam agredido ninguém, contra a legalidade internacional. As bombas de fabricação italiana que hoje caem no Iêmen também são um horror, em uma guerra que, como a guerra afegã desencadeada ilegalmente pelo Ocidente, causa mais mortes, refugiados, devastação e dor do que a Ucrânia. A guerra na Ucrânia não nasceu agora: era uma sangrenta guerra civil há quase uma década. O Ocidente estava apoiando os gastos militares (o impeachment de Trump, lembram? Era pelos mais de US$ 400 milhões em ajuda militar a Zelensky). Era para promover a distensão que a OTAN realizava exercícios militares no Mar Negro em frente às bases russas no ano passado? Não desculpa nada, mas nos ajuda a entender. Estamos justamente abalados pela guerra que está perto de nós, mas se considerarmos a guerra como um horror quando os outros a fazem, e uma triste necessidade quando nos convém, não ajudamos a paz.
Acredito que precisamos sair da lógica de responder à violência fomentando a violência. Encontrar compromissos com o diálogo e a política como Kennedy e Kruschev souberam fazer. Por que não podemos viver sem que pessoas morram sob as bombas? Por que damos mais peso aos interesses econômicos e aos jogos de poder do que à dor das pessoas? Por que caímos nessa lógica bélica? Não sei, procuro respostas como todo mundo, mas o clima de beligerância em que ver o sofrimento nos empurra a fomentar a guerra, e chamamos "paz" enviar armas, me preocupa, me faz pensar que nós talvez estejamos cometendo um erro. Muitos países ficaram inflamados dessa maneira, e muitas vezes acabou mal.
Temos medo uns dos outros. Temos medo de nossa própria sombra e transformamos a nossa terra em um inferno.
As pessoas estão morrendo na Ucrânia. Civis, jovens soldados que combatem, ucranianos e russos, que individualmente não têm culpa de nada. A guerra não poupa ninguém. Acredito que a verdadeira urgência seja salvar essas pessoas.
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“É por isso que acho que enviar armas para Kiev se revelará um erro”. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU