19 Março 2022
"Quantas crianças ainda precisam ser despedaçadas pelas bombas que produzimos e jogamos em todos os lugares há décadas?", questiona o físico italiano Carlo Rovelli, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy, em artigo publicado por Corriere della Sera, 03-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
As memórias e ideias do médico que sonhava com o fim dos conflitos no livro "Uma pessoa de cada vez" (Feltrinelli, 2022, 176 p.), lançado em 3 de março.
Capa do livro "Uma pessoa de cada vez", publicado em italiano (Foto: Divulgação)
Este é um livro que acho que todos deveriam conhecer, que deveria ser lido nas escolas. É um livro direto e sincero que vai ao cerne do problema mais importante que temos hoje e nos mostra de forma simples como lidar com ele. Mas também é um livro inquietante, porque coloca o horror diante de nossos olhos e porque nos mostra o que estamos errando.
Gino Strada, fundador da Emergency, a organização que cuida os feridos de guerra em condições de emergência, faleceu no ano passado, deixando um grande vazio. Ele escreveu esse livro um pouco de cada vez ao longo dos seus últimos meses. Simonetta Gola, sua companheira, participou da redação e editou sua publicação, completando-o com um pungente posfácio.
No livro, Strada relata sua vida como cirurgião de guerra, a experiência direta e devastadora da violência, do horror da guerra, o sentido e o espírito da Emergency e seu ativismo. Prendeu-me desde as primeiras páginas, com a nostalgia de uma geração que vivia direta e simplesmente a beleza e a intensidade do compromisso coletivo civil e político. Além disso, é o encontro com o sofrimento avassalador gerado pela guerra, que marca Strada e reorienta sua vida, e emerge ardente dessas páginas.
Mas a força do livro é a clareza com que o relato de Strada implicitamente nos indica onde estamos errando. Em um mundo onde continuamos a pensar em termos de nós-contra-eles, em que tanto de uma parte como da outra nada fazemos se não nos culpar mutuamente e nos atordoamos com narrativas para nos contar ao infinito o quanto "os outros" são agressivos, malvados, horripilantes, incivilizados, maus, desonestos, diabólicos, cínicos, ditatoriais, sem escrúpulos (não se fala de outra coisa hoje em dia), Strada vê apenas seres humanos que sofrem, que atiram uns nos outros, que se massacram, que se mutilam, que espalham dor, para nunca chegar a nada.
Precisamos aprender a olhar para o mundo como ele, pensar em nós como parte de uma única comunidade humana com problemas comuns, em vez de continuar nos atormentando por querer ser mais fortes que os outros.
Por que sempre nos deixamos enredar por essa retórica boba da demonização dos nossos inimigos? Somos realmente tão cegos, ou é apenas o nosso egoísmo que não tem escrúpulos nem limites, que semeia dor por mais alguns centavos. De qualquer forma, esse livro nos questiona.
Quantas crianças ainda precisam ser despedaçadas pelas bombas que produzimos e jogamos em todos os lugares há décadas?
A força do pensamento de Gino Strada é a conexão direta entre a clareza de seu vasto olhar político, que vê o problema em sua totalidade, e a extrema concretude de seu empenho: uma pessoa por vez, atendida por ele, e nos hospitais da Emergency, milhares de indivíduos arrancados, um a um, da morte e do sofrimento. “'Mas como, a Emergency atende os Talibãs? O inimigo?". Sim, também tratamos os Talibãs. Nós os tratamos porque somos seres humanos que se recusam a deixar outros seres humanos morrerem. Tratamos os Talibãs como qualquer outro que aparece em nossas portas, sem fazer perguntas”.
Será que a jovem geração será capaz de absorver o pensamento desse médico maravilhoso, livre, capaz de seguir seu próprio caminho, mesmo contra todos e para todos? Será que ele vai conseguir nos tirar dessa loucura?
Eu sei que muitas pessoas da minha idade vão balançar a cabeça, mas espero que sim. Simonetta termina o livro assim: “E por isso o pensamento está sempre contigo, que com as tuas palavras continuas a abrir caminho para uma visão poderosa: ‘A utopia é apenas algo que ainda não existe’”.
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A utopia de Gino Strada. O cirurgião que nos ensinou a curar (também) os inimigos. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU