Quarta-feira de Cinzas: A ressurreição exige conversão

Foto: Cathopic

25 Fevereiro 2022

 

"Na literatura clássica e universal, que podemos ler a qualquer tempo porque sempre tem algo a nos dizer sobre os dias atuais e sobre nós mesmos, encontramos um exemplo de conversão e ressurreição na vida do jovem Nekludov, personagem central da obra Ressureição, de Leon Tolstói. Lançada em 1899, o último romance do escritor russo, mais do que uma denúncia à hipocrisia e à burocracia russas - e humana -, é uma jornada sobre um processo interior de conversão e ressurreição".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

A Quarta-feira de Cinzas, além de ser o dia que indica o início do Tempo da Quaresma para os cristãos, período litúrgico que antecede a Páscoa, é uma das celebrações mais comoventes da Igreja não só porque nos lembra o que e quem nós somos, mas porque, apesar disso e justamente por isso, nos chama e nos convida reiteradamente à conversão, à mudança de vida que muitos desejamos depois de constatarmos as nossas próprias misérias e as injustiças que marcam as sociedades em que vivemos.

 

Mas a conversão é mais do que uma mudança de rota. Se desejada e vivida diariamente, ela tem como consequência outro mistério, anunciado e vivido por Cristo: a ressurreição. Como nos ensina o Evangelho, "os cegos enxergam, os mancos caminham, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados" (Mt, 11:5).

 

Na literatura clássica e universal, que podemos ler a qualquer tempo porque sempre tem algo a nos dizer sobre os dias atuais e sobre nós mesmos, encontramos um exemplo de conversão e ressurreição na vida do jovem Nekludov, personagem central da obra Ressureição, de Leon Tolstói. Lançada em 1899, o último romance do escritor russo, mais do que uma denúncia à hipocrisia e à burocracia russas - e humana -, é uma jornada sobre um processo interior de conversão e ressurreição.

 

Ressurreição, por Liev Tolstói.

 

A tônica do romance é apresentada ao leitor na primeira página da obra:

 

"Os homens, somente os homens, continuavam a enganar-se e a torturar a si próprios, e aos outros. Somente os homens desprezavam aquilo que era sagrado e supremo: não viam aquela manhã de primavera, nem a beleza divina do mundo, criado para a alegria de todos os seres vivos, e para a todos dispor à união, à paz e o ao amor. Para eles só era importante e sagrado aquilo que haviam inventado para instrumento de mútuo engano e tortura".

 

O exame de Tolstói sobre a natureza humana é certeiro:

 

"Os homens são como rios, feitos todos com a mesma água; uns, porém, são largos, outros, estreitos; corre um lentamente, outro, deságua com rapidez - este tem água tépida e cristalina, aquele, toldada e fria. Assim também são os homens, todos eles igualmente depositários dos germes de todas as qualidades humanas: ora manifestam uma de preferência, ora outra, aparentando, muitas vezes, o que habitualmente não são. Em alguns indivíduos, porém, as mudanças são mais raras e levam mais tempo para se produzir enquanto noutros são mais rápidas e frequentes. Nekhludov pertencia ao segundo grupo. Continuamente operava-se nele transformações bruscas e completas, sob a influência de coisas diversas, físicas ou morais".

 

O romance gira em torno da vida interior e social do aristocrata Nekludov, em quem, assim "como em todo homem, havia duas personalidades: o homem espiritual, que fazia sua a felicidade dos outros; e o homem animal, que só procurava o bem individual, disposto a tudo sacrificar para a própria felicidade. E, nesse estado de loucura egoísta, se encontrava naquela fase de sua vida: o ser animal dominava-o a tal ponto que abafava completamente as manifestações do outro ser".

 

 

No entanto, o desejo sincero de reparar um mal feito à ex-criada de sua família, Maslova, condenada injustamente pelo crime de assassinato pelo tribunal russo do qual Nekludov integrava o júri, o empurrou para outra direção. Em sua saga para reverter a decisão judicial que condenou sua protegida, ele descobre um novo mundo: o dos encarcerados e condenados a trabalhos forçados, o dos magistrados "devassos", "mentirosos" e "impostores", que "se percebem determinado salário, desejam outro mais alto: e nisso se resumem os seus princípios", e o dos camponeses que cultivam a terra sem sequer desfrutar de seus bens.



Mesmo renunciando às riquezas herdadas da família para lançar-se em auxílio dos mais necessitados, Nekludov "afligia-se" diante da impotência "porque não podia dar indefinidamente e, por outro lado, porque não tinha meios para discernir a quem dar e a quem negar. Não tinha coragem de negar às pessoas que pediam e que, aparentemente, se mostravam todas necessitadas de auxílio. E o dinheiro se acabava e os mendigos continuavam a afluir".

 

Depois de presenciar todo tipo de sofrimento e humilhações a que os homens são submetidos nas prisões e fora delas durante três meses, questionava-se: "Enlouqueci e vejo coisas que os outros não veem; ou estarão loucos os homens que fazem e toleram as coisas que eu vejo?" (...) Mas, então, por que fazem tudo isso?, interrogava-se; mas não encontrava resposta".

 

 

Na vivência de uma experiência limite como a contemplação da morte de um preso por isolação após caminhar rumo à Sibéria, onde deveria cumprir a pena de trabalhos forçados a que fora condenado, deparou-se com questões para as quais parece não haver respostas: "Por que sofreu? Por que viveu? E agora, será que conseguira alcançar a verdade?" Ainda enxergava como o cego de Betsaida que, curado por Cristo uma vez, até então tinha a visão distorcida e via os homens "como árvores que andam". A Nekludov, assim como ao cego narrado por Marcos 8:22-38, foi preciso que Jesus manifestasse mais uma vez a sua misericórdia: o pegasse pela mão novamente e ao recolocar a mãos sobre os seus olhos, restaurasse-lhe a visão, advertindo-o a afastar-se imediatamente do restante da aldeia.

 

Apesar da resposta imediata que lhe passou pela mente, de que nada mais existia além da morte, foi na continuação da leitura do Evangelho que Nekludov encontrou "imediatamente uma verdade clara, simples, evidente":

 

"O único remédio possível para o mal que fazia sofrer aos homens consistia em ter os homens de reconhecer sempre a sua dívida para com Deus e, consequentemente, não possuirem direito algum de punir ou julgar a seus semelhantes. Compreendeu que o terrível mal presenciado nas prisões e nos comboios, e que a segurança tranquila daqueles que produziam ou toleravam esse mal, provinham unicamente de uma coisa muito simples. Eram homens maus, pretendendo corrigir o mal. Eram homens viciados, empreendendo corrigir o vício. Ora, sendo viciados, só podiam propagar o vício em vez de corrigi-lo; sendo corrompidos, só podiam espalhar a própria corrupção. A resposta que Nekhludov procurava, angustiado, era a mesma resposta que Jesus dera a Pedro: que se devia perdoar sempre, não sete vezes, mas setenta vezes sete".

 

E foi na leitura do Sermão da Montanha que encontrou "preceitos claros, simples, práticos, fáceis de aplicar, e cuja adoção teria por consequência imediata criar uma sociedade humana absolutamente nova, suprimindo toda a violência e injustiça e, na medida da fraqueza humana, inaugurando na terra o reino dos Céus".

 

Como sintetiza Tolstói, os cinco preceitos são:

 

"O primeiro dizia que não somente o homem não devia matar outro homem, seu irmão, mas não devia irritar-se com ele, acusá-lo ou desprezá-lo; e que, tendo brigado com outro, devia reconciliar-se antes de oferecer qualquer preceito a Deus, isto é, antes de unir-se a Deus pela oração.

 

O segundo preceito afirmava que não só o homem não devia render-se à sensualidade, mas também não devia profanar a beleza da mulher, fazendo dela um instrumento de vil prazer; e, casando-se, devia considerar-se unido a ela para sempre.

 

O terceiro preceito rezava que o homem nada devia prometer sob juramento, por não ser senhor de si mesmo, nem de pessoa alguma.

 

No quarto preceito o homem não só não devia exigir olho por olho, mas quando o batessem numa das faces, devia oferecer a outra; devia perdoar as ofensas, suportá-las com resignação e nada recusar que exigissem dele os outros homens.

 

E finalmente preceituava o quinto que o homem não só não devia odiar aos seus inimigos ou lutar contra eles, senão amá-los, auxiliá-los e servi-los".

 

Eis a conversão que nos é exigida para a ressurreição, juntamente com a pergunta que volta a nos interpelar nesta Quarta-feira de Cinzas: "E vós, quem dizeis que eu sou?"

 

Leia mais