Verdade, penitência e evangelho do perdão: um olhar desde o outro lado. Artigo de James Alison

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06 Janeiro 2022

 

“A conversa que começamos a elaborar pode ser um autêntico ensinamento da Igreja nesta área. É uma conversa em que a autoridade da Igreja está se atrevendo a entrar. Suspeito que esse atrevimento tomará a forma de um tímido reconhecimento de que gays e lésbicas, com todas as falhas que compartilhamos com o resto da humanidade, são capazes de aprender a falar a verdade. Que nossa narrativa em primeira pessoa é a de uma filha ou filho de Deus com uma boa consciência. Pecador, sem dúvida; errado em muitas coisas, é claro; mas não radicalmente iludido quanto ao que somos”, escreve James Alison, padre, doutor em teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, assumidamente gay, fundou em São Paulo o Grupo de Ação Pastoral da Diversidade, em artigo publicado por Religión Digital, 02-01-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

No esquema clássico da Igreja, sabemos muito bem como conjugar as três realidades “verdade”, “penitência” e “Evangelho do perdão” quando se trata de assuntos de lésbicas e gays. A verdade, se nos assegura, é que a existência da homossexualidade é uma espécie de defeito ou falha dentro da ordem querida por Deus; a penitência, então, torna-se apropriada quando alguém se deixa levar por sua tendência objetivamente desordenada, até o ponto de cometer atos intrinsicamente maus; e o Evangelho do perdão mostra-se quando um ministro da Igreja oferece a absolvição ao pecador em questão.

 

Não tenho nada a dizer aos que desejam manter essa forma de pensar. De fato, é inútil tentar conversar com essa gente, é como bater a cabeça contra a parede. A experiência me demonstrou que aqui tocamos uma questão que se tornou “sagrada” no sentido girardiano ou levinassiano da palavra. Um miasma de alergia violenta rodeia o tema, e a discussão racional torna-se rapidamente impossível, porque toca-se algum nervo em carne viva.

 

Assim que, por princípio, trato de evitar essas discussões. Rapidamente convertem-se em debates cujo único objetivo é demonstrar a destreza na esgrima verbal e bíblica. A conversa só se faz realmente possível entre os que começaram a questionar o esquema sagrado. Aqueles que desejam buscar algum caminho para avançar. Pouco a pouco vai se reconhecendo que existe um verdadeiro problema. Um mais complicado do que poderia ser, devido aos que dependem do esquema sagrada para o sustento da vida. Seja a nível econômico de seu emprego, ou a nível pessoal psicológico e espiritual. Ou, como ocorre com frequência entre o clero, em ambos níveis ao mesmo tempo. É neste contexto então que aceitei com verdadeiro prazer esta oportunidade de falar com vocês e lhes levantar a perguntar que há muito tempo queria fazer.

 

Podemos nós, lésbicas e gays católicos que vivemos nossa fé abertamente a partir do que somos, e não apesar disso, ser de alguma serventia para vocês? E se sim, como? Podemos ser de ajuda àqueles que confessaram e mantiveram a fé católica e cristã através de toda a violência que se desatou sobre nós nos dois pontificados anteriores? E se sim, como? Posso eu, padre e teólogo, durante muito tempo desempregado dentro da Igreja devido às minhas opiniões sobres estes assuntos, ser de alguma ajuda para vocês, e se for assim, como?

 

 

Talvez se dermos um giro completo a esse esquema inicial? Tentemos...

 

A chegada do perdão de Deus à Igreja Católica

 

A presença do Espírito Santo atuando na humanidade assume uma forma muito particular. O perdão de Deus se interpõe entre nós, produzindo penitência ao abrir nossos corações para que possamos reviver na verdade. É um projeto criativo e dinâmico em que vivemos e do qual nossas vidas, com suas verrugas, se tornam testemunhas. É por meio do perdão que nos tornamos participantes livres e conscientes da criação inteligível de Deus, como filhas e filhos de Deus e herdeiros do Reino.

 

A meu ver, vivemos um momento forte da chegada do perdão de Deus à Igreja Católica. O choque que acompanhou a divulgação do Relatório Sauvé na França é uma prova disso. Embora estivéssemos confiantes e seguros em nossos sistemas e em nossa bondade, não tínhamos consciência dos danos que causamos e do sucesso que tivemos em escondê-los de nós mesmos. Sabemos quando começamos a ser perdoados porque nosso coração começa a se partir. Esse é o momento em que tropeçamos na realidade. É uma intuição tomista: a forma que o perdão assume na vida de uma pessoa é a contrição, um coração partido, do latim cor triturare.

 

Porém, Deus não quer partir nosso coração como uma forma de punição ou ato de violência contra nós. Muito pelo contrário: é porque a tendência do pecado é tornar o nosso coração muito pequeno. E o desejo de Deus é nos dar um coração maior, mais capaz de desejar, mais sensível e flexível. A quebra não é para destruir corações. É mais uma pausa que nos dá a oportunidade de crescer.

 

 

Então de onde vem esse perdão, trazido pelo Espírito Santo? É claro que vem de uma única fonte, quer saibamos disso ou não. Essa fonte é Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou por nós. É porque ocupou o espaço da violência, da vergonha, da vingança e da morte. E ele fez isso por nós. Aquele espaço de onde estamos tão inclinados a fugir. Fazemos todo o possível para que outro ocupe esse espaço, essa violência aparentemente só, tão necessária para salvar situações, ou pelo menos aparências. É esse espaço a que chamamos “pecado” o que Jesus ocupou para nós, desfazendo com a sua morte todo o poder que tinha para dominar a nossa vida. E, ao mesmo tempo, abrindo para nós o Caminho pelo qual nos tornamos livres para agir em sua imitação em nome dos outros, sem medo das consequências para nós mesmos.

 

A sabedoria da cruz

 

Esta chave da Sabedoria, que é a cruz de Cristo, existe desde há muito tempo. Esteve em funcionamento através de longos séculos de aprendizagem até chegar a nossos dias. Até este momento, no qual começamos a falar com sinceridade, como irmãs e irmãos, sobre os assuntos LGBTQIA+.

 

A Sabedoria da Cruz atua fazendo-nos suspeitar de nossa própria justiça quando estamos envolvidos em outro assassinato coletivo como o que Jesus sofreu. Como René Girard apontou, não foi porque nos tornamos mais racionais que paramos de queimar bruxas. Foi porque não podíamos mais acreditar verdadeiramente em sua culpa que nos tornamos mais racionais. Não é necessário buscar causas distantes e impessoais para as coisas se tiver uma maneira rápida e fácil de resolver um problema social local: um pequeno bode expiatório. São as mudanças nas maneiras de se relacionar que produzem mudanças na racionalidade, e não o contrário. Como fomos capazes de deixar de lado as falsas acusações, paixões e armas de linchamento que tínhamos em mãos, também aprendemos nosso caminho para a realidade.

 

Quando se trata de questões homossexuais é, curiosamente, a “invenção” da heterossexualidade que nos oferece uma visão-chave desse processo de aprendizagem. A partir do século XVII, no norte da França, Holanda e sul da Inglaterra, o que os historiadores sociais chamam de “casamento de companheiros” começou a aparecer com frequência crescente. A noção tradicional de casamento começou a mudar. Agora o casal não era apenas um cônjuge, mas também o melhor amigo do outro, parceiro intelectual e emocional. Algo que, quando aconteceu antes, foi motivo de surpresa para os observadores. Aos poucos, nossas sociedades foram saindo da homossocialidade que prevalecia até então. Culturas homossociais são aquelas em que, desde a mais tenra idade, a vida social de meninas e mulheres é entre elas, e também a de meninos e homens. Com casamentos arranjados e uma interação social mais ou menos protegida. Hoje, nossa cultura heterossexualizada nos parece tão natural que nos parece estranha a velha forma de convivência, que ainda prevalece em vários países islâmicos. Mas em termos históricos, a novidade é nossa aventura cultural.

 

 

Rimos muito quando Ahmadinejad afirmou que não há gays no Irã. Mas o que ele dizia, imaginando que seu país ainda era homossocial, não era tão estúpido quanto parece. Porque onde não há “heterossexuais” também não há “gays”. É claro que existe uma minoria de homens que fazem sexo com homens e mulheres com mulheres, mas tão discreta e invisivelmente quanto necessário para a sobrevivência. É assim que funciona o enorme e tradicional “não pergunte, não diga” dos grupos homossociais.

 

No entanto, foi o declínio gradual do mundo homossocial nos países ocidentais que nos permitiu entender algo sobre pessoas que antes eram invisíveis. Pessoas que se tornaram visíveis na medida em que se encontraram desajustadas em um novo campo, enfrentando novos e diferentes tipos de violência. É a partir do início do século XVII que as primeiras “casas molly”, pubs e áreas de cruzeiro começaram a surgir. Pontos de encontro para essas raras pessoas que não se sentiam confortáveis no novo mundo da heterossexualidade. E, claro, onde pela primeira vez eles se tornaram o objeto do que agora chamaríamos de “atenção policial”.

 

 

Não é necessário que eu perca seu tempo revendo as pesquisas que Michel Foucault nos deu em sua história da sexualidade. Minha leitura girardiana da mesma história não é acusatória. Apenas banha os mesmos fatos em uma perspectiva diferente. Eu entendo que eles mostram como o perdão de Deus aos humanos assumiu a forma de uma perda progressiva de fé na culpa e na periculosidade desses rejeitados.

 

Demorou cerca de 400 anos para que o que na época medieval era considerado sob a rubrica de “pecado”, especialmente presente na esfera monástica ou clerical, mudasse de face. No início do mundo moderno, esse “pecado” tornou-se um “crime” e depois uma “doença”. Depois um problema de “saúde mental”, antes de se tornar, no final do século XIX, um problema psicológico”. Ou seja, a partir do momento em que começou a se tornar “visível”, essa questão sempre foi tratada como um problema social que deveria ser resolvido de uma forma ou de outra. Mesmo quando, aos poucos, sua suposta periculosidade foi ficando cada vez menos crível.

 

Vários fatores finalmente convergiram para que, na década de 1950, se consolidasse um momento verdadeiramente científico. Entre esses fatores está a desmobilização maciça de centenas de milhares de rapazes e moças após as duas guerras mundiais. Entre eles, muitos dos que encontraram pela primeira vez outros como eles, seja em armas ou em fábricas de armas. Eles puderam se mudar para as grandes cidades, onde ainda encontrariam outros como eles, em vez de voltar para suas casas em pequenas comunidades rurais. O século XX fez a vida em pequenos apartamentos e, portanto, a relativa privacidade, era cada vez mais normal nas grandes cidades. Assim, pessoas que não se importavam com sua “homossexualidade” começaram a ser capazes de dizer: “Sim, sou, e daí?”. Pela primeira vez, uma massa crítica de “sujeitos” que não se apresentavam como “problemas” tornou-se disponível, e as disciplinas nascentes da psicologia e da psiquiatria começaram a reconhecer sua incapacidade de localizar qualquer patologia intrínseca à orientação para o mesmo sexo. Acontece que, dados os fatores normais de estresse das minorias, gays e lésbicas, estão tão ferrados quanto todo mundo. Não menos, mas tampouco mais.

 

É aí, a meu ver, que temos algo novo. O momento em que abandonamos a ótica do “aqui é um problema social que precisa de solução”, percepção nascida do mecanismo do bode expiatório. E agora estamos finalmente começando a alcançar uma lente verdadeiramente científica: “O que é essa realidade estável, de onde vem, como funciona e para que serve?”. Lembre-se que não foi graças ao gênio de grandes pensadores que chegamos a este ponto. Em vez disso, foi a presença relacional de uma massa crítica de pessoas relativamente despreocupadas com quem são que permitiu aos observadores científicos apreenderem algo real. A realidade em questão, observada em quase todas as sociedades ao longo dos milênios, havia sido tratada como um vício ou uma espécie de patologia. Ou em algumas sociedades como um sinal de poder espiritual, ou o contrário, uma abominação. Mas finalmente começou a ser reconhecido e a conviver como uma variante minoritária não patológica da condição humana. Ou seja, algo real e banal ao mesmo tempo.

 

 

Adeus às acusações e mentiras

 

Descrevi a vocês as mudanças nas relações sociais que foram necessárias e suficientes para que uma descoberta científica fosse feita. Uma descoberta que, ao se estabelecer como real, começa a varrer as acusações, mentiras e formas de desprezo que dominavam a discussão até então.

 

Desde a década de 1950, cada vez mais pessoas, começando pelos países ocidentais, reconheceram que essa percepção é correta. Acima de tudo, quando encontra pessoalmente pessoas que se autodenominam “gays” ou “lésbicas”. É isso que tem permitido que o perdão de Deus se desenvolva de tal forma que a vida reconciliada nesta área se torne imaginável e habitável. Em outras palavras, uma vida reconciliada como aquela vivida com cada vez menos preocupação em muitos países ocidentais. Principalmente nos países que são tributários da cultura católica e protestante. Países formados dentro da tensão histórica entre Papa e Imperador, Fé e Iluminismo. As mesmas tensões históricas, aliás, que, ao longo dos séculos, ergueram as condições de possibilidade do método científico.

 

 

Esta mesma vida reconciliada é intensamente desejada por muitos jovens que, embora vivam em países onde esta verdade ainda não foi recebida, anseiam por nela habitar. Eles pagam caro, mesmo com suas vidas, pelo privilégio de serem capazes de se alegrar em quem são, de incorporar o que sabem que são. Embora muitos deles, e de nós, saibamos que esta realidade, que demorou centenas de anos a emergir em circunstâncias culturais específicas, não pode ser imediatamente transferida para outra cultura sem produzir distúrbios sísmicos. Mas também não podemos permitir que a “cultura” se torne uma justificativa para a violência da maioria. Fazer isso seria dar um passo atrás nas coisas que aprendemos como verdadeiras da maneira mais difícil: por meio de nossa própria superação parcial de nossa violência majoritária.

 

Por que eu queria começar com esta breve introdução histórica? Bem, para não criticar a “heteronormatividade”. Amo o mundo de descobertas que nossa invenção da heterossexualidade abriu nos últimos séculos, com tudo o que oferecem à grande maioria das mulheres e dos homens em termos de liberdade e justiça. E por ter tornado a igualdade geral entre mulheres e homens cada vez mais inevitável.

 

Viver a vida de acordo com a verdade

 

Não, eu lhes dei esta narrativa porque, se quiserem falar conosco, e quiserem que lhes ajudemos a seguir em frente, a questão da realidade da qual falaremos é inescapável. A questão de como viver a nossa vida de acordo com a verdade tem sido central na formação da consciência de cada um de nós. Portanto, iniciará conversas em pé de igualdade com pessoas cujas consciências foram moldadas por uma dura jornada em primeira pessoa para a verdade.

 

Como cristãos, e entre os cristãos, como Amoris Laetitia deixa claro, não há outro nível em que se possa conversar senão o da igualdade. Não existe uma voz paterna verdadeira e vinculativa na Igreja. Desde a vinda de Cristo, a voz de Deus foi e é inescapavelmente fraterna. E, movido pelo Espírito Santo, todo verdadeiro processo de aprendizado é horizontal, entre nós. Se você quiser se apegar a alguma voz de seus pais e, assim, ensinar do alto, então se verá ao contrário, rumando para um mundo ainda mais idólatra do que o nosso.

 

 

Essa conversa que estamos começando a ter, vivo pessoalmente há mais de 50 anos. E em público por quase 40. A única coisa que posso dizer que tem sido constante – lenta, mas constante – ao longo destes anos, é a chegada horizontal entre nós da verdadeira realidade. O reconhecimento de que a orientação estável para o mesmo sexo é uma variante minoritária e não patológica da condição humana tornou-se cada vez mais seguro e pacificamente aceito pelos cientistas e pela população em geral. Como a sensação de que os portadores desta variante minoritária são mais funcionais, mais estáveis, mais felizes e mais capazes de estabelecer relações humanas enriquecedoras na medida em que aceitamos esta verdade como parte formadora de nossas vidas, como parte de nossa capacidade de contribuir para o florescimento dos outros e de nós mesmos.

 

A julgar pelo número de pessoas com quem falei sobre essas questões, de todos os continentes, nos últimos quarenta anos, não sou de forma alguma o único que embarcou em uma longa jornada rumo à auto-aceitação. E como tem acontecido com muitos de meus colegas, meu caminho foi penitencial. Aos poucos meu coração foi partido por Deus que me perdoou minhas idolatrias, minhas falsas certezas, meu desejo de fugir de ser quem eu sou e em vez de me tornar outra pessoa, minha fuga de ser amado como sou. Tive de aprender a reconhecer e distinguir a verdade que vem de Deus e as mentiras que fluem daqueles que se consideram defensores da verdade de Deus e que procuram proteger com firmeza a membresia da Igreja. Tive que aprender que há pouca tentação de seguir o jogo clerical, de progredir profissionalmente, mas ao preço de me calar sobre o que é a verdade da minha vida, como a de tantos irmãos sacerdotes. É uma tentação que abre caminho a um pecado gravíssimo: o de ter ganho o mundo e de ter perdido a alma.

 

 

Aqueles de nós que conheceram as chamas do inferno de perto têm sede da verdade. Porque sabemos que para evitar essas chamas e se tornar um verdadeiro cristão, um verdadeiro ser humano, é necessário evitar acima de tudo o autoengano sobre o que é real, sobre o que o Criador está dando à luz. Muitos de nós já trabalhamos, a nível psicológico e espiritual, muitos dos argumentos que a autoridade eclesiástica se utilizou ao tentar impor outra “realidade”, mais conveniente para os seus costumes institucionais. Esses argumentos não são convincentes, seja qual for a suposta autoridade de quem os exerce. Porque todos imaginam que a realidade que nos mostra quem somos, há muito tempo e por inúmeras confirmações, não vem de Deus.

 

Então, imagine que, como no passado, você queira assumir cargos públicos, por exemplo, em relação aos nossos casamentos, ou à nossa capacidade de realizar determinados trabalhos, ou à nossa aptidão para adoção, para a maternidade ou paternidade. Pois bem, enquanto essas posições continuarem a partir de sua premissa básica, aquela que tenta nos obrigar a deduzir quem somos nós negativamente, a partir de um a priori fundado no ato matrimonial aberto à procriação, elas terão capacidade zero de nos convencer, ou, cada vez mais, a qualquer pessoa de boa vontade, de nada. Você pode enfrentar o fato de que a premissa é falsa? Para que você mantenha seu sistema, precisamos aceitar que somos heterossexuais imperfeitos. No entanto, se não o aceitarmos, não é porque sejamos rebeldes especialmente perversos ou perigosamente desobedientes, mas porque não é verdade.

Para ser fiel a teu sistema, não podes falar conosco. Porque não somos as pessoas que necessita que sejamos para poder falar conosco. Podes falar, como fez no passado sobre nós, descrevendo-nos como um “eles” ou “elas”. O grande desafio que te enfrentas é que se decides falar conosco, este mesmo fato implica no reconhecimento de uma realidade para a qual carece de uma verdadeira descrição.

 

Tentemos ser rigorosos

 

Tradicionalmente houve apenas duas fontes a partir das quais a Igreja tratou de abordar esta questão. Por um lado, certos textos bíblicos, e por outro, certas deduções baseadas na nossa chamada “lei natural”. Dos textos bíblicos não se pode deduzir nada em absoluto com certeza sobre a variante minoritária não patológica da condição humana que chamamos de “homossexualidade”. Em suma, esses textos podem nos ajudar a criticar as práticas culturais violentas e abusivas. Porém agora podemos distinguir muito claramente entre essas práticas, por um lado, e, por outro, as relações que surgem de uma orientação profunda e se exercem em liberdade por aqueles que compartilham uma certa igualdade social.

 

Em relação com a versão atual do direito natural que sustentam as Congregações romanas neste âmbito, podemos dizer algo com absoluta certeza. Deduzir o que são as pessoas a partir de uma proibição tradicional de atos que seriam contrários a algo que essas mesmas pessoas não fazem nem tenta fazer é uma proeza de circularidade lógica. E a lógica circular nunca oferece realmente informação nova sobre nada. Porém, o que é mais importante que isto é o reconhecimento de que, deixando de lados estas duas não-fontes, não há de fato nenhuma outra fonte na revelação divina que tenha algo que diga sobre esta realidade. O que temos, por outro lado, é a forma horizontal e relacional em que a Sabedoria de Deus faz presente a realidade inteligível da Criação no meio de nós para nos mostrar o amor de Deus por nós. Para isso não há autoridade externa. Apenas a autoridade fraterna que nos ajuda a nos mantermos unidos enquanto navegamos em nossa indução eclesial à realidade.

 

Assim, nem a Escritura, nem a Tradição, nem o Direito Natural souberam reconhecer ou falar a verdade sobre esta realidade. Isso não é surpreendente, visto que nosso reconhecimento como uma variante minoritária não patológica é muito recente. No entanto, esse reconhecimento ocorreu entre nós, visto que a dinâmica do Espírito Santo seguiu exatamente o caminho previsto por Jesus nos capítulos 15 e 16 do Evangelho de João. Você vai escolher falar com pessoas que foram moldadas por esse caminho para a verdade e que aceitaram que foram moldadas pela realidade dessa maneira. Ninguém é obrigado a entrar na realidade, mas a própria realidade convida a todos nós a entrar nela com amizade. Isso é parte do que significa a doutrina da Criação.

 

A conversa que começamos a elaborar pode ser um autêntico ensinamento da Igreja nesta área. É uma conversa em que a autoridade da Igreja está se atrevendo a entrar. Suspeito que esse atrevimento tomará a forma de um tímido reconhecimento de que gays e lésbicas, com todas as falhas que compartilhamos com o resto da humanidade, são capazes de aprender a falar a verdade. Que nossa narrativa em primeira pessoa é a de uma filha ou filho de Deus com uma boa consciência. Pecador, sem dúvida; errado em muitas coisas, é claro; mas não radicalmente iludido quanto ao que somos. Também suspeito que Deus fará de todos nós testemunhas do “por quê?”, do “por quê?”, do “para quê?”, que está por trás das bênçãos de Deus para a humanidade com um presente tão estranho. Contanto que nos ajudemos a compartilhar o perdão de Deus e, assim, entrarmos juntos na realidade criada como herdeiros do Reino.

 

Deixo-lhes com as palavras de Gaudium et Spes 36.2, que espero que sejam paradigmáticas para nosso trabalho:

Se por autonomia dos assuntos terrenos entendemos que as coisas criadas e as sociedades gozam de leis e valores próprios que devem ser gradualmente decifrados, postos em prática e regulados pelos homens, então é totalmente correto exigir essa autonomia. Esta não apenas é exigida pelo homem moderno, mas harmoniza também com a vontade do Criador. De fato, pela mesma circunstância de terem sido criadas, todas as coisas estão dotadas de sua própria estabilidade, verdade, bondade, leis próprias e ordem. O homem deve respeitá-las à medida que as isola mediante os métodos apropriados de cada ciência ou arte. Portanto, se a pesquisa metódica dentro de cada ramo do saber ocorre de maneira genuinamente científica e de acordo com as normas morais, nunca entra em verdadeiro conflito com a fé, já que os assuntos terrenos e as preocupações da fé derivam do mesmo Deus. De fato, quem se esforça para penetrar nos segredos da realidade com uma mente humilde e firme, ainda que não seja consciente disso, está sendo guiado pela mão de Deus, que sustenta todas as coisas na existência lhes dá sua identidade. Em consequência, não podemos se não deplorar certos hábitos mentais, que as vezes se encontram também entre os cristãos, que não atendem suficientemente à legítima independência da ciência e que, pelos argumentos e controvérsias que suscitam, levam a muitas mentes a concluir que a fé e a ciência são mutuamente opostas”.

 

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