21 Fevereiro 2022
“O principal desafio para que o Fórum China-Celac se torne um espaço que lute genuinamente por uma transição energética justa ou contra a pobreza é que se constitua como um espaço mais horizontal, e inclusive com participação mais direta dos setores populares latino-americanos na agenda de Relações Internacionais que seus governos trazem para o fórum”. A reflexão é de Ariel Slipak, professor regular do Departamento de Economia da Universidade Nacional de Moreno (UNM), Argentina, em artigo publicado por Nueva Sociedad, fevereiro de 2022. A tradução é do Cepat.
O aprofundamento das relações entre a China e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) coloca uma série de perguntas. É uma ferramenta favorável para o Sul global ou é, estritamente falando, a filiação latino-americana ao Consenso de Pequim? Diante do declínio da hegemonia norte-americana, serão estes acordos, como afirma a China, “mutuamente benéficos” ou, ao contrário, a expressão de uma evidente assimetria e de velhas formas de dependência?
Em um contexto geopolítico e geoeconômico internacional caracterizado pela crise da hegemonia estadunidense e pelo combate global à pandemia da Covid-19, em dezembro de 2021 foi realizada, virtualmente, a Terceira Reunião Ministerial do Fórum China-Celac (FCC), que reúne as delegações diplomáticas do país asiático e dos 33 países da América Latina e Caribe.
Santiago Cafiero, chanceler da Argentina – país que desde janeiro assumiu a presidência pro tempore da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) –, disse que o fórum se consolida como um dos principais espaços de cooperação que pode ajudar a fechar as lacunas no desenvolvimento dos países no contexto da pandemia. A entidade, que nasceu em 2014, emitiu nesta ocasião a Declaração Ministerial do Terceiro Fórum e um Plano de Ação Conjunta 2022-2024, que aprofunda o Plano de Cooperação 2015-2019 (prorrogado e ampliado para o período 2020-2021).
É importante desvendar quais implicações essa entidade tem para a América Latina e o Caribe e como ela se encaixa na crescente participação dos países da região na Iniciativa do Cinturão e Rota, a ambiciosa proposta lançada em 2013 por Xi Jinping, que consiste em uma série de múltiplos projetos de infraestrutura e conectividade, da qual quase 150 países já participam e está realizando transformações geopolíticas, geoeconômicas e ecológicas em escala global.
No início do século XXI, enquanto os Estados Unidos observavam atentamente o Oriente Médio e seu petróleo após os eventos de 11 de setembro de 2001, a República Popular da China iniciou a chamada estratégia Go out e aderiu à Organização Mundial do Comércio (OMC) como uma economia em transição. A estratégia de “saída para o exterior” constituiu uma importante política de incentivo à emissão do Investimento Estrangeiro Direto (IED) em escala global, visando a aquisição de empresas líderes em processos produtivos de alta complexidade tecnológica, bem como a obtenção de recursos primário-extrativos; a incorporação à OMS, enquanto isso, acelerou ainda mais seu comércio com todas as regiões do mundo e aprimora seu lugar como “fábrica global”.
A partir deste momento, a China também aumentou sua participação em segmentos de maior conteúdo tecnológico em várias cadeias globais de valor e iniciou um processo de ascensão geopolítica e geoeconômica que, no início da segunda década do século XXI, permite inclusive começar a disputar a primazia hegemônica com os Estados Unidos, não só no campo comercial, produtivo, financeiro e inclusive do orçamento militar, mas também, especialmente nos últimos cinco anos, permite-lhe aumentar seu poder em áreas como inteligência artificial ou em tecnologias relacionadas às energias renováveis, como a solar e eólica, dominantes em um paradigma tecnoprodutivo pós-fóssil que está prestes a prevalecer.
A relação entre China e América Latina intensifica-se na primeira década do século XXI a partir do crescimento dos fluxos comerciais, que aprofundaram o perfil clássico da região como exportadora de matérias-primas e importadora de produtos de maior valor agregado. O próprio governo chinês definiu em 2008 no primeiro Documento sobre a Política da China para a América Latina (ou “Primeiro Livro Branco sobre a América Latina”) as ligações entre a América Latina e o gigante asiático como duas economias complementares e destacou a “geografia extensa” e os “recursos naturais abundantes” existentes na região.
Depois da publicação desse documento, iniciou-se um período de maior presença de capitais da China na América Latina. Assim, entre 1990 e 2009 o fluxo total de IED da China na América Latina foi de 6,3 bilhões de dólares e tão somente no ano de 2010 ultrapassou os 10 bilhões de dólares, valor que se manteve ao longo do tempo.
Embora o fenômeno da presença ativa de empresas chinesas na América Latina seja recente, arriscamo-nos a fazer uma periodização. Um primeiro período, a partir de 2010, pode ser denominado como o de desembarque “incipiente” ou momento “pós Primeiro Livro Branco”, em que o IED foi direcionado principalmente para o setor de hidrocarbonetos e, em menor escala, para a mineração, a infraestrutura e o setor financeiro. Um segundo momento, que chamamos de “expansão da presença da China em setores estratégicos”, pode ser datado a partir da Primeira Reunião Ministerial China-Celac em janeiro de 2015. O que o caracteriza é a expansão generalizada dentro do setor energético (hidrocarbonetos, mas também energia solar e eólica, grandes hidrelétricas e até anúncios na questão nuclear) e da infraestrutura – com forte interesse na conectividade bioceânica. A presença da China em vários países se sustenta, como aponta um relatório da Latinoamérica Sustentable, em contratos diretos com diferentes governos ou no financiamento de projetos de investimento por meio de seus bancos de desenvolvimento, especialmente o China Development Bank (CDB).
É de grande relevância destacar algumas características comuns aos dois períodos: a reduzida ou nula transferência de tecnologia; a adaptação da China para negociar de maneira flexível com cada país latino-americano; e a imposição da contratação de empresas de seu país como fornecedoras estratégicas dos projetos, que acabam por colocar máquinas e insumos-chave em relação aos quais a China verifica excesso de capacidade produtiva.
A partir de então, os vínculos entre a América Latina e a China geraram polêmicas entre aqueles que consideram vantajoso para os projetos políticos da região que a China fure o poder dos EUA em seu “quintal” e aqueles que manifestam preocupação com a geração de vínculos de dependência ao estilo antigo.
O governo chinês expressa que suas ações, tanto como promotor da Iniciativa do Cinturão e Rota, quanto do Fórum China-Celac, são regidas pelos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, que consistem na não ingerência nos assuntos internos de outros países, no respeito mútuo pela soberania e integridade territorial, na não agressão mútua, na igualdade e benefício mútuo e na coexistência pacífica. A China também tende a solicitar enfaticamente em qualquer negociação o reconhecimento do princípio “uma só China” por seu país em detrimento de Taiwan.
Seguindo Sebastián Schulz, com iniciativas como a Iniciativa do Cinturão e Rota, a China consegue “seduzir quase todo o mundo”, em particular o Sul Global, já que num contexto global de desaceleração econômica aprofundada pela pandemia da Covid-19, e em que se destacam as necessidades de aumentar as exportações para equilibrar as contas externas e o financiamento de infraestrutura, o discurso baseado nos Cinco Princípios e no não estabelecimento de condicionalidades em termos de política fiscal ou monetária é extremamente atrativo para a periferia.
A verdade é que, como apontam Siran Wang, Paulina Gazón e María Marta Di Paola, além do não estabelecimento de condicionalidades para o financiamento de projetos de política econômica ou a não ingerência na política interna como ocorreu com as potências ocidentais, há imposições – explícitas ou implícitas – sobre a contratação de fornecedores chineses ou se faz valer o peso que o país asiático tem na balança comercial das nações latino-americanas nas negociações. A consolidação da China como parceiro estratégico de países com diferentes perfis políticos e visões díspares de desenvolvimento, num contexto de poder assimétrico, denominávamos em 2014 de “Consenso de Pequim”.
Desde então, houve um deslocamento político em vários países latino-americanos para o conservadorismo, o neoliberalismo e até o autoritarismo, que ao final do governo de Barack Obama nos Estados Unidos já delineava a região como uma área de disputa inter-hegemônica. Com o início do governo Trump e os Estados Unidos mais retraídos sobre si mesmos (chegando inclusive a praticar uma política comercial protecionista), prevalece o pragmatismo econômico por parte dos governos latino-americanos e a busca pela equidistância nessas disputas, na tentativa de enfrentar as ligações com o gigante asiático a partir de uma perspectiva “desideologizada”.
Com a Declaração da Primeira Reunião Ministerial do Fórum, que inclui o anúncio de intenções de aumentar o volume de comércio com a América Latina para 500 bilhões de dólares e o IED para os próximos dez anos para um total de 250 bilhões, a China dá mais relevância à região do que qualquer potência ocidental.
Esta declaração, juntamente com o Plano de Cooperação 2015-2019, visa traçar as linhas de uma agenda de cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento, tentando mostrar uma simetria que de fato não existe entre a América Latina e o Caribe e a China. Esses documentos, como os subsequentes, criam espaços de encontro ou sub-fóruns temáticos entre os países, cuja participação é voluntária. Na realidade, apenas traça a agenda da China para a região, deixando os encontros bilaterais entre o país asiático e cada um dos países latino-americanos como verdadeiros espaços de negociação.
Desde a primeira reunião ministerial tem havido um interesse especial nas áreas de energia e infraestrutura, e isso se reflete no aumento do financiamento para esse tipo de projeto. Assim, a China consegue a aceleração da importação de cobre, ferro ou soja da América Latina, mas também garante a região como mercado de exportação de máquinas, equipamentos e insumos específicos. O fato de a China ter lançado em 2015 seu plano Made in China 2025, marca um clima de época em que o país asiático deixa explícitos seus objetivos de avanço tecnológico e intenção de liderar esse tipo de mercado. No ano seguinte, a China também publicou seu Segundo Documento sobre a política chinesa para a América Latina, que salienta a cooperação da China em projetos de desenvolvimento “verde” e se alinha aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 e ao Acordo de Paris, construindo uma imagem que é praticamente a antítese do perfil que Donald Trump estava dando ao governo dos Estados Unidos.
Em maio de 2017, realizou-se na China o Fórum do Cinturão e Rota para a Cooperação Internacional, do qual participaram a presidenta Michelle Bachelet, do Chile, e Mauricio Macri, da Argentina, entre 130 delegações. Ali, a China aprofundou sua orientação para a América Latina, convidando a região – que percebia como uma “extensão natural da rota marítima da seda” – a aderir à iniciativa.
O Documento da Segunda Reunião Ministerial do Fórum, de janeiro de 2018, enfatizou os projetos de infraestrutura e energia e a já mencionada agenda de desenvolvimento sustentável, mas também refletiu as tensões em torno da Iniciativa do Cinturão e Rota, que a delegação chinesa apenas se limitou a “apresentar” e ao qual vários países da região ainda não quiseram aderir. No entanto, por meio do trabalho diplomático, somado ao desembarque de fundos para o financiamento de infraestrutura – e mais recentemente auxílios no âmbito da pandemia da Covid-19 –, com a incorporação da Argentina em fevereiro de 2022, 21 países da América Latina e Caribe acabam aderindo à Iniciativa do Cinturão e Rota, com destaque para os países da América Central que romperam com Taiwan e estabeleceram relações com a República Popular.
A China também tem parcerias estratégicas ou parcerias estratégicas abrangentes com vários países da região. Assinou Acordos de Livre Comércio com Chile, Peru e Costa Rica, enquanto negocia outros três com Panamá, Colômbia e Equador e seis países sul-americanos são membros não regionais do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, liderado pela China.
O Documento da Terceira Reunião Ministerial e o Plano de Ação Conjunta 2022-2024 de dezembro de 2021 expressa continuidade com as diretrizes anteriores, mas destacam especialmente a agenda de segurança, o combate ao terrorismo, a corrupção, a necessidade de ações diante da mudança climática e a luta contra a pandemia da Covid-19, e expõem o interesse de Pequim em inúmeras áreas de cooperação, como tecnologia digital e nuclear.
Como dissemos anteriormente, a assinatura deste Plano de Ação não implica obrigações para nenhum dos países, mas é uma expressão da maior presença da China na tradicional zona de influência dos Estados Unidos, com um discurso muito mais atraente e flexível para cada um dos países.
Vale ressaltar que, enquanto esses eventos diplomáticos acontecem, continuam se expandindo não apenas os projetos de infraestrutura e energia, mas também aqueles voltados para os minerais considerados “críticos” para a transição energética – como o lítio e o cobre –, o que agrava os conflitos ecológico-distributivos nos países da região.
Tanto o Fórum China-CELAC quanto a Iniciativa do Cinturão e Rota aparecem como formas de estabelecer vínculos inovadores e disruptivos em relação aos mantidos pela região com as potências ocidentais tradicionais.
Através da sua posição de parceiro sociocomercial, como promotor do investimento estrangeiro direto ou financiador, a China consegue impor condições aos países do Sul global com modalidades que, embora sejam diferentes daquelas aplicadas pelos ocidentais, também podem ser coercitivas. Isso, no entanto, não deve nos fazer cair em concepções teóricas em que alguns poderes são “maus” e outros “bons”. Do nosso ponto de vista, o importante é deixar de avaliar a conveniência de um tipo de vínculo com um poder levando em conta nossos países como unidade de análise e olhar para os interesses de diferentes classes sociais e atores; os vencedores e perdedores. Estabelecer como ponto de partida a possibilidade de existência de vínculos de “benefício mútuo” já é falacioso.
A relação com a China é de grande interesse para os setores dominantes de cada um dos países latino-americanos, como atestam os grupos econômicos associados ao agronegócio em países como Brasil, Argentina ou Uruguai, os grandes empreiteiros regionais que se enriquecem com obras de infraestrutura de grande escala e até setores ligados à especulação financeira e imobiliária associados a empreendimentos extrativistas, como é o caso da grande indústria de mineração de água do lítio.
A associação linear desses interesses como pertencentes a um país e necessários para o “desenvolvimento” é problemática. Assim, a chegada do investimento direto estrangeiro tende a apresentar-se como uma solução indiscutível, assumindo-a como base para a superação da chamada “restrição externa” das economias através da exacerbação dos projetos extrativistas, o que, segundo esta perspectiva, resultaria na mitigação dos problemas de emprego e pobreza. Esse tipo de análise promove uma cegueira epistêmica que trafica os interesses das classes dominantes como “populares”.
O principal desafio para que o Fórum China-Celac se torne um espaço que lute genuinamente por uma transição energética justa ou contra a pobreza é que se constitua como um espaço mais horizontal, e inclusive com participação mais direta dos setores populares latino-americanos na agenda de Relações Internacionais que seus governos trazem para o fórum. No momento, não apenas isso parece não acontecer, como poderíamos nos perguntar se a China está sendo convidada pela CELAC como organismo para discutir horizontalmente sobre questões globais, ou melhor, o Fórum representa uma expressão unilateral da visão da República Popular da China na região, quase como uma “extensão natural” dos livros brancos da China para a América Latina.
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A América Latina na estratégia da China - Instituto Humanitas Unisinos - IHU