08 Fevereiro 2022
“Obra de um autor muito refinado, o Evangelho de Lucas apresenta páginas que parecem ter sido desenhadas com pincel e que inspiraram a arte e a cultura há séculos”, escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 06-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Terceiro Evangelho. Obra de um autor muito refinado, apresenta páginas que parecem ter sido desenhadas com pincel e que inspiraram a arte e a cultura há séculos. Muitos anos atrás eu estava visitando Boston e estava planejando uma visita no Museu de Belas Artes. Curiosamente, senti-me atraído por uma pintura de um flamengo do século XV, Rogier van der Weyden, pela originalidade do tema. No centro estava uma modelo muito particular, Maria que estava amamentando o recém-nascido Jesus; no primeiro plano um pintor segurava seu pincel e retratava na tela a mãe posando. Obviamente aquele artista era o evangelista Lucas a quem a tradição lendária atribuiu - além daquela real de médico (atestada por São Paulo na Epístola aos Colossenses 4,14) - a profissão de pintor, a ponto de atribuir-lhe algumas Nossas Senhoras negras posteriores de séculos.
Quisemos evocar o autor do maior dos quatro Evangelhos (19.404 palavras gregas) e de uma segunda obra, os Atos dos Apóstolos (18.374 palavras), ambos dedicados a um certo "Sua Excelência Teófilo", porque os fiéis praticantes sabem que este ano, assistindo à Missa, ouvirão sendo proclamada uma passagem do terceiro Evangelho quase todos os domingos. Seria significativo, portanto, que mesmo os não-crentes tomassem em mãos esse escrito, fruto de "acuradas pesquisas” testemunhais, como confessa o próprio Lucas, escritor refinado que, com algumas de suas páginas, que são suas verdadeiras pinturas, conquistou a arte e a cultura ao longo dos séculos, a começar pelo próprio Dante, tocado por um dos principais temas do evangelista a ponto de defini-lo na Monarquia: "scriba mansuetudinis Christi".
Como não pensar - apenas para exemplificar - na maravilhosa parábola do Bom Samaritano (10, 25-37) que quase parece inspirada em relato de crime? Ou na dramática história do filho rebelde e do pai misericordioso que o acolhe com amor (15, 11-32)? Esta última é uma história que fascinou pintores como Rembrandt na tela do Hermitage, que já se tornou uma espécie de cânone artístico-exegético? Menos conhecidos são as infinitas retomadas literários, até mesmo provocativas e deformantes, da mesma parábola, como O Retorno do Filho Pródigo, romance de André Gide (1907) que transforma aquela conversão num fracasso. Aos seus olhos, de fato, aquele jovem teria voltado para casa por fome, covardia e conveniência, desistindo de “morder a maçã silvestre da liberdade” até o fim.
Também por isso a Bíblia se revela o “grande código” da nossa cultura, incessantemente objeto de “re-Escrituras”, para usar a brincadeira lexical de Piero Boitani. Naturalmente, a abordagem de um texto de tamanha significação ideal como o Evangelho de Lucas requer um acompanhamento: é a tarefa da "exegese" que - segundo o que a própria etimologia grega sugere - deve "conduzir (hegeomai) para fora (ek)” do texto todos suas acepções e potencialidades. Portanto, gostaríamos de destacar alguns comentários significativos entre os muitos (em uma breve olhada para minha biblioteca pessoal, contei pelo menos vinte, originais ou em versão italiana).
O primado deve ser atribuído à trilogia de volumes consagrados a Lucas pelo estudioso suíço François Bovon, um dos maiores especialistas desse Evangelho, traduzido pela Editora Paideia (2005-2013). A sua interpretação, que penetra até nos detalhes mais remotos de um texto certamente denso, mas sempre envolvente, vê no programa histórico-teológico do evangelista a centralidade da palavra de Cristo que não descola do terreno acidentado da história para céus míticos, mas ancora-se à concretude e à humanidade, empurrando o leitor-ouvinte para uma opção radical de adesão vital. Desta raiz se ramificam alguns temas principais como o amor, a misericórdia, a mansidão (evocados por Dante), o desapego da posse, a alegria e a oração.
A abordagem permanece, no entanto, aquela histórico-crítica que também é adotada por outro comentário bem mais ágil, embora possuindo todos os componentes necessários (incluindo o texto grego ao lado): o autor é um antigo aluno meu, que se tornou um estimado exegeta, Matteo Crimella, que encaixa a sua obra (2015) em uma série significativa da Editora San Paolo que está propondo uma nova versão da Bíblia a partir de textos antigos, livro por livro. Lendo as notas desse instrumento interpretativo, será possível prosseguir com a leitura do Evangelho segundo uma abordagem mais narrativa que explica a arquitetura geral e sequencial das páginas de Lucas. Além disso, elas são originalmente marcadas em sua seção central (cc. 9-19) por uma espécie de "longa marcha" de Jesus rumo a Jerusalém, a cidade de seu destino trágico, mas também de sua glorificação (a ascensão).
Para aqueles que desejam manter-se em um nível predominantemente filológico-literário, está disponível o Evangelho segundo Lucas (Carocci, 2017) de Riccardo Maïsano, professor da Oriental de Nápoles, cujas notas essenciais apontam para as unidades textuais e contextuais individuais, enquanto a introdução geral tem como objetivo a "reconquista dos tempos e dos espaços perdidos" (história, pano de fundo, atores, autor, coordenadas espaço-temporais, fontes, transmissão do texto). Outros comentários mereceriam menção, mas contentamo-nos em concluir com um texto aparentemente marginal, de cunho espiritual, mas não devocional, seco mas poético, documentado mas leve, obra de um idoso sacerdote amado inclusive por muitos "leigos", o milanês Angelo Casati. Seu "comentário" é emblematicamente intitulado Sulla terra le sue orme (Sobre a terra, as suas pegadas, em tradução livre), publicado em 2013 pela Editora Il Margine.
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Lucas, escriba e pintor da anunciação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU