11 Janeiro 2022
"Recolocar ao centro a dimensão de 'bênção', do 'Bendito sejas, Senhor', esta forma de render graças a Deus por todo o bem que dele nos advém é devolver o seu sentido, o sentido originário à palavra 'Eucaristia'. De sacrifício, não se pode falar senão no sentido de 'sacrifício de ação de graças', escreve Jean-Claude Thomas, Co-fundador do Centre Pastoral Halles-Beaubourg e presidente da Arc en Ciel desde 2003, em artigo publicado por Saint-Merry-Hors-les-Murs e traduzido do francês para o italiano por Fine Settimana, 12-12-2021. A tradução em português é de Luisa Rabolini.
Tive um sonho: cristãos comuns se reapropriavam da oração eucarística, coração das nossas celebrações. Eles se impregnavam dela, provavam seu ímpeto, descobriam sua estrutura interna e, com base nisso, reinventavam-na, reescreviam-na com suas próprias palavras. Como Jesus fez na noite da Ceia, a partir daquilo que os judeus chamavam de "Bênçãos" (Barahkhot em hebraico) nas quais podemos reconhecer a matriz de todas as orações eucarísticas que conhecemos.
Por que esse sonho? Porque me impressiona o que geralmente acontece quando se entra naquela fase central da celebração. Salvo exceções (com Patrice de la Tour du Pin, Xavier de Chalendar, Jesùs Assumendi e alguns outros que se sentiram autorizados a fazê-lo), tem-se a impressão de que muitos, na assembleia, “se separam”. Entra-se numa fase ritual e o rito “é uma questão de padres”, geralmente se pensa. E parece que este também é o caso para muitos cristãos empenhados.
Certamente cada um internamente enfeita sua própria oração. Mas há quase um rompimento. Entra-se em um momento em que há apenas um único piloto. Há quem me conta que é assim na maioria das igrejas, e não apenas para aquele momento, mas para toda a celebração. Não posso aceitar essa "expropriação".
Porque, como padre, tenho consciência de que participo, inclusive quando celebro, de uma celebração comum na qual se exerce o sacerdócio comum de todos os que compõem a comunidade. É juntos, todos juntos, que louvamos a Deus, que vivemos este momento de reconhecimento em que damos graças por todas as maravilhas da criação, as do nosso quotidiano e da nossa história humana.
E principalmente por isso que chegou até nós por meio de Jesus Cristo. Na noite de Quinta-feira Santa, no meio dos seus, viveu com eles essa grande ação de graças. Consciente do que estava para acontecer e do que assumiu o risco, para grande desgosto dos apóstolos, levou livremente em suas palavras e em suas mãos, através do pão partido e partilhado, a entrega de si mesmo nas mãos do Pai. Arrastado para a morte pela fúria dos homens, fez da sua vida entregue uma vida partilhada, fecunda e transmitida graças ao sopro do Espírito.
E é ele que se investe no cerne dessa ação de graças no gesto do pão partido e partilhado.
Digo justamente "gesto", porque não é no pão que algo acontece, mas no sentido que carrega, que simboliza e que nos transmite hoje. É a vida de Jesus Cristo e é a nossa vida, também convidada a tornar-se "pão partido e partilhado", que se reencontram ali e se unem em comunhão de sentido e de entusiasmo.
Essa Eucaristia, tendo no centro aquele memorial dinâmico, é o nosso bem comum. Tem uma estrutura interna: do reconhecimento e do louvor iniciais, passando pelo "dom de Deus" que recordamos, a oração torna-se atenta e suplicante para que o Espírito sopre sobre toda a humanidade. Estes são os três momentos de cada oração eucarística: prefácio e ação de graças, memorial e oração pelo mundo.
Por que então essa expropriação que a torna “propriedade do padre”? Para Joseph Moingt a causa é a "virada sacrificial" da Eucaristia. Aquela virada decisiva em que a Eucaristia começa a ser considerada como um sacrifício. E o homem do sacrifício é o sacerdote, categoria presente no Antigo Testamento e no judaísmo como na maioria das religiões, mas até então ausente do cristianismo nos primeiros séculos. Tema presente em inúmeros escritos de Joseph Moingt. Eis em que termos ele a aborda:
"A Eucaristia tinha, originalmente, um caráter social e convivial - o da refeição fraterna [...] que perdeu quando se tornou, depois de vários séculos, um puro ‘sacrifício’ cuja atividade era reservada ao sacerdote consagrado. A Igreja assumiu uma virada mistérica e sagrada, que não vinha de suas origens evangélicas”. (de: "Croire quand même", 190)
"A comunidade celebrante foi destituída de sua participação ativa na Eucaristia, que se tornou um privilégio sacerdotal, pois apenas os sacerdotes da lei antiga, purificados por sua consagração, eram admitidos diante de Deus para lhe oferecer os dons dos fiéis, privilégio herdado pelos padres da nova aliança, enquanto os simples batizados não são mais considerados ‘santos’ ou ‘puros’, como, ao contrário, Jesus e os apóstolos os declaravam. [...] A Eucaristia está agora voltada exclusivamente para o ‘sofrimento voluntário’ ao qual Cristo se entrega na cruz. [...]
A Eucaristia perdeu seu caráter festivo e sua finalidade originária de reunir os cristãos na amizade fraterna e na alegre expectativa do banquete do Reino em torno de Jesus”. (de "Croire au Dieu qui vient 2, 193-194). "O Vaticano II tentou restituir à Eucaristia algo de seu caráter inicial, mas cinquenta anos depois houve um retorno, quanto a esse ponto como em muitos outros, e se prefere dar maior importância à sacralidade do gesto do que à santidade evangélica. Temos, portanto, um caminho a percorrer, voltar ao espírito do Concílio para recomeçar a avançar novamente.
Tanto no caso da Eucaristia quanto no do Batismo, a teologia do sacramento precisa ser revisitada por um retorno ao Evangelho. [...] Da mesma forma, no caso da Eucaristia, será necessário dar maior importância, maior significado sacramental à presença de Cristo em sua comunidade, reunida para ouvir sua palavra e tornar-se seu corpo, do que para a presença ritual da carne de Cristo na hóstia consagrada". (de "Croire quand même", 190) "A Igreja atualmente conhece apenas uma forma de Eucaristia, é a celebração por um padre consagrado... Quando se consultam os relatos das origens cristãs, não se vê nenhum apóstolo, nem qualquer outro, colocar-se à parte da comunidade em virtude de um caráter sagrado, nem agir como ministro de um novo culto, nem realizar atos especificamente rituais, não se observa nenhum traço de distinção entre pessoas consagradas e não consagradas, [...] o registro dos encargos de uma instituição sacerdotal está vazio". (de "Dieu qui vient à l'homme", 842)
É preciso esperar o início do século III para ver a distinção clero-laicato entrar na Igreja, e é nesse ponto que vemos aparecer o primeiro padre, que é o bispo. Nestes tempos em que, por muitas razões, se busca um novo equilíbrio entre padres e leigos, meu sonho poderia contribuir para esta busca? Não é difícil de implementar. E, para dar uma contribuição, aqui está uma bênção judaica, ou um conjunto de bênçãos propostas por um amigo, um bom conhecedor do judaísmo de ontem e de hoje. Mostra-nos uma das fontes das nossas Eucaristias:
Bendito sejas, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó!
Usando a força de teu braço, dobras os orgulhosos,
derrubas os poderosos de seus tronos, julgas os violentos.
Santo és tu e terrível é teu nome. Bendito sejas, Senhor, Deus Santo!
Bendito sejas tu que nos dás a graça da ciência e do conhecimento!
Que aprecias a conversão e que perdoas abundantemente!
Bendito sejas tu, Senhor, nosso Deus, Rei do universo, que tiras o pão da terra.
Bendito sejas tu, Senhor, nosso Deus, Rei do universo, que crias o fruto da videira.
Bendito sejas tu, Senhor, nosso Deus, Rei do universo, que nos santificaste com os teus
mandamentos,
que em nós encontraste prazer e, com amor e favor, nos deste o shabbat em herança,
lembrete da obra de Criação... e lembrete da saída do Egito.
Bendito sejas tu que fizeste nossos pais passarem da escravidão para a liberdade.
Recordamos a sua Páscoa, a sua passagem,
tu que os conduzistes através do Mar Vermelho da escravidão à terra prometida,
acompanhando-os na sua viagem pelo deserto.
Bendito sejas tu que nos fazes passar da morte para a vida
Bendito sejas tu, Senhor, que amas a justiça!
Bendito sejas tu que trazes cura às nossas feridas.
Vê a nossa miséria... Livra-nos em teu nome...
Soa a grande trombeta para a nossa liberdade...
Bendito sejas tu, Senhor, que reúnes os exilados do teu povo.
Abençoe este ano para que seja bom... Dê orvalho e chuva...
Bendito sejas tu, Senhor, que abençoas os anos!
Bendito sejas tu, que ouves a oração!
Escutas, Senhor nosso Deus, a voz da nossa oração...
Dar à Eucaristia o seu sentido original
Recolocar ao centro a dimensão da "bênção", do "Bendito sejas, Senhor", esta forma de render graças a Deus por todo o bem que dele nos advém é devolver o seu sentido, o sentido originário à palavra "Eucaristia". De sacrifício, não se pode falar senão no sentido de "sacrifício de ação de graças".
Sacrifício e oferta não quiseste,
os meus ouvidos abristes.
holocausto e expiação pelo pecado não reclamaste.
Então eu disse: “Eis aqui venho.
No rolo do livro de mim está escrito,
deleito-me em fazer a tua vontade.
Ó Deus meu, sim, a tua lei está dentro do meu coração”. (Salmo 39/40, 7-9)
De fato, falar de "sacrifício" no sentido atual e religioso do termo significaria que Cristo, em sua paixão e morte, oferece ao Pai o peso do sofrimento necessário para que a humanidade obtenha a redenção e seja salva. Infelizmente é uma forma de entender a redenção espalhada na mente de crentes e dos não crentes há séculos. E na teologia de Santo Anselmo e em sua teoria da satisfação, segundo a qual "Cristo sofreu como substituto da humanidade, satisfazendo com seu mérito infinito as exigências pedidas pela justiça divina".
Isso faria do Pai "o Deus perverso" de que fala Maurice Bellet. Quando Joseph Moingt fala de "virada sacrificial" com as consequências que ela acarretou, ele também nos convida a uma compreensão correta e não sacrificial do mistério de Cristo que não se ofereceu como vítima e, sobretudo, não como " vítima expiatória", mas foi livremente até ao fim do seu caminho, na escuta do Pai, no amor e na verdade, descendo às profundezas das nossas misérias humanas e do confronto com o mal, colocando-se novamente nas mãos d'Aquele que abre a humanidade ao alento libertador da ressurreição.
"Resgate" é o que nunca é pago, é o que Deus realiza para abrir um caminho de liberdade aos homens, libertando-os de toda escravidão.
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A Eucaristia, privilégio do padre ou bem comum? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU