03 Janeiro 2022
"Em 1976, o levante de Soweto obrigou o mundo a acertar as contas com a emergência sul-africana. Desde então, Tutu apoiou o embargo econômico contra seu país. Dissidência não violenta. Era preciso paciência e persistência. O importante era não ficar parado olhando. A neutralidade, quando a dignidade humana está em jogo, é o erro mais imperdoável", escreve Carlo Baroni, em artigo publicado por Corriere della Sera, 27-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando criança, ele queria ser médico. Mas seus pais não tinham dinheiro para pagar seus estudos. Assim, ele curou de outra forma as feridas de uma humanidade maior: aquela da sua África do Sul. E deu a receita para o mundo todo derrotar o preconceito e o racismo. Desmond Tutu morreu no último domingo na Cidade do Cabo. Ele completou 90 no dia 7 de outubro. Com ele se encerra o capítulo mais importante da história de seu país. Com Nelson Mandela, ele lutou contra a injustiça e a discriminação. Ambos venceram com o poder das palavras. E até do perdão.
A imagem da Nação do Arco-íris é dele. Deste pequeno, grande homem que os poderosos da terra iam homenagear. Chefes de estado, princesas e reis. Entre os últimos, os duques de Sussex, Meghan e Harry, que justamente pensavam em se instalar na África do Sul. O ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, lembrou-o em um tweet como "um mentor, um amigo e uma bússola moral". Desmond Tutu sempre foi um espírito livre e mesmo nos últimos anos, quando a África do Sul estava trilhando o caminho da democracia, não teve escrúpulos em criticar os novos governantes, quando era necessário fazê-lo, mesmo que pertencessem ao seu partido.
Palavras proféticas. Seu j’accuse contra o ex-presidente Jacob Zuma encontrou resposta na prisão por corrupção. O atual líder da África do Sul, Cyril Ramaphosa, escreve que "o desaparecimento de Tutu é outro capítulo no luto de nossa nação: nos despedimos de uma geração de cidadãos formidáveis que contribuíram para nos deixar em herança uma África do Sul livre".
Ele vinha de uma pequena cidade não muito longe de Joanesburgo, Klerksdorp, fundada por colonos bôeres.
Perto havia minas de ouro e diamantes. A riqueza infinita para poucos, o sofrimento para todos os demais. Aqueles eram os anos em que os arquitetos do apartheid projetavam o muro que separaria o país. Uma divisão que se tornaria insuportável no início do segundo pós-guerra com a chegada ao poder do Partido Nacional, o movimento da minoria brancos dos africâner. A segregação racial tornou-se lei e a África do Sul o pária a ser evitado na convivência dos países civilizados.
Para Desmond Tutu, era hora de entrar em campo. Com uma arma que parecia incapaz de ferir os opressores: o diálogo. Tentando entender as razões de todos. E também os erros. Como bispo, ele tinha mais liberdade de movimento e de palavra. E usou os dois. Cada metro e cada sílaba para mostrar ao mundo a verdadeira face de sua África do Sul. Outros como ele sucumbiram à raiva e à violência. Homens como Stephen Biko, cujo protesto só resultou em mais repressão e morte. É uma música inesquecível de Peter Gabriel. Em 1976, o levante de Soweto obrigou o mundo a acertar as contas com a emergência sul-africana. Desde então, Tutu apoiou o embargo econômico contra seu país. Dissidência não violenta. Era preciso paciência e persistência. O importante era não ficar parado olhando. A neutralidade, quando a dignidade humana está em jogo, é o erro mais imperdoável.
“Se vocês forem neutros em situações de injustiça, escolheram o lado do opressor. Se um elefante tem uma pata sobre a cauda de um rato e vocês dizem que são neutros, o rato não apreciará a vossa neutralidade”.
A escolha da não violência rendeu-lhe o Prêmio Nobel da Paz em 1984. Antes dele, em 1960, Albert John Luthuli, presidente do Congresso Nacional Africano, e depois dele, em 1993, Nelson Mandela, quando a história da África do Sul já havia tomado outra direção. Três paladinos da revolução com um sorriso. Principalmente o de Desmond Tutu. O sorriso da sua África, apesar das feridas e do sofrimento.
E justamente como quem sentiu a dor na pele, ele sabia mais do que ninguém que a vingança é uma tentação que te deixa vazio. A Comissão Justiça e Verdade é seu maior legado.
A intuição de colocar vítimas e algozes em torno da mesma mesa. Fazer com que se olhassem nos olhos, falar uns com os outros, dar um alfabeto ao Mal. E também para o Perdão. O primeiro pilar da justiça restaurativa.
Permanecem as lágrimas desse bispo ao ouvir o relato de atrocidades indescritíveis. Histórias contados em um filme devastador e verdadeiro de 2004: In my Country.
Nos últimos anos lutando contra um tumor de próstata, diagnosticado em 1997, seu corpo encolhia cada vez mais em uma cadeira de rodas. E aqueles anos que nunca deixaram de contar uma esperança de um mundo onde era bom estar. Um mundo com as mil cores de sua África do Sul.
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Tutu, o bispo que demoliu o apartheid com o sorriso e libertou o país do arco-íris - Instituto Humanitas Unisinos - IHU