03 Janeiro 2022
A globalização acentua o desenraizamento e cria desenraizados diante dos amplos horizontes que se abrem. A reação é se fechar, mas, para viver uma abertura global, é preciso uma comunidade de pertença, uma pátria.
A opinião é do historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado em Domani, 27-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Nascere non basta. Bambini invisibili, tratta dei minori e stato civile in Africa” [Nascer não basta. Crianças invisíveis, tráfico de menores e estado civil na África], o livro das edições San Paolo, organizado por Adriana Gulotta, conta a história de muitos meninos e meninas, mas também de jovens e adultos, que, diante da vida, se encontram sem nome nem cidadania.
Ele se centra em particular na África, mostrando que, com um trabalho paciente, com as mãos nuas, não é impossível contrariar um destino de anonimato desde o nascimento, do qual não é fácil se resgatar.
Dos 125 milhões de crianças que nascem todos os anos no mundo, um terço não é registrado civilmente: uma faixa da população que, anualmente, vê um destino de exclusão se perpetuar.
Essa é a história das crianças “invisíveis”, que se tornam menores vendidos, pequenos escravos bons para todos os ofícios, até mesmo os mais arriscados, inclusive o do sexo, mas também crianças-soldado, mão de obra barata e fácil de manejar (melhor do que os adultos), fornecedores de órgãos para os transplantes (e, portanto, condenados à morte), trabalhadores domésticos sem direitos e muitas vezes sem retribuição... Pessoas destinadas a serem exploradas de todos os modos.
Geralmente, nos concentramos nos casos individuais, nos grupos de explorados, mas aqui chegamos ao cerne daquele que é o mecanismo de exclusão: a falta de uma identidade legalmente reconhecida pelo Estado, razão pela – como se lê no livro – “a pessoa não faz parte da população da própria nação, não pode se matricular na escola, nem usufruir dos serviços de saúde, fica mais vulnerável à exploração e aos abusos”.
As consequências sobre a vida das pessoas, primeiro das crianças e depois dos adultos, são muitas, mas uma única exclusão está na base de tudo. O livro representa dramaticamente a carência fundamental de muitos pequenos diante do próprio futuro: eles existem, mas não são reconhecidos; eles vivem, mas são invisíveis; seu nome não tem relevo legal e significado para a sociedade e as suas instituições. Um povo de invisíveis vive no mundo.
Adriana Gulotta, organizadora da obra, nos lembra desde a introdução que não se trata apenas de uma história africana, mas de muitos países do mundo: desde os Rohinghya, “o povo nunca registrado da Ásia”, às crianças sem documentos na fronteira com os Estados Unidos, primeiras vítimas daquele êxodo do desespero e da esperança de milhares de centro-americanos que sobem do Sul para os Estados Unidos, e de muitos outros.
Em nível internacional, também já sabemos que o tráfico de menores é uma nova escravidão: um povo de 10 milhões de crianças e adolescentes no mundo. Se perderem a memória de quem ainda são ou não a amadureceram, acabarão perdidas no caos do mundo. Sem documentos, são apátridas.
O registro civil é tudo menos uma banalidade ou um rito óbvio. É a memória objetiva e jurídica de uma pessoa existente em uma comunidade nacional, para além da consciência do sujeito ou dos seus familiares. Para quem vive nos países europeus, o registro civil parece uma normalidade, quase uma obviedade, embora – nos casos em que não ocorre – sejam constatadas as consequências realmente negativas que daí decorrem.
Em vez disso, ele representa não só o fundamento subjetivo da própria existência jurídica e social, dos direitos e dos deveres, mas é também um elemento decisivo para que um aglomerado se torne, de fato, uma sociedade civil, com uma base jurídica e com a presença de instituições democráticas. O voto, por exemplo, está estreitamente ligado à cidadania.
O livro mostra, por meio de muitas histórias dolorosas, as consequências da ausência do registro civil. Pode-se dizer: a pessoa nasce, mas vive pela metade. Os testemunhos sobre a realidade provêm de atores do território ligados ao compromisso da Comunidade de Santo Egídio e do programa Bravo! (Birth Registration or All Versus Oblivion!).
Ele não conta simplesmente os casos limítrofes, as histórias dolorosas, um costume que é difícil de mudar, instituições que não funcionam... Já valeria a pena. É também a história de uma “revolta” contra a realidade das crianças invisíveis que as comunidades de Santo Egídio encontram cotidianamente na África e em outros países do mundo.
Essa revolta não é apenas uma denúncia, mas também um estudo laborioso e apaixonado para ajudar as instituições civis a assumirem essa demanda de vida. A revolta tem sido paciente, feita de competências adquiridas e de capacidade de colaboração e de serviço às instituições. Porque são necessárias instituições que funcionem in loco para ter acesso à comunidade civil com a própria identidade legalmente reconhecida, sancionando a saída da faixa dos discriminados de fato, sujeitos do acaso e da vontade alheia, não cidadãos livres de um Estado que reconhece a igualdade dos direitos.
O não registro civil produz não só um mundo de invisíveis, mas também de súditos, desprovidos direitos, impossibilitados de barganhar, sujeitos a toda violência, acima de tudo a da economia. Penaliza particularmente as meninas e as mulheres, cujo futuro não é pensado como sujeitos de uma sociedade civil e de uma economia em crescimento.
Quanto mais os invisíveis se tornam atores, quanto mais as mulheres se tornam protagonistas, mais se desenvolve a economia de um país. Sabemos bem disso. O atraso de faixas inteiras da população está ligado justamente a esse “anonimato”, que as destina a não terem acesso a nenhuma oportunidade, mas a se limitarem a sobreviver.
Por isso, inicialmente, falava-se da ausência de registro civil como de uma condenação para os indivíduos, mas também o é para grande parte da população e, na verdade, para uma sociedade cada vez mais caracterizada pela desigualdade. Mas essa desigualdade cobra um preço. Porque, no mundo global, os jovens não se resignam ao anonimato, mas procuram formas, até mesmo violentas e opositivas, para se afirmarem.
É uma reflexão que devemos fazer com mais atenção. Nas páginas desse livro, lê-se a dinâmica de um trabalho que merece atenção também nos seus detalhes. A reconstrução detalhada explica de fato como a história de uma “revolta” contra uma grande injustiça passa por meio de um compromisso construtivo e competente, assim como pela revitalização das estruturas e instituições do Estado, as quais haviam sofrido com as crises econômicas e os cortes orçamentários.
Um Estado com instituições que funcionam é uma grande conquista, especialmente para as camadas menos protegidas. O programa Bravo! mostra como paixão e competência caminham de mãos dadas. Uma não se esgota no crescimento da outra. A competência não desgasta a paixão, mas indica que a “revolta” contra a desigualdade é possível e pode dar frutos concretos cotidianamente.
O Bravo! nasce dessa revolta contra a exclusão e oferece, por meio do registro civil, à menina ou ao menino, mas também ao adulto, as possibilidades de readquirirem plenamente a própria cidadania, de serem livres. Não é a conquista de uma condição de opulência ou de sucesso, mas a libertação de uma escravidão que se torna um fato cultural e também uma festa em comunidades marginais e periféricas.
Tzvetan Todorov falou do homem contemporâneo como de um “homem desenraizado”. Desenraizado significa sem país: nunca o teve, perdeu-o, é estranho a ele ou assim se sente. A globalização acentua o desenraizamento e cria desenraizados diante dos amplos horizontes que se abrem. A reação é se fechar, mas, para viver uma abertura global, é preciso uma comunidade de pertença, uma pátria.
Ao ler esse livro, fiquei impressionado não apenas com as histórias de dor, mas também com o que pode ser feito para apagá-la e abrir oportunidades para o futuro. Repensei a palavra “pátria”, que muitas vezes limitamos à retórica nacionalista. Pátria, do latim pater, pai, mas também de patrius, é a terra dos pais. O estado civil é a memória do pertencimento a uma pátria.
O trabalho do Bravo! é encontrar um nome e uma pátria, uma obra de grande humanismo. O sentido de pessoa, de uma menina ou de um menino, está escrito em um nome e em um sobrenome, em generalidades que devem ser registradas e confiadas, no registro civil, à memória das instituições. Depois, haverá a história de uma vida que se desenvolve, cresce, morre. Mas que deixará um rastro sobre a terra.
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Crianças sem cidadania tornam-se escravas do terceiro milênio. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU