15 Dezembro 2021
Precisamos de profecias, fala Dom Virginio Colmegna, 76, há dezessete anos presidente da Casa da caridade do Milão. Milhares de vidas sofridas passaram diante de seus olhos.
Ainda assim, o seu Natal será de esperança. “Devemos ser sonhadores, cultivar a utopia na prática de cada dia. Eu simplesmente não consigo ser pessimista. Nas pessoas humildes, mesmo entre aquelas que clamam por dor ou injustiça, existe uma carga positiva que deve ser redescoberta. Mas precisamos da coragem da radicalidade, como nos ensinou o cardeal Martini. Para além da fé, para mim, o Natal sempre foi um tempo de renascimento, uma data para recomeçar, reconhecendo como valores sociais também a inocência e a ingenuidade”.
A entrevista com Virginio Colmegna é de Dario Cresto-Dina, publicada por La Repubblica, 12-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que o senhor pensa quando fala sobre radicalidade?
Decidir, fazer escolhas incômodas. Infelizmente, abundam os fotógrafos de realidade. Refiro-me àqueles que denunciam as urgências, mas depois as deixam inalteradas. A política é vergonhosamente tímida em se adequar às transformações da sociedade que, ao contrário, deveriam ser antecipadas e geridas.
Que país o senhor imagina?
Um país que recomeça da fragilidade para reconstruir uma justiça social e que dá sinais verdadeiros de coesão. O olhar deve ser aquele que o Papa Francisco nos mostra com Fratelli tutti e Laudato Sì, ou seja, a capacidade de reatar os laços. Martini a definia como amizade cívica.
É um conceito que o presidente Mattarella recomendou várias vezes.
Os aplausos da Scala (1) emocionaram-me. Precisamos de outras testemunhas fortes como ele, precisamos de instituições para buscar juntos a utopia que Ernesto Balducci chama com os pés no chão.
A pandemia marca uma cesura histórica: haverá para sempre um tempo antes do vírus e um tempo depois do vírus. Não acredita que a prioridade agora seja fazer recomeçar a economia?
Houve e em parte ainda existe a temporada da resistência. Agora seria preciso uma pausa para entender que nada pode realmente permanecer como antes. A grande reforma do PNRR não pode se limitar à economia, é necessária uma revolução ética. Temos que olhar um para o outro de maneira diferente. Francisco fala de conversão ecológica. Significa mudar estilos de vida, comportamentos, enfim, a nossa forma de agir. Eu sinto tudo isso, quero começar algo novo. Ainda que eu seja um velhinho.
O senhor encontrou milhares de desesperos. O que lhe deixaram?
A certeza de que os últimos da terra, aqueles que o Papa Francisco chama de restos, são um dom.
Representam a alegria de ser padre. A dor une os homens mais do que qualquer outra coisa. Estou pensando, por exemplo, nas mães de crianças autistas e com deficiência física. Saí da cidade de Sesto San Giovanni de uma casinha cheia de rosas onde acolhi portadores de deficiência, muitos dos quais foram retirados de centros de saúde mental. Passei onze anos com eles. Chamam-me de padre de rua, mas sou um padre de comunidade: relações, fraternidade, centralidade da pessoa.
O que é hoje a Casa de Caridade de Crescenzago?
Uma instalação pública que abriga cerca de uma centena de pessoas e 30 famílias de refugiados afegãos. Mulheres, homens, crianças. Para mim é um lugar teológico que tenta unir três energias: espiritual, cultural e política. Com a inventividade para a mudança, como nos ensinou Giorgio La Pira. Nunca como neste período frequento o lugar que me é mais caro: a capela.
Ajoelho-me e penso, que eu tenha algumas ideias!
Quais são as novas pobrezas?
A solidão dos sem família, aquela dos idosos, as fragilidades psíquicas e aquela oculta em tantos que sentem vergonha da pobreza. Eles não dizem isso, mas sofrem. Meu pai e minha mãe também se enquadravam nessa categoria de pobres. Meu pai era inválido, minha mãe era operária na Lazzaroni de Saronno. Quando recebia seu salário, a primeira coisa que fazia era guardar o dinheiro do aluguel. Depois disso, restava pouco. Eu via sua labuta diária. Só tínhamos um pequeno banheiro no corredor externo, mas em casa tínhamos que andar esfregando com os pés trapos de lã porque minha mamãe não abria mão do piso encerado. Esta é a dignidade dos pobres.
Se o senhor renascesse, seria novamente um padre?
Não me desagrada a política, mas sim seria novamente padre, sem qualquer hesitação. Tornei-me um aos vinte e quatro anos e enviaram-me entre os pobres de Bovisa, entre as grandes fábricas, entre os primeiros imigrantes do Sul, especialmente da Apúlia e da Calábria. Era 1969, fiquei até 1976.
Depois o cardeal Martini chegou a Milão. Como foi o vosso primeiro encontro?
Escrevi-lhe uma carta na qual lhe dizia que gostaria de fazer uma experiência forte. Chamou-me ao arcebispado, fiquei lá três dias, depois com ele num Fiat Panda fomos ao mosteiro das beneditinas de Viboldone onde ficamos por tempo numa sala, em silêncio. No final, disse-me: vou te mandar a Sesto San Giovanni.
O que acredita que aprendeu com os pobres?
A não me contentar com uma caridade diluída, que cheira a bom mocismo. Um daqueles operários me ensinou um provérbio que explica como é tortuoso o caminho para chegar à verdade ou mais simplesmente a maneira de fazer a coisa certa: saiba que em um saco de nozes há um saco de milho. Na vida é preciso vasculhar.
Martini, ao confiar-lhe a direção da Casa de Crescenzago, pediu-lhe que a tornasse um lugar onde a palavra caridade fosse repleta de justiça. Acredita ter conseguido?
Não sei, tentei, mas sempre duvido. Eu sei que reaprendi a ler muito. Simone Weil, Eugenio Borgna, Benedetto Saraceno, Edgar Morin. É preciso a humildade da leitura para saber ouvir e intuir os sentimentos do nosso próximo. Os refugiados, por exemplo, falam comigo em silêncio, com os seus rostos imóveis, tanto estão fechados em si mesmos.
A imigração é a maior emergência?
Não é mais uma emergência. É uma urgência. Mas Francisco tem razão quando diz: nos deixem chorar contra a globalização da indiferença. A questão é decisiva para o futuro do mundo e nós nem mesmo conseguimos enfrentar o Ius soli. O acolhimento é uma escolha da civilidade em relação a um fenômeno estrutural e não temporário. Todos os migrantes não podem ser transformados em párias, devem ser protagonistas de seu futuro. Se não se deixam faixas de marginalidade, os problemas de segurança social também podem ser limitados.
Milão sempre tem o coração na mão?
Em parte sim, mas deveria desacelerar a corrida empreendedora e pensar mais no seu capital humano, que é um patrimônio imenso. E a política deve voltar a uma visão metropolitana.
Seu mandato expira em 2022. O que fará depois?
Eu gostaria de continuar assim, mas não cabe a mim decidir.
O senhor nunca tem dúvidas sobre a fé?
Para acreditar é preciso também duvidar, fazer falar o não crente que está em nós. Cada vez que me encontro diante de um crucifixo, faço-lhe apenas uma pergunta: Deus, onde estás?
1.- O entrevistado refere-se à abertura oficial da temporada 2022 do Teatro La Scala de Milão, no dia 07 de dezembro, dia de Santo Ambrósio, com a apresentação de Macbeth segundo Giuseppi Verdi. O presidente da Itália, Sergio Matarella, ao entrar no La Scala, foi ovacionado durante quatro minutos sob os gritos de 'Bis'. Matarella está terminando o seu mandato de seis anos e não aceita ser reconduzido apesar de haver um importante movimento pedindo a sua recondução.
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“Eu, um padre feliz, procuro Deus entre os pobres”. Entrevista com Virginio Colmegna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU