26 Novembro 2021
"Se não mudarmos primeiro o nosso cotidiano, se não recusarmos as tantas pequenas e grandes injustiças avalizadas como normais por milênios de preconceitos, nunca haverá aquela mudança necessária, justamente, para viver bem e não apenas existir. Nós o faremos?", pergunta Laura Boldrini, presidente da Câmara dos Deputados da Itália e ex-porta-voz do Alto Comissariado para os Refugiados da ONU (UNHCR), em artigo publicado por Domani, 25-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Este texto é um trecho do livro de Laura Boldrini Questo non è normale. Come porre fine al potere maschile sulle donne (Isso não é normal. Como acabar com o poder masculino sobre as mulheres - em tradução livre) publicado pela Chiarelettere Esta feminista foi a maior revolução pacífica do século XX. Quebrou com milênios de submissão, em que as mulheres não usufruíam de autonomia, não tinham direitos e não tinham o poder de decidir por si mesmas.
Mas a revolução está inacabada, não só porque ainda temos objetivos a atingir, mas também porque em alguns países nunca se concretizou e muitas ainda não desfrutam de direitos. No Afeganistão, onde o retorno do Talibã cancelou vinte anos de evolução no campo dos direitos; na Arábia Saudita, onde a discriminação e marginalização de gênero estão profundamente enraizadas; no Iêmen, com suas crianças noivas, o último país do mundo em igualdade de gênero.
Os descendentes das casas reais árabes são enviados ao exterior para se formar e se abrir, mas isso não os salva de aplicar uma visão obtusa e misógina ao retornar à sua pátria. Não se pode dizer que uma revolução está completa se seus efeitos atingem apenas uma parte da população feminina.
Enrico Berlinguer afirmou em 4 de março de 1984, durante a VII Conferência Nacional de Mulheres Comunistas: Uma coisa, porém, adquirimos, como Partido Comunista Italiano: que no Ocidente a revolução [...] só pode acontecer se houver junto a revolução feminina, e que se não houver revolução feminina, não haverá nenhuma real revolução. [...] Mas também adquirimos outra coisa [...]: ao se libertar [as mulheres] contribuem para a libertação de toda a humanidade. E, portanto, também dos homens.
Palavras santas, é só o que posso comentar!
O que é, de fato o feminismo?
É o exato oposto de um movimento que tenta tirar do poder os homens, ao contrário do machismo que é um fenômeno dirigido contra as mulheres.
Feminismo é a luta contra as discriminações e a afirmação dos direitos. Das mulheres e, consequentemente, de todos. Feminismo não é suplantar os homens substituindo-se a eles, mas estabelecer as bases para uma sociedade mais justa, inclusiva, capaz de apreender e valorizar as diferenças. Quem acredita nessa perspectiva deveria ser naturalmente feminista. O chauvinismo masculino dá aval às discriminações; o feminismo as rejeita e as cancela.
Feminismo não é um palavrão. Sobre este termo, na Itália, foi realizada uma manipulação que distorceu o seu significado, dando um sentido negativo a um movimento que teve grande força e um impacto positivo sobre a sociedade, tornando caricaturadas as mulheres que o professam: más, desleixadas, pouco atraentes, masculinas, zangadas com os homens. E isso afetou negativamente a percepção da opinião pública.
Eu sou uma feminista. E falo feminista; assim como está estampado em um moletom que me deram de presente no Canadá, um país onde nas lojas de roupas masculinas se vendem de todas as cores, com as palavras: “Je parle féministe”. Como falam feminista no Reino Unido, onde é considerado algo cool, então todos se vantam de serem considerados feministas; até mesmo os conservadores reivindicam a necessidade de instaurar uma sociedade igualitária.
Enquanto na Itália, homens e políticos - com raras exceções – tomam todo o cuidado de não afirmar em público que são feministas. Em primeiro lugar porque não o são, depois porque não consideram importante ter que ser, visto que consideram isso "coisa de mulher". Finalmente, mesmo que tivessem alguma sensibilidade particular a respeito, eles não o diriam de qualquer maneira, porque têm medo de perder a credibilidade aos olhos dos homens. E mesmo muitas mulheres e garotas na Itália tomam distância do feminismo, considerando-o um fenômeno superado e inútil. Também por esta leitura superficial, que tem gerado um crescente distanciamento das jovens nas questões da igualdade, depois de ter percorrido tanto caminho sofremos um impasse e, pela primeira vez desde 1946, os nossos direitos estão em risco. Os que já foram conquistados e os que ainda devem ser conquistados.
O feminista italiano Salvatore Morelli havia imaginado uma "Renascença das mulheres".
Compartilho o seu desejo e digo que nós, hoje, devemos dar vida a uma Nova Renascença para as mulheres, uma Nova Revolução Feminista. É hora de relançar os direitos reconhecidos nos códigos e praticar a igualdade entre homens e mulheres no dia a dia. Um caminho de consciência que começa na escola e deve acompanhar-nos no nosso modo de viver, pensar e falar. Uma mudança de perspectiva e de paradigma para abrir caminho para uma sociedade mais justa e sustentável.
E também precisamos de uma nova temporada de mobilização geral das mulheres, sobretudo para superar as fragmentações do movimento feminista, que não consegue impactar como deveria a opinião pública, justamente por causa dessas tantas divisões.
“Eu vivi tempo demais para não ter um forte ceticismo sobre a eficácia da obra coletiva feminina”, escrevia Matilde Serao em 1916 em Fala uma mulher. Diário feminino de guerra: como podemos negar o ardor, o zelo, a boa vontade de cada mulher, em todas os comitês e subcomitês, em todos os patronatos, em todos os entes de proteção? Mas quando esses ardores e boas vontades femininas se unem, em quinze, em trinta, em cinquenta, são tão distintos e contrários, tão variados e hostis, que acabam por se dissolver mutuamente. [...] e quanto mais cresce o número de pessoas reunidas por esses grupos femininos, mais se torna quase invencível a resistência passiva, a cada proposta que não seja antiquada e banal, a cada projeto que não seja marcado e desgastado pelo tempo e pelo uso. Meu pessimismo parece exagerado? Vamos fazer com que não seja mais assim.
Somos milhões e devemos conseguir gerar aquela força capaz de nos transformar em uma única rede.
Nós, mulheres, devemos nos concentrar sobre isto: ser unidas e estratégicas. E visar um propósito muito específico: o direito de viver bem, não o direito de apenas existir. O direito de avançar e ser respeitadas.
Tendo em mente um ponto: se não mudarmos primeiro o nosso cotidiano, se não recusarmos as tantas pequenas e grandes injustiças avalizadas como normais por milênios de preconceitos, nunca haverá aquela mudança necessária, justamente, para viver bem e não apenas existir.
Nós o faremos?
Vamos investir as nossas energias para evitar que o que nos prejudica se repita? Estamos dispostas a enfrentar as consequências?
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Como acabar com o poder masculino sobre as mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU