Pesquisadora analisa dimensões ligadas à religiosidade e como elas estão conectadas a aspectos que passarão a fazer parte da realidade expandida do metaverso
O metaverso - ou melhor, o que tende a se transformar no metaverso - é capaz de abarcar todas as dimensões da vida, inclusive as religiosas, mesclando a realidade concreta à digital. Muito embora ainda não sejamos capazes de prever o que significará ser católico no metaverso, algumas dimensões sobre a religiosidade em ambientes virtualizados já fazem parte do nosso cotidiano.
É por isso que a doutora e pesquisadora Phyllis Zagano aponta que certos aspectos da religiosidade já têm sido vividos “virtualmente há muitos anos, primeiro via rádio e, mais recentemente, via televisão. O aspecto tridimensional da realidade virtual, combinado com o acesso desenfreado à sua ‘realidade’ via internet, é a novidade. De qualquer forma, embora toda a experiência seja essencialmente subjetiva, há uma possibilidade cada vez maior de combinar realidade com ‘desrealidade’ ou combinar a realidade com a realidade imaginada”, explica.
Ainda que algumas dimensões possam ser vividas no ambiente digital, nem todas o são. “O catolicismo centra-se no ritual, sacramento e atenção pessoal ao indivíduo. Os sacramentos não podem ser administrados virtualmente. Consideremos o sacramento dos enfermos, ou do testemunho de um casamento, ou batismo. Eles podem ser gravados e transmitidos, publicamente ou em privado, mas necessitam da presença real, não virtual. Não há ‘sacramentos eletrônicos’”, pondera Zagano.
Além disso, considerando as profundas desigualdades testemunhadas em todo o globo, o papel de evangelização depende, na opinião da entrevistada, do encontro pessoal. “A evangelização depende do ministério. E o ministério não pode estar contido em um headset de realidade virtual, ou em um rádio, televisão ou computador. Algumas formas de ministério e evangelização foram efetuadas via Zoom (missas, pregações, orientação espiritual individual e aconselhamento pastoral), mas elas são mais eficazes quando as pessoas participam desses ministérios em pessoa”, frisa.
Phyllis Zagano (Foto: Hofstra University)
Phyllis Zagano, Ph.D., é pesquisadora e professora adjunta de religião na Universidade Hofstra, em Hempstead, no estado de Nova York. Autora ou editora de 24 livros e centenas de ensaios acadêmicos e populares, ela foi membra da inicial Pontifícia Comissão para o Estudo do Diaconato das Mulheres (2016-2018) e é considerada a principal especialista no assunto. De 1987 a 1997, lecionou na Faculdade de Comunicação, na Escola de Teologia e no Programa de Relações Internacionais da Universidade de Boston, Massachusetts, onde também foi diretora do Instituto para a Comunicação Democrática.
IHU On-Line – Como o chamado metaverso refunda (ou ao menos reorganiza) as bases sobre as quais compreendemos a existência humana?
Phyllis Zagano – Esta pergunta envolve metafísica e epistemologia. Entendemos o real (metafísica) pelas formas como conhecemos o real (epistemologia). Temos atualmente uma outra função intelectual, a compreensão do que veio a se chamar “realidade virtual”. A “realidade virtual” é grandemente composta por nossas imaginações pessoais e reações ao que vemos, agora em três dimensões com headsets especiais. Em certo sentido, a realidade virtual combina conceitos de realidade objetiva e de como avaliamos o que é real naquilo que não é real.
IHU On-Line – Que pistas podemos seguir para pensar o fenômeno religioso em perspectiva com o metaverso?
Phyllis Zagano – A religião, como todo o restante, depende da participação e da percepção. Os agrupamentos religiosos (igrejas, sinagogas, mesquitas) podem ser agora vivenciados virtualmente em três dimensões e com sistemas de som surround. Na verdade, eles vêm sendo vividos virtualmente há muitos anos, primeiro via rádio e, mais recentemente, via televisão. O aspecto tridimensional da realidade virtual, combinado com o acesso desenfreado à sua “realidade” via internet, é a novidade.
De qualquer forma, embora toda a experiência seja essencialmente subjetiva, há uma possibilidade cada vez maior de combinar realidade com “desrealidade” ou combinar a realidade com a realidade imaginada, tal como já conhecemos quando ouvimos rádio ou assistimos televisão.
IHU On-Line – Quais parecem ser as diferenças cruciais entre o que hoje são as missas on-line e o que será no futuro uma celebração litúrgica no metaverso?
Phyllis Zagano – Além das considerações da resposta acima, as pessoas agora terão a sensação de vivenciar a “realidade” em que irão praticamente sentir, ouvir e, em algum momento no futuro, irão ter o cheiro da igreja ou capela em que estão “sentadas”.
IHU On-Line – Como o metaverso vai transformar os atuais ministérios? Poderia haver a criação de novos?
Phyllis Zagano – Penso que, assim como vários agrupamentos religiosos se adaptaram, e continuam se adaptando, ao rádio, à televisão e à internet, eles irão encontrar formas de criar ministérios dentro da realidade virtual do metaverso.
IHU On-Line – Como o metaverso reorganiza ou desconstrói o sentido que damos à paróquia?
Phyllis Zagano – Assim como em toda a pandemia de Covid-19, quando as pessoas frequentavam celebrações nas igrejas de suas escolhas, escolhendo os pregadores, a música, etc. ao seu gosto, o metaverso irá continuar e realçar as possibilidades de reorganização dos agrupamentos religiosos, sejam as paróquias, sejam as dioceses.
A analogia mais próxima seria a dos evangelistas de televisão e rádio cujas “paróquias” cruzem as fronteiras geográficas. Lembremos, no entanto, que já houve a criação de uma diocese não territorial, a prelazia pessoal do Opus Dei.
IHU On-Line – No que toca ao catolicismo, considerando suas múltiplas frentes, composições e relativa diversidade, a despeito da unidade da litúrgica, qual pode ou deve ser o papel do Vaticano neste contexto?
Phyllis Zagano – A Santa Sé, especificamente o Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, deveria revisar o Cânone 831.2, do Código de Direito Canônico (1983), que regula a participação de clérigos e religiosos/as em transmissões de rádio e TV que tratam dos ensinos doutrinais católicos.
Os clérigos e religiosos/as devem ter a permissão de seu bispo diocesano, ou do bispo diocesano do lugar em que a transmissão se origina, para falar nesses meios. A adição da “internet”, com a especificação das “mídias sociais”, deveria ser acrescida a este cânone. Além disso, as comissões apropriadas das várias conferências episcopais deveriam atualizar suas Normas Complementares a respeito do Cânone 831.
IHU On-Line – Como ficam as questões relativas ao sacramento no metaverso?
Phyllis Zagano – O catolicismo centra-se no ritual, sacramento e atenção pessoal ao indivíduo. Os sacramentos não podem ser administrados virtualmente. Por exemplo, embora seja perfeitamente aceitável um confessor permitir que um penitente use um aparelho auditivo ou outro dispositivo quando da celebração de uma reconciliação sacramental em pessoa, a confissão por telefone ou via internet não é permitida.
Consideremos o sacramento dos enfermos, ou do testemunho de um casamento, ou batismo. Eles podem ser gravados e transmitidos, publicamente ou em privado, mas necessitam da presença real, não virtual. Não há “sacramentos eletrônicos”.
IHU On-Line – Mais ainda, em um mundo constituído pelo metaverso, o que significa pensar o papel do catolicismo em um contexto global radicalmente desigual, uma vez que os setores mais conservadores tendem a lançar mão da tecnologia em benefício próprio, ao passo que o trabalho com as comunidades empobrecidas tende a se dar fora desse espaço?
Phyllis Zagano – O Papa Francisco gosta de indicar que a periferia é o centro. Eu compreendo este conceito como a realidade da humanidade. A Igreja depende de sua membresia, e sua membresia depende do ministério. A evangelização genuína não depende do rico, que frequentemente confunde questões políticas com interesses religiosos. A evangelização depende do ministério.
E o ministério não pode estar contido em um headset de realidade virtual, ou em um rádio, televisão ou computador. Algumas formas de ministério e evangelização foram efetuadas via Zoom (missas, pregações, orientação espiritual individual e aconselhamento pastoral), mas elas são mais eficazes quando as pessoas participam destes ministérios em pessoa. Aqueles que usam a tecnologia exclusivamente não estão nem ministrando nem afetando as perspectivas dos empobrecidos; a maioria das pessoas que confundem ensinos religiosos com crenças políticas não é ouvida pelos pobres.
IHU On-Line – O que pode significar ser católico no metaverso?
Phyllis Zagano – Resta saber ainda.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Phyllis Zagano – Os leitores interessados podem ver trechos do meu artigo: Virtual reality and the coming Catholic Metaverse.