Embora reconheça o espaço religioso como um certo metaverso, o pesquisador acredita que esse novo ambiente poderá ampliar as formas de viver a fé, mas também as tensões para equalizar mais “catolicismos diversos”
Se compreendermos o metaverso como uma forma de vivermos numa ambiência entre mundos ou como algo capaz de nos conectar a um outro lugar enquanto permanecemos no nosso, é possível se reconhecer que, no campo da religião, da fé e do Sagrado, fazemos movimentos similares. É nessa linha Moisés Saberdelotto vê no próprio processo de relação com O Sagrado um ato comunicacional. “Poderíamos dizer até que o próprio rito religioso, por exemplo, é um metaverso avant la lettre”, resume. “Historicamente, os fiéis – independentemente da tradição religiosa – se dirigem a um lugar geolocalizado específico e, por meio de gestos, objetos e palavras ritualizados, fazem a experiência de um universo transcendente, em uma dimensão espaço-temporal sagrada que ressignifica o recinto físico do templo e a duração cronológica do rito”, relaciona.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Sbardelotto é desafiado a pensar os possíveis impactos da assunção do metaverso no espaço da fé. E, para ele, não deve haver de imediato grandes transformações no ato comunicacional desse espaço. “Pensando o metaverso como um desdobramento da comunicação digital como a conhecemos hoje, o fenômeno religioso continuará se expressando também nesse meta-ambiente digital, seja ele como for”, pontua. Porém, aponta que “a questão será como se darão esses desdobramentos e também como se constituirá a interface entre as experiências religiosas no universo religioso tradicional e no metaverso digital, ou seja, como se darão esses trânsitos e essas interlocuções”. Mudança que, pelo que já temos visto em outras experiências de comunicação digital, fogem ao controle de quem concebe a tecnologia e da própria autoridade religiosa.
No caso do cristianismo, especialmente o católico, ele arrisca que “o metaverso, com seus múltiplos universos de comunicação também religiosa, provavelmente tornará ainda mais forte a diversidade no interior da Igreja, em termos de possibilidades de experiência da fé nos diversos contextos locais, gerando ainda mais ‘catolicismos’ diversos”. Assim, ao mesmo tempo em que há uma abertura em possibilidades de se viver, a Igreja é ainda mais desafiada a pensar em como conjugar esses mundos que se intercambiam na nova ambiência. “A Igreja precisa abandonar a lógica da substituição (‘ou isto ou aquilo’) e assumir uma lógica da complementaridade: a evangelização diz respeito a todos os seres humanos e ao ser humano como um todo, e o desafio é ser uma Igreja ‘companheira de estrada’”, aponta.
Ainda assim, o pesquisador acredita que o atual pontífice tem boas pistas que podem ser interessantes para a constituição de caminhos diante desses novos desafios. O que também não chega a ser novidade para Francisco, que tem provocado a milenar instituição a se desacomodar e sair em direção ao povo e pensar em questões como a sinodalidade. “O papa está no caminho certo ao defender uma ‘salutar descentralização’ (EG 16) na tomada de decisões sobre as questões eclesiais. E acredito que isso será ainda mais importante em relação às futuras possibilidades do metaverso”, avalia.
Moisés Sbardelotto (Foto: Pascom Brasil)
Moisés Sbardelotto é bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos, com estágio doutoral na Università di Roma La Sapienza, na Itália. É professor da PUC Minas, pesquisador do Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (Nect/PUC Minas), membro do Grupo de Reflexão sobre Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Grecom/CNBB. Entre suas publicações, destacamos Comunicar a fé: Por quê? Para quê? Com quem? (Petrópolis: Vozes, 2020), E o Verbo se fez rede: religiosidades em reconstrução no ambiente digital (São Paulo: Paulinas, 2017) e E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Aparecida, SP: Santuário, 2012).
IHU On-Line – Como compreender o metaverso a partir do paradigma de análise da midiatização?
Moisés Sbardelotto – Como premissa para esta resposta, antes que a um “paradigma” único e unívoco, acredito que o conceito de midiatização está relacionado a “paradigmas” variados, a uma diversidade de linhagens, escolas e perspectivas de investigação, em uma complexa “plurivocidade” (Pedro Gilberto Gomes). Em linhas gerais, os principais “paradigmas” de análise da midiatização são o sociológico-simbólico e o semioantropológico (segundo a categorização de Bernard Miège) ou o institucional e o socioconstrutivista (segundo Andreas Hepp). De minha parte, associado a abordagens mais semioantropológicas e socioconstrutivistas (de acordo com tais categorizações), compreendo a midiatização como um processo histórico e complexo de transformações comunicacionais articuladas com transformações socioculturais.
Tal perspectiva da midiatização possibilita entender a comunicação em sua processualidade, não apenas como uma ação social sobre elementos simbólicos ou tecnológicos, mas como a inter-relação dinâmica entre esses três níveis. Por outro lado, possibilita entender a comunicação em sua historicidade: comunicação e tecnologia, por exemplo, desde sempre estão intimamente interligadas e se desenvolvem mutuamente; por isso, a tecnologia não é uma irrupção contemporânea e recente nos processos comunicacionais, mas é tão antiga quanto os primeiros registros humanos, como as pinturas rupestres, manifestando-se de formas diferenciadas e específicas ao longo da história. Daí, por fim, a complexidade da midiatização, que, a partir de tais redes de relações, faz emergir mídias, entendidas não como meros elementos externos a nós – como aparatos tecnológicos (o televisor, por exemplo) ou empresas de informação (o canal de televisão “X”) – mas como sistemas-ambientes socioculturais de comunicação, nos quais agimos e somos “agidos”, em aceleração e abrangência cada vez maiores.
Levando-se em conta essa “perspectiva de longo prazo da midiatização” (Eliseo Verón), ela pode ser entendida como um metaprocesso (Friedrich Krotz) de transformações evolutivas dos dispositivos sociotécnicos e sociossimbólicos que os seres humanos foram desenvolvendo historicamente desde as suas origens para dar sentido à realidade e se inter-relacionar - e, portanto, se comunicar. Entretanto, do ponto de vista observacional, é a contemporaneidade que evidencia a midiatização como objeto de reflexão comunicacional.
O conceito teórico ganhou força nos anos 1980, com o advento da internet e da digitalização, período que marcou um ponto de saturação e bifurcação desse processo, na transição de sociedades “midiáticas” (dinamizadas fortemente pelos meios de comunicação de massa, como televisão, rádio e jornal) para uma configuração social inovadora. Outras instituições sociais (como governos, empresas, igrejas, universidades, partidos políticos, sindicatos, associações etc.) também passaram a desenvolver processos midiáticos próprios, não dependendo mais da chamada “grande mídia” para se comunicar socialmente. Além disso, indivíduos comuns, sem vinculação com os meios de comunicação tradicionais nem com outras instituições sociais, também emergiram na cena midiática, autonomizados pelas tecnologias e linguagens digitais. Com isso, âmbitos sociais diversos começaram a agir segundo lógicas e dinâmicas midiáticas.
Nas sociedades contemporâneas, crescentemente urbanizadas, industrializadas e globalizadas, portanto, ocorre uma maior evidenciação do fenômeno da midiatização, tornando-o mais observável empiricamente nas práticas sociais. Mais recentemente, observa-se uma complexificação ainda maior da tríade “meios/instituições/sujeitos sociais” (analisada pioneiramente por Verón), com a emergência de uma série de plataformas digitais de comunicação que transformaram o cenário midiático, como Facebook (2004), YouTube (2005), Twitter (2006), Netflix (2007), WhatsApp (2009), Instagram (2010), Tik Tok (2016), entre outras.
Nos anos 1980, portanto, foram as transformações comunicacionais fomentadas pelo surgimento da internet que geraram ao longo do tempo uma série de transformações socioculturais que estamos vivendo atualmente, revelando um crescente processo de midiatização. Hoje, por sua vez, o fenômeno da pandemia, ao provocar diversas transformações socioculturais no modo de vida contemporâneo (principalmente a partir da necessidade de distanciamento por questões de saúde e do desejo de fazer coisas à distância por questões de conforto e praticidade), demanda novas transformações comunicacionais, que já começam a emergir, como o próprio metaverso.
A partir dessa primeira premissa mais ampla sobre uma perspectiva evolutiva da midiatização, decorre uma segunda, diretamente relacionada com a sua pergunta: o metaverso (ainda) não existe. Ainda não temos as tecnologias necessárias para torná-lo viável do modo como vem sendo anunciado, ou ao menos elas ainda não existem de forma satisfatória, seja do ponto de vista da infraestrutura para possibilitar a convivência “metaversal” de bilhões de usuários nesse ambiente, seja do ponto de vista da chamada “interoperabilidade” entre as várias plataformas digitais que darão forma a essa infraestrutura.
O Facebook, por exemplo, prevê a existência efetiva de um metaverso somente daqui a 10-15 anos. Mark Zuckerberg, fundador da empresa, em uma recente entrevista ao The Verge, questionado a respeito, afirmou: “Eu adoraria repassar vários casos de uso em mais detalhes, mas, em geral, acho que o metaverso será uma grande parte do próximo capítulo da indústria de tecnologia”. Mesmo assim, a empresa anunciou, em setembro passado, um investimento de 50 milhões de dólares na pesquisa e no desenvolvimento do metaverso “de forma responsável”.
Portanto, seria irrazoável fazer previsões de algo que poderá ocorrer – se ocorrer – de forma mais perceptível apenas a partir de 2030. Tratar-se-ia de mera futurologia, com todo o risco de ser rapidamente frustrada e desmentida. Em relação ao metaverso, só temos a certeza de que caminhamos rumo a “novas incertezas”, parafraseando Edgar Morin. Entretanto, temos algumas pistas, ao menos, de como o metaverso vem sendo pensado e concebido desde já – e, a partir disso, podemos levantar algumas hipóteses à luz da midiatização.
Na entrevista citada, Zuckerberg projetou que, no metaverso, as pessoas poderão “experimentar uma sensação muito mais forte de presença com as pessoas de que gostam, com as pessoas com as quais trabalham, com os lugares em que querem estar”. Segundo ele, o metaverso será uma “internet encarnada”. Ou seja, será fruto daquilo que já estamos experimentando digitalmente hoje, mas em dimensões ainda não conhecidas: será o caldo tecnocultural para uma vida pessoal e social ainda mais conectada em suas várias dimensões.
Pretende-se que o metaverso seja um universo de universos físico-digitais onde as pessoas poderão se encontrar – independentemente de onde estejam geograficamente – de forma híbrida e tridimensional, não apenas olhando para telas planas, mas também e principalmente por meio de softwares, aplicativos e tecnologias de realidade virtual, ampliada e/ou hologramática. Já vemos algo nesse sentido hoje com tecnologias como o Google Lens, o Ray-Ban Stories ou o Oculus Quest 2, estes dois últimos desenvolvidos em parceria com o próprio Facebook, e de experiências digitais como Pokémon Go, Horizon, Fortnite, dentre outros, que, entre suas limitações e potencialidades, manifestam alguns elementos de “metaversalidade”.
Com um maior desenvolvimento de tais tecnologias e plataformas nos próximos anos, será possível fazer a experiência do movimento físico-corporal em ambientes digitais e do encontro não apenas “face a face a distância” (como já fazemos hoje em videoconferências), mas propriamente “corpo a corpo a distância”. Assim, poderemos nos sentir “corporalmente” presentes nesse universo digital, por meio de uma articulação entre a realidade físico-biológica geolocalizável e as experiências de realidade virtual e ampliada, em um único espaço online compartilhado. A presença de uma pessoa se desvinculará ainda mais da sua localização.
A partir da perspectiva processual, histórica e complexa da midiatização, podemos entrever o metaverso como uma “mídia” emergente na qual a vida humana se constituirá, isto é, como uma rede de relações sócio-tecno-simbólicas, como um sistema-ambiente sociocultural de comunicação. No entanto, assim como nenhuma outra mídia “caiu do céu”, o metaverso também será o desdobramento das potencialidades ou a superação das limitações das mídias atuais. Como o Facebook reconhece, o metaverso não surgirá da noite para o dia, nem será um “produto” que uma única empresa poderá construir, mas se trata de um “sucessor” da internet como a conhecemos, que envolverá parcerias entre as principais plataformas e, principalmente, a participação da sociedade em geral, em seus diversos níveis, para “habitá-lo”. Nós já estamos fazendo parte dessa evolução gradual rumo a um futuro metaverso neste exato momento.
Em outras palavras, o surgimento do metaverso não ocorrerá apenas por um processo de inovação tecnológica por parte de empresas como o Facebook, mas também depende de invenções socioculturais, que são complexas, imprevisíveis e indeterminadas. A infraestrutura tecnológica do metaverso será oferecida por tais empresas, mas só poderá ser concebida a partir do acompanhamento de certas tendências comunicacionais da sociedade (muitas das quais já estamos vivendo neste tempo de pandemia e de distanciamento). Por sua vez, quando o metaverso estiver estabelecido, as futuras tendências – a partir das práticas comunicacionais pessoais e sociais nesse novo ambiente – desempenharão um papel significativo na evolução e na transformação do próprio metaverso ao longo do tempo, a partir dos usos e apropriações específicos e conjunturais que a sociedade promoverá sobre essa “internet reinventada”.
Em suma, pensar o metaverso na perspectiva da midiatização é pensá-lo com suas processualidades, historicidades e complexidades, como algo que já está sendo constituído pelo ser humano e pela vida social hoje, pelo modo como agimos no e sobre o digital, e que, uma vez estabelecido, reconstituirá, por sua vez, o próprio ser humano e a vida social como os conhecemos, agindo sobre nós. Essas “intertransformações” comunicacionais e socioculturais são indeterminadas e imprevisíveis aprioristicamente, embora a emergência de certas “metaversalidades” já possam ser observadas local e conjunturalmente.
IHU On-Line – De que forma podemos pensar o fenômeno religioso em perspectiva com o metaverso?
Moisés Sbardelotto – De modo geral, a relação entre os seres humanos e a transcendência, o divino, o sagrado, é um processo comunicacional. Desde os primórdios da humanidade, o ser humano, ao buscar se relacionar com tais realidades, fez isso também por meio de ações comunicativas. A comunicação, por sua vez, à luz da midiatização, é um processo que ocorre mediante meios e mediações, desde os gestos e a fala, passando pela palavra escrita, até chegarmos recentemente a toda a ecologia da comunicação digital. Como Homo religiosus e, ao mesmo tempo, Homo technologicus, o ser humano busca se comunicar com o transcendente – e, por sua vez, também comunicar o transcendente a outros – por meio de todas as mediações e os meios possíveis e disponíveis em cada período histórico.
Poderíamos dizer até que o próprio rito religioso, por exemplo, é um metaverso avant la lettre. Historicamente, os fiéis – independentemente da tradição religiosa – se dirigem a um lugar geolocalizado específico e, por meio de gestos, objetos e palavras ritualizados, fazem a experiência de um universo transcendente, em uma dimensão espaço-temporal sagrada que ressignifica o recinto físico do templo e a duração cronológica do rito. Nessa dimensão ritual e cúltica, comunicam-se com seres divinos ou mesmo pessoas que já se encontram no “além da vida”, tudo por meio de técnicas e tecnologias próprias para isso (discursos, sons, músicas, artes, textos, livros, símbolos, objetos cúlticos etc.). Seja no templo ou à beira de um rio sagrado, esse lugar se transforma no “centro do mundo” (Mircea Eliade), um espaço sagrado por excelência, onde os diversos níveis cósmicos se comunicam.
O ser humano, portanto, evolui por meio da sua própria experiência comunicacional e tecnológica, que não estão desvinculadas da sua experiência religiosa. Elas se inter-retroalimentam, para evocar Morin. Se ao longo da história dependemos de gestos, discursos, cantos, músicas, livros, imagens, fotografias, filmes, para poder perceber e ao mesmo tempo expressar de forma mais profundamente humana a experiência do sagrado, isso também continua ocorrendo em tempos de cultura digital e provavelmente continuará ocorrendo com ainda mais profundidade e complexidade nos futuros tempos de metaverso.
Pensando o metaverso como um desdobramento da comunicação digital como a conhecemos hoje, o fenômeno religioso continuará se expressando também nesse meta-ambiente digital, seja ele como for. O metaverso poderá emergir como um ambiente de relação com o sagrado, pois no fundo se tratará de um ambiente de relação entre pessoas, que portam consigo uma dimensão religiosa e espiritual, de abertura e de busca de um “algo mais”. No metaverso, do modo como ele vem sendo anunciado, poderá haver ritos celebrados com mediações intrarrituais (gestos, palavras, objetos) que poderão ser percebidas e sentidas a distância, por meio de uma macromediação extrarritual, ou seja, todo o aparato tecnológico que permitirá a “presença metaversal” em um rito celebrado em outro espaço geográfico – uma forma de presentificação digital em um espaço ritual geolocalizável. Se assim for, teremos uma complexificação da experiência histórica e tradicional do fenômeno religioso.
A questão será como se darão esses desdobramentos e também como se constituirá a interface entre as experiências religiosas no universo religioso tradicional e no metaverso digital, ou seja, como se darão esses trânsitos e essas interlocuções. E isso não vai ser definido nem pelas empresas de tecnologia digital, nem pelas instituições religiosas ou suas autoridades, nem pelos fiéis, mas sim por um complexo jogo de inter-relações entre os vários âmbitos sociais e culturais, que já está ocorrendo hoje e se desdobrará ainda mais nos próximos anos.
IHU On-Line – No que toca ao cristianismo, especialmente o católico, o que se pode esperar de mudanças em relação à liturgia em ambientes como o do metaverso? Como ficam as questões relativas ao sacramento no metaverso?
Moisés Sbardelotto – Não sendo um especialista em liturgia e sacramentos, minha resposta será do ponto de vista comunicacional, entendendo a liturgia e a celebração dos sacramentos como um processo de comunicação com Deus e ao mesmo tempo com os irmãos e irmãs de fé. Nesse sentido, acredito que a pandemia já trouxe à tona alguns elementos que revelam, de alguma forma, aquilo que o metaverso complexificará ainda mais na comunicação litúrgica. Destaco apenas dois pontos centrais nesse sentido: o “onde” e o “com quem” se celebra.
O primeiro deles diz respeito às noções de espacialidade e de presencialidade. O período de pandemia já pôs em xeque tais experiências, principalmente devido ao fechamento dos templos e à “reabertura” das casas graças ao ambiente digital. Os ritos passaram a ser transmitidos a distância, e as pessoas puderam manter o contato com suas comunidades a partir de dentro da própria casa. Nessas experiências, o espaço sagrado passou por uma reconfiguração.
Acredito que o metaverso irá tornar essa questão ainda mais candente, pois a nossa experiência do espaço digital não será apenas em duas dimensões, na frente de uma tela plana, mas sim em três ou até mais dimensões. O “distante” não será experimentado como um simulacro ou como uma representação virtual em bits e pixels, mas como uma espacialidade geográfica ressignificada digitalmente, em várias dimensões e em vários ângulos de experiência. Mesmo sem estarmos presentes fisicamente em um determinado lugar, no metaverso poderemos fazer uma experiência “envolvente e circundante” de um espaço a distância, graças às possibilidades tecnológicas que vêm sendo anunciadas.
Isso favorecerá, por sua vez, uma presencialidade na interface entre o físico-biológico e o tecnológico-digital. Zuckerberg, na mesma entrevista, afirma que o metaverso possibilitará uma sensação de presença mais natural no ambiente digital, pois será possível se sentar como um holograma no sofá da casa de um amigo que está a quilômetros de distância, ou o amigo poderá se sentar como um holograma no sofá da nossa casa. Poderemos “coestar” com pessoas que estão longe de nós, em um “agora” compartilhado, independentemente de fusos horários e do tempo cronológico, e também em um “aqui” físico-digital ressignificado para além dos pontos geográficos em que cada participante se encontre.
Com isso, como dizíamos, a presença de alguém em um dado rito não apenas se desconectará cada vez mais da sua localização objetiva, mas também poderá favorecer uma participação mais “sensível” nos eventos online, sendo assim também mais percebida pelos outros participantes. Entretanto, do ponto de vista da “comunicação sacramental”, o que está em jogo é a ideia do “hic et nunc”, do “aqui e agora” necessários para a celebração e a vivência de um sacramento. E esse “aqui e agora” é entendido pela teologia tradicional como um mesmo tempo cronológico e um mesmo espaço geográfico. Com isso, a vivência dos sacramentos provavelmente continuará sendo impossibilitada no metaverso, assim como já ocorre em relação ao rádio, à televisão e à internet.
O segundo aspecto que poderá sofrer alterações é a experiência da corporalidade e da relacionalidade. O período de pandemia já revelou que o corpo não fica escanteado em nossas relações comunicacionais em rede, mas permanece como mediação básica de todo contato. A questão é que se trata de um corpo não mais experimentado em suas dimensões tradicionais, mas ressignificado a partir das linguagens e das condições de existência que o ambiente digital possibilita. Isso se relaciona diretamente com a experiência do contato com o outro.
No metaverso, poderemos entrar em formas de relação interpessoais talvez muito mais íntimas e presentificadas do que aquelas que já podemos fazer neste período de pandemia nos ambientes digitais que temos hoje. Pois, no metaverso, não nos relacionaremos com avatares (como os dos atuais jogos digitais) nem com um mero rosto alheio “achatado” na reconstrução gráfico-imagética em duas dimensões, mas sim com uma forma de “presença autêntica” do corpo alheio em várias de suas dimensões. Provavelmente poderemos percebê-lo em sua altura, largura e profundidade físico-biológicas reconstruídas digitalmente e poderemos ouvir a sua voz não apenas em dois canais estéreos, mas por meio de uma experiência de som ambiente, surround, em múltiplos canais.
Em um possível metaverso, portanto, nosso corpo continuará presente como meio de comunicação básico, e continuaremos fazendo experiência do mundo, dos outros e da realidade a partir dele. Não se tratará de um corpo “virtual” ou apenas “ampliado”, mas de um corpo “teleonipresente”, que poderá se deslocar de forma instantânea ao longo do espaço geolocalizável e também digitalmente experienciável, mediante “teletransporte”, como promete Zuckerberg. Entretanto, hoje, embora possamos fazer inúmeras coisas conectados, com os nossos corpos geograficamente distanciados, ainda não podemos comer o mesmo pão do mesmo prato ou beber o mesmo vinho do mesmo cálice juntos em uma dada plataforma digital, e o metaverso provavelmente não conseguirá superar essa barreira. E essa, como se sabe, é uma experiência litúrgica fundamental.
As implicações disso, do ponto de vista litúrgico, são as mais diversas. Os sacramentos demandam sinais sensíveis e materiais para sua celebração, que passam pelo corpo e pelos sentidos corporais objetivos. Isto é, a vivência da eucaristia passa por um comer e beber que devem tocar o nosso paladar de forma objetiva, sensível e material; o batismo passa pela imersão na água (ou ao menos o derramamento dela) de forma objetiva, sensível e material; e assim por diante. No metaverso, os elementos objetivos, sensíveis e materiais não poderão ser “teletransporados” nem experimentados digitalmente.
Portanto, essas serão limitações para a vivência dos sacramentos, segundo a teologia tradicional. Exceto que a reflexão teológica avance a ponto de reconhecer como válidas sacramentalmente tais experiências comunicativas e sensoriais ressignificadas digitalmente, assim como o “aqui e agora” que as categorias socioculturais da sociedade do século XXI vêm desenvolvendo hoje, graças aos desenvolvimentos tecnológicos recentes.
Basta lembrar que a própria celebração da missa mudou (e muito) ao longo da história. Embora certos grupos defendam a chamada “missa de sempre”, a celebração da eucaristia passou por diversas transições e transformações históricas. Portanto, a “missa de hoje” também pode mudar para corresponder às experiências culturais contemporâneas e futuras. Como Francisco afirma na Evangelii gaudium (n. 33), é preciso abandonar o cômodo critério pastoral que afirma: “Sempre se fez assim”. Talvez o metaverso demandará que se supere esse critério também no âmbito litúrgico. Só o tempo (futuro) dirá.
Por fim, é preciso relembrar que a própria liturgia também é uma experiência “metaversal”, em certo sentido. Como afirma a Sacrosanctum concilium, a liturgia terrena nos permite degustar ("praegustando") e participar, aqui e agora, da Liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, glorificando ao Senhor junto com todos os seres celestiais e os Santos (SC 8). Com nossa corporeidade físico-biológica, comunicamo-nos no e com o universo “metaterreno”. Para isso, recorremos a “sinais sensíveis” que significam ("signa sensibilia significatur") tais realidades sagradas (SC 7). No metaverso, continuaremos recorrendo a “sinais sensíveis” audiovisuais e talvez até de outras ordens para significar a realidade, que, por sua vez, nos permitirão fazer experiência de outros universos terrenos e – por que não? – “metaterrenos”.
IHU On-Line – O que se pode projetar em termos de mudança aos processos de midiatização do catolicismo, levando-se em conta as tecnologias de comunicação digital atuais e as que surgirão como metaverso?
Moisés Sbardelotto – É difícil tentar fazer qualquer projeção em relação às tecnologias de comunicação digital atuais e as que surgirão no metaverso, pois estão em jogo questões que envolvem um processo extremamente complexo e indeterminado como a própria midiatização, assim como movimentos histórico-culturais que se desdobram e evoluem de uma forma nada linear, muito menos previsível (por exemplo, ninguém, poucos meses antes, foi capaz de projetar que estaríamos vivendo esta situação pandêmica tão duradoura).
Entretanto, fazendo um exercício de generalização e extrapolação daquilo que é possível constatar a partir de outras transições de época históricas, podemos esperar – frisando bem o termo “esperar”, pois não há nenhuma garantia disto – que o processo de midiatização do catolicismo se dará por meio daquilo que Verón chamava de “rupturas de escala” em termos de velocidade e de alcance. Isto é, a midiatização faz com que as práticas de comunicação se tornem cada vez mais velozes e também cada vez mais abrangentes, seja do ponto de vista do alcance geográfico, seja do ponto de vista do alcance dos sujeitos envolvidos nos processos midiáticos. Trata-se de experiências comunicacionais cada vez mais difusas e diferidas (José Luiz Braga). Ou seja, a midiatização traz à tona sempre uma abrangência e uma complexificação dos modos pelos quais a sociedade se comunica consigo mesma.
Com isso, acredito que o metaverso, com seus múltiplos universos de comunicação também religiosa, provavelmente tornará ainda mais forte a diversidade no interior da Igreja, em termos de possibilidades de experiência da fé nos diversos contextos locais, gerando ainda mais “catolicismos” diversos. Ao mesmo tempo, por outro lado, poderá favorecer uma maior interconectividade entre as inúmeras Igrejas locais e seus fiéis, no intercruzamento de fronteiras geográficas e eclesiásticas, fortalecendo a experiência da catolicidade para além das possíveis diferenças. Justamente por isso, se tratará de uma Igreja cada vez mais diversa e complexa em suas várias dimensões.
Isso poderá fomentar revisões significativas na concepção e no papel de questões como autoridade, comunidade, identidade, ritualidade católicas. Isto é, em um contexto cada vez mais acelerado e abrangente – e, portanto, cada vez mais interconectado, diverso, descentralizado, autônomo – como se equilibrarão as relações de poder dentro da Igreja? Como se dará a participação das pessoas no corpo eclesial? Como se definirá a catolicidade pessoal ou coletiva? Como se regularão os modos de celebrar? A questão-chave, nesse caso, é justamente como equilibrar a tensão entre unidade e diversidade católicas nos vários universos de vida físicos e digitais que o metaverso evidenciará.
IHU On-Line – Considerando as múltiplas frentes do catolicismo, com suas composições e diversidade, a despeito da unidade litúrgica, qual pode ou deve ser o papel do Vaticano e do Papa neste contexto?
Moisés Sbardelotto – Parafraseando o próprio Papa Francisco, eu poderia responder perguntando: “Quem sou eu para julgar o que o Vaticano e o papa podem ou devem fazer nesse contexto?”. Pelo contrário, acredito que o papa está no caminho certo ao defender uma “salutar descentralização” (EG 16) na tomada de decisões sobre as questões eclesiais. E acredito que isso será ainda mais importante em relação às futuras possibilidades do metaverso. A Igreja local e o bispo local estarão em melhores condições para oferecer saídas para as questões que surgirem, à luz das suas culturas (digitais ou não) e sensibilidades próprias. Afinal, embora falemos de “ambiente digital” e de “cultura digital” no singular, sabemos que existem inúmeros ambientes digitais diferentes e heterogêneos, assim como inúmeras culturas digitais diferentes e heterogêneas, não apenas em nível mundial, mas também dentro de um mesmo país como o Brasil, ou inclusive no interior de suas próprias regiões.
Além disso, será fundamental que a Igreja faça um empenho maior em refletir sobre as questões do digital. Esse esforço vem sendo feito de forma difusa ao longo dos últimos anos, particularmente nas mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais e em alguns parágrafos específicos das últimas encíclicas papais. Entretanto, ainda falta uma reflexão comunicacional mais orgânica, articulada, aprofundada, com foco na pastoral, especialmente levando-se em conta que a Igreja está enfrentando uma verdadeira “Reforma digital” (Elizabeth Drescher), na qual é a própria cultura que exige que a Igreja repense e revise a sua própria pastoral à luz dos desafios contemporâneos.
Não seria descabido afirmar a necessidade de um Sínodo sobre a comunicação em tempos de midiatização, plataformização e metaverso, principalmente retomando aquilo que os bispos latino-americanos e caribenhos já afirmaram em 1979, no Documento de Puebla: “A evangelização, anúncio do Reino, é comunicação” (n. 1.063). A questão é justamente reconhecer as recentes e grandes transformações pelas quais a ação de comunicar vem passando desde então, de modo cada vez mais acelerado, o que, por sua vez, acarreta grandes transformações também na concepção e na prática da evangelização.
IHU On-Line – Como conciliar o fenômeno religioso em sua dimensão comunicacional em um ambiente altamente tecnológico como o metaverso e, por outro lado, o trabalho pastoral com as comunidades empobrecidas?
Moisés Sbardelotto – Uma questão central nesse sentido é justamente saber como se dará o acesso e a experiência do metaverso. Que tecnologias serão necessárias para isso? Quem poderá ter acesso a elas? Quais serão os custos financeiros para tal acesso e experiência? Qual será a contrapartida demandada pelas empresas que oferecerão a infraestrutura para o metaverso? São todas questões fundamentais para pensarmos também a pastoral com pessoas empobrecidas, que provavelmente não terão acesso nem poderão – assim como não têm e nem podem hoje, muitas vezes – custear a sua experiência nesses ambientes digitais.
Por isso, também no metaverso será preciso atentar para as possíveis novas formas de exclusão de quem não poderá ter acesso a tais ambientes. O risco é de que surjam novas brechas digitais, que ampliem a distância entre uma “elite digital” e os “descartados digitais”, em função de critérios socioeconômicos. Trata-se, no fundo, daquilo que o Papa Francisco já denuncia hoje como uma “cultura do descarte”, que também existe em relação às questões digitais.
Por outro lado, o metaverso também poderá oferecer uma maior acessibilidade, do ponto de vista da possibilidade de fazer experiências religiosas a distância para pessoas que talvez não poderiam fazê-lo de outra forma, devido aos custos de deslocamento e transporte a determinados locais. O mesmo vale para as pessoas com deficiências diversas, que poderão, graças ao metaverso, experimentar uma forma de presença e participação mais intensas em ritos midiatizados, talvez até se “teletransportando” aos principais centros da fé, apesar de suas limitações.
É importante reiterar, porém, que o digital não é nem essencial nem opcional para o trabalho pastoral na cultura contemporânea. Sem dúvida, é necessário acompanhar os desdobramentos da cultura digital do ponto de vista pastoral, para que seja possível aquele diálogo entre fé e cultura tão caro à tradição da Igreja. Entretanto, o próprio metaverso, neste caso, não será essencial para a ação evangelizadora. Justamente na preocupação da Igreja com os excluídos, os marginalizados, os periferizados, também do ponto de vista digital haverá muitas pessoas “jogadas à beira do metaverso”, das quais a Igreja deverá cuidar e servir, fazendo-se próxima, como fez o Bom Samaritano. E isso só será possível “para além” do metaverso, por meio de outras práticas pastorais.
Ao mesmo tempo, os ambientes digitais – pela sua importância na cultura contemporânea – devem ser levados em consideração pela pastoral, e a Igreja deverá se sentir culpada diante do seu Senhor se não se fizer presente também no metaverso, parafraseando a famosa frase de São Paulo VI na Evangelii nuntiandi. Por isso, a Igreja precisa abandonar a lógica da substituição (“ou isto ou aquilo”) e assumir uma lógica da complementaridade: a evangelização diz respeito a todos os seres humanos e ao ser humano como um todo, e o desafio é ser uma Igreja “companheira de estrada”, como pede o Papa Francisco, nas múltiplas estradas humanas, incluindo as digitais – sem negligenciar todas as demais.
IHU On-Line – O que pode significar ser católico no metaverso? O que implica ser educador e educando para a fé no metaverso?
Moisés Sbardelotto – Trata-se de um paradoxo: por um lado, o metaverso não mudará nada e, por outro, mudará tudo. Acredito que não mudará nada porque ser cristão é seguir a Jesus Cristo sendo discípulo-missionário em todo o tempo e lugar. Portanto, também no metaverso esse desafio permanece constante, assim como foi em diversos outros períodos históricos.
Entretanto, o modo de viver na prática esse segmento não é o mesmo sempre nem em todo o lugar. O metaverso poderá gerar uma realidade ainda mais complexa e heterogênea do ponto de vista social, cultural e religioso, o que demandará de cada cristão e cristã uma coerência de vida ainda maior e um testemunho ainda mais consistente dos valores do Evangelho, independentemente dos ambientes (digitais ou não) em que se encontrar.
E a educação para a fé passa principalmente pelo exemplo, pela atração, e não pelo proselitismo, como o Papa Francisco reitera continuamente. Por isso, onde quer que um cristão esteja – seja neste universo que já conhecemos ou em um possível metaverso – ele será reconhecido pelo amor que tiver ao próximo (cf. Jo 13,35).