Deixar-se transtornar pelo diálogo. Artigo de Lilia Sebastiani

Foto: Steve Johnson | Unsplash

20 Outubro 2021

 

"É fundamental que pelo menos os fiéis empenhados, que talvez sejam menos numerosos do que os ‘ainda’ praticantes, mas a única esperança para o futuro, assumam suas responsabilidades eclesiais sem timidez, sintam-se responsáveis pela sinodalidade efetiva da Igreja e façam ouvir com espírito fraterno e senso crítico a sua palavra, mesmo e sobretudo quando pode parecer que a Igreja não a peça verdadeiramente e não a escute suficientemente", escreve Lilia Sebastiani, teóloga italiana e autora, em português, de “Maria e Isabel: ícone da solidariedade” (Paulinas, 1998) e “Maria Madalena: de personagem do Evangelho a mito de pecadora redimida” (Vozes, 1995), em artigo publicado por Rocca, nº. 20, 15-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

A expressão é do Papa Francisco: no dia 18 de setembro, na Sala Paulo VI do Vaticano, dirigiu-se aos fiéis da diocese de Roma com um discurso forte, vivo e muito real, de uma abertura comunicativa que muitas vezes se procura em vão nos discursos oficiais da igreja, especialmente quando fala sobre si mesma.

 

Um discurso na mesma linha pastoral do Documento Preparatório e do Vade mecum publicados em 7 de setembro e apreciáveis por sua linearidade e concretude: mas esses últimos são documentos da cúria, enquanto aquele é um discurso pessoal, mais livre e fluido, que ajuda a abordar o sentido e o cerne da sinodalidade em um mundo que agora costuma ser definido como pós-moderno (mesmo que as várias regiões do mundo apresentem diferenças de "modernidade" inclusive muito fortes entre si e não se possa ser generalizar), e que é o mundo em que se desenrola normalmente a vida das paróquias: grandes e pequenas, proféticas e estagnadas ... Também a organização fundada nas paróquias, porém, em muitos casos parece superada: a paróquia é uma circunscrição eclesiástica de origem medieval que agora tem apenas ligações fracas com realidades humanas concretas.

 

Como assinala o Papa Francisco, a reflexão torna-se obrigatória porque empenha a escuta de culturas que, no curto espaço de algumas décadas, mudaram profundamente.

 

Escutar as mudanças

 

O conceito de povo é um dos pilares da reflexão eclesial do Papa, e nisso percebemos suas raízes sul-americanas. Na realidade, pelo menos no mundo ocidental do qual temos mais experiência, o povo de que se fala está profundamente transformado, quase irreconhecível, a ponto de tornar difícil o próprio uso dessa palavra. De fato, “o sujeito moderno é considerado e estruturado como simples consumidor” (o papa cita J. Baudrillard, A sociedade de consumo, um livro que já tem 45 anos, mas parece até mais atual do que quando foi escrito).

 

No eclipse das grandes sínteses (cristãs, marxistas, liberais), sumiram de repente, quase deslocados para a atualidade mais desconfortante ou perturbadora, as referências que, mais amadas ou mais criticadas, nos eram familiares; o seu lugar foi ocupado por “um consumismo cujo poder está nas mãos de poucos grandes grupos de intermediação que, através da publicidade, induzem à compra obsessiva de bens e mercadorias, sem outras referências. A própria publicidade, com os meios de comunicação, distorce a realidade, tornando-a simplesmente uma visão distante e irreal”.

 

Os mesmos conceitos básicos (pessoa, dignidade, comunidade ...), tão frequentes e, aliás, indispensáveis no discurso eclesial, agora soam como expressões abstratas, pelo menos fora de círculos muito especializados. A parte final do discurso é verdadeiramente notável, porque permite sentir a proximidade de uma igreja que busca seriamente a capacidade de ir além de si mesma. O que se prepara não deveria ser um encontro apenas de bispos ou de católicos, nem um evento voltado principalmente para falar, mas também para a escuta, em todos os níveis.

 

“... Por que estou lhes dizendo essas coisas? Porque, no caminho sinodal, a escuta deve levar em conta o sensus fidei, mas não deve descurar todos aqueles 'pressentimentos' encarnados onde não o esperávamos: pode haver um 'faro sem cidadania', mas não menos eficaz. O Espírito Santo em sua liberdade não conhece fronteiras e nem mesmo se deixa limitar pelas pertenças. Se a paróquia é a casa de todos no bairro, não um clube exclusivo, recomendo: deixem portas e janelas abertas, não se limitem apenas a tomar em consideração quem frequenta ou pensa como vocês – que serão 3, 4 ou 5%, não mais que isso. Permitam que todos entrem ... Permitam a vocês mesmos ir ao encontro e se deixar questionar, que as suas perguntas sejam as vossas perguntas, permitam-se caminhar juntos: o Espírito lhes conduzirá, tenham confiança no Espírito. Não tenham medo de entrar em diálogo e se deixem transtornar pelo diálogo: é o diálogo da salvação. Não sejam desencantados, preparem-se para as surpresas ... ”.

 

A análise que o Papa oferece, dirigida explicitamente à sua diocese de Roma (“E é por isso que estou aqui, como vosso Bispo, para partilhar, porque é muito importante que a Diocese de Roma se empenhe com convicção neste caminho. Seria um papelão se a Diocese do Papa não se empenhasse nisso, certo? Um papelão para o Papa e também para vocês"), mas na realidade para todo o mundo católico e além, é simples e direto muito mais do que o apreciável documento preparatório, e serenamente diz coisas de considerável gravidade sobre a mudança histórica acelerada que está em curso, e a respeito da qual se corre o risco de ficar para trás; também destaca riscos não atribuíveis à igreja, se não pela proverbial lentidão que a leva a ficar sempre mais para trás do que as instâncias da história cada vez mais acelerada. A lacuna entre a síntese religiosa e o mundo social tornou-se quase inexplorável.

 

Não é intenção do Papa Francisco realizar uma análise sociológica exaustiva, mas as suas observações são vibrantes de verdade e concretude, especialmente quando, pronto a reconhecer a responsabilidade também em primeira pessoa, como Bispo entre os bispos, ele observa que a organização eclesial está parada substancialmente nos anos 1950: “... liturgia, catequese, caridade, piedade popular permanecem as mesmas. Diante das transformações, aprofundaram-se os temas da secularização, da nova evangelização, da redescoberta da catequese batismal: tentativas que se revelaram insuficientes na realidade que anulou antigas sínteses. Não percebíamos a velocidade das transformações e – para ser sincero – não foi entendida a sua extensão”. As razões básicas, em sua opinião, são duas: a falta de instrumentos de leitura adequados e a obstinada fidelidade ao que a liturgia, a moral, a teologia ... haviam sugerido no pós-guerra.

 

A nova visão do mundo parece estar enormemente distante dos comportamentos do passado. A conclusão: “Antes de iniciar este caminho sinodal, o que vocês estão mais inclinado a fazer: cuidar das cinzas da Igreja, isto é, da vossa associação, do vosso grupo, ou cuidar do fogo? Vocês estão mais inclinados a adorar as vossas coisas, que criam fechamentos – eu sou de Pedro, eu sou de Paulo, eu sou desta associação, você da outra, eu sou um padre, eu sou um bispo – ou vocês se sentem chamados a cuidar do fogo do Espírito?”.

 

O longo caminho sinodal

 

O caminho sinodal será muito longo; isso também sugere uma certa lentidão. Inevitável, para poder enfrentar as investigações e os trâmites exigidos, mas sem dúvida exposto a riscos: risco de fechamentos para dentro, de repetições ... Um caminho durante o qual até se poderia esquecer que se está em caminho. O percurso do Sínodo 2021-2023, pelo menos na sua configuração externa, terá a sua abertura solene no Vaticano no dia 9 de outubro, com a presença do Papa Francisco. No dia 17 de outubro, a inauguração será realizada nas igrejas locais. Após essa abertura, nas Igrejas locais e em outras realidades eclesiais (os dicastérios da Cúria Romana, os movimentos laicais, as faculdades de teologia das universidades, as Uniões de Superiores/as Maiores e outros grupos e federações de vida consagrada) começa uma fase que se estenderá de outubro de 2021 a abril de 2022 e se destina a ser uma consulta geral a todas essas realidades, com a ajuda do documento preparatório, do Vade mecum e de um questionário elaborado pela secretaria geral do Sínodo.

 

Aqui se encontram os primeiros riscos, obviamente; o risco de uma consulta apenas aparente e pouco efetiva, como aconteceu na época do Sínodo sobre a família. A fase diocesana é muito importante, destaca o Papa Francisco no discurso que acabamos de referir, porque realiza a escuta da totalidade dos batizados, sujeito do sensus fidei infalível in credendo. O percurso será marcado por um duplo Instrumentum laboris (não confundir com os dois Instrumenta já publicados, o Documento Preparatório e o Vade mecum que o acompanha como parte indissociável). O Sínodo dos Bispos também estabeleceu três comissões preparatórias, com quarenta e um especialistas que estão divididos em Comissão Teológica, Comissão Metodológica e Comitê Consultivo para a Orientação.

 

Nas três comissões trabalharão também 10 mulheres, religiosas e teólogas; a comissão metodológica será coordenada pela sra. Nathalie Becquart, religiosa xaveriana, subsecretária geral do Sínodo.

 

Em cada diocese, deve ser nomeado pelo bispo um responsável diocesano (ou uma equipe) para consulta, e o mesmo deve ser feito pelas Conferências Episcopais nacionais, a quem serão enviadas as contribuições pertinentes; cada um deverá fazer um discernimento e uma síntese dos resultados a serem enviados à secretaria geral do Sínodo. Todos os outros organismos consultados também enviarão suas contribuições à Secretaria geral. Em seguida, haverá uma reunião pré-sinodal que será seguida do envio das contribuições à respectiva Conferência Episcopal, e cada uma deverá fazer um discernimento e uma síntese dos resultados a serem enviados à Secretaria geral do Sínodo, que também receberá as contribuições de todos os demais organismos. Até setembro de 2022, o primeiro Instrumentum Laboris do Sínodo será publicado como fruto dessas contribuições particulares e do relativo discernimento.

 

A 'fase continental' do Sínodo sobre a Sinodalidade será a etapa seguinte, de setembro de 2022 a março de 2023, cujo relator geral será o card. Jean-Claude Hollerich, arcebispo de Luxemburgo. Realizar-se-ão encontros internacionais de conferências episcopais (que designarão uma pessoa encarregada de manter as relações com a Secretaria geral do Sínodo) e um discernimento pré-sinodal pelas assembleias continentais, que terminará com a redação de um documento final. Recomenda-se também nessa fase (mas sem prescrições detalhadas) assembleias nacionais de especialistas que enviem suas contribuições à Secretaria geral do Sínodo. Um segundo Instrumentum Laboris nascerá da segunda onda de consultas e contribuições: espera-se que esteja pronto até junho de 2023. A celebração do Sínodo dos Bispos acontecerá no outono europeu.

 

Preparação e apreensões

 

Uma preparação indubitavelmente majestosa e capilar, que desperta admiração, mas ao mesmo tempo um misto de desorientação e apreensão, pelo que Pietro Pisarra ("Le christianisme va-t-il mourir?", em baptises.fr) de 8 de setembro de 2021, chame de última tentação.

 

“A última tentação seria minimizar a envergadura do caminho sinodal, reduzindo-o a uma questão interna, de organização. Ou a uma campanha de marketing, para relançar um produto vencido. E se, diante do êxodo silencioso, das igrejas que se esvaziam, o sínodo fosse a última chance, o kairòs a ser apreendido?”.

 

Em Jesus de setembro de 2021, apareceu uma entrevista muito interessante com a teóloga francesa Paule Zellitch, presidente da Conférence catholique de baptisé-e-s francophones (Ccbf), empenhada desde 2010 para promover a inclusão dos leigos e das mulheres na Igreja, da qual agora fazem parte também muitos padres.

 

Para dar uma ideia da situação atual da Igreja Católica, ela usa uma dupla comparação impressionante. Imaginem, diz ela, ver um padre pregando do púlpito em uma língua pouco compreensível para um público mudo e perplexo, que aos poucos se levanta dos bancos para sair da igreja; ou um círculo fechado no qual os membros, todos do sexo masculino, se confrontam apenas entre si.

 

“... Chegamos ao paradoxo de que, na fé baseada na Palavra, é precisamente a palavra dos fiéis que foi confiscada. É uma Igreja monocromática (...). Os bispos apoiaram a tendência de Wojtyla de reduzir a influência dos teólogos e a possibilidade de fazer novas propostas. Não há contraditório nem debate, os discursos são planos, e isso certamente não é um sinal de saúde na Igreja”. “Os números falam por si: hoje na França 34% dos habitantes declaram-se católicos, mas apenas 2% são praticantes; então, para quem os bispos estão falando?”.

 

Também os cerca de 10.000 casos de abuso sexual perpetrados por membros do clero nos últimos setenta anos contribuem para a crise geral de credibilidade da instituição-Igreja.

 

Segundo Paule Zellitch, é preciso combinar a correta verticalidade com uma saudável horizontalidade. Os leigos e as mulheres, na primeira fila, estão cansados de serem marginalizados, tratados como crianças incapazes de tomar uma direção, de ver suas competências ignoradas e seus carismas subvalorizados.

 

Lembra que o Espírito sopra onde quer e acrescenta: “As hierarquias temem a liberdade de pensamento dos leigos: mas obediência não significa abdicar da inteligência e do espírito crítico, significa seguir Cristo”.

 

Em relação aos mencionados para a França, os "números da crise" na Itália podem parecer um pouco (apenas um pouco) menos catastróficos, mas, em vista da tendência das últimas décadas, pode-se temer que seja agora apenas uma questão de tempo. É fundamental que pelo menos os fiéis empenhados, que talvez sejam menos numerosos do que os ‘ainda’ praticantes, mas a única esperança para o futuro, assumam suas responsabilidades eclesiais sem timidez, sintam-se responsáveis pela sinodalidade efetiva da Igreja e façam ouvir com espírito fraterno e senso crítico a sua palavra, mesmo e sobretudo quando pode parecer que a Igreja não a peça verdadeiramente e não a escute suficientemente.

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.

 

XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição

 

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