18 Fevereiro 2021
"Agora o Papa, também na esteira do discernimento que emergiu dos últimos Sínodos dos Bispos, quis oficializar e tornar institucional, portanto, estável, essa presença feminina no espaço sagrado que não é absolutamente uma novidade, mas até agora era apenas de facto e não de iure. Pode-se, portanto, concordar com aqueles que viram na escolha do Papa Francisco um passo (muito) pequeno, mas na direção certa. Claro que, para que a direção seja claramente entendida, o pequeno passo deve ser acompanhado por outros de maior visibilidade e impacto", escreve a teóloga italiana Lilia Sebastiani, doutora em Teologia pela Academia Alfonsiana, Instituto Superior de Teologia Moral na Universidade Lateranense.
Entre seus livros publicados no Brasil, estão “Maria e Isabel: ícone da solidariedade” (Paulinas, 1998) e “Maria Madalena: de personagem do Evangelho a mito de pecadora redimida” (Vozes, 1995). O artigo foi publicado por Rocca, Nº. 4, 15-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para compreender o sentido do que o Papa Francisco fez com a carta apostólica em forma de motu proprio Spiritus Domini (10 de janeiro de 2021), que também permite às mulheres a possibilidade de serem instituídas como leitoras e/ou acólitas, é indispensável voltar algumas décadas atrás para observar com um olhar prospectivo. Entre os frutos mais significativos do Concílio Vaticano II houve a mudança do princípio na eclesiologia: daquela medieval e tridentina, fundada na dialética clérigos-leigos, para aquela baseada na dialética comunidade-ministérios. Mudança de princípio (ou talvez princípio de mudança?), em um duplo sentido: primeiro, que ainda nos parece ter sido iniciado e não amadurecido, não por ser fraco em si mesmo, mas por ser contido por pressões contrastantes, mesmo que quase sessenta anos tenham se passado desde o início do Concílio; segundo, que diz respeito aos princípios, às premissas teológicas, mas tem dificuldade em se fazer visível em todas as dimensões da vivência eclesial; é uma mudança histórica verdadeira e grande, de certo ponto de vista, da qual, entretanto, ainda não foram tiradas todas as consequências necessárias.
Uma mudança que pode parecer pequena (mas apenas na aparência) e que diz respeito aos ministérios na celebração litúrgica deve ser enquadrada na totalidade da grande mudança histórica. Mudança efetivamente implementada há quase meio século por Paulo VI, quando se encarregou de reorganizar o sistema dos graus da Ordem; modificado há poucos dias pelo Papa Francisco em apenas um ponto, mas potencialmente decisivo, se não propriamente explosivo.
Até o Concílio, ainda não era comum falar de ministérios dentro da assembleia celebrante (e a própria noção de 'assembleia celebrante' ainda estava por vir). Havia o celebrante e os fiéis que assistiam à missa. O elemento chave e discriminador, a Ordem sagrada. E até poucos anos após o término do Concílio, mais do que de Ordem se falava de ordens, no plural, divididas em maiores e menores: em essência, etapas a serem percorridas no caminho rumo à ordenação, caracterizadas por um mais ou menos plena 'clericalidade'. As ordens menores eram as do ostiário (assim chamado porque nos séculos passados abria a porta, ostium), do leitor, do exorcista (que não fazia exorcismos, porém) e do acólito.
Na maioria dos casos, as ordens menores já não vinham acompanhadas de funções a exercer: também porque quem as recebia ali permanecia pouco tempo, orientado jurídica e existencialmente para o sacerdócio. As ordens maiores eram o subdiaconato (com o qual se passava ao estado clerical e se assumia a obrigação de permanecer celibatário), o diaconato e o presbiterado.
Do nosso ponto de vista, é surpreendente que não se falasse do episcopado. De fato, era concebido como um cargo honorífico na igreja: nesta visão, a potestas predominava sobre o serviço. O Concílio, por outro lado, ao recolher e formalizar estudos e reflexões iniciados com o movimento litúrgico na primeira metade do século XX, quase chegou a inverter a abordagem tradicional, lendo o episcopado como plenitude da Ordem sagrada e fonte de todos outros ministérios.
Ora, há uma tendência de se falar apenas da Ordem no singular: episcopado, presbiterado e diaconato são os três graus do único sacramento. O subdiaconato agora parece não essencial porque suas funções são absorvidas em parte pelo ministério do acólito, em parte pelo diácono.
Nesse ponto, uma reorganização da teologia e da organização dos ministérios era claramente necessária. Aqui se insere o motu proprio de Paulo VI Ministeria quaedam (15 de agosto de 1972), com o qual foi estabelecido que - uma vez desaparecidos o ostiariado, o exorcistado e o subdiaconato - o leitorado e o acolitado não estavam mais reservados aos candidatos à ordenação e que não fossem mais chamados de ordens menores, mas ministérios "instituídos", para distingui-los dos ministérios "ordenados" (isto é, os três graus da ordem sagrada). O papa especificava ainda que aquela dos leitores e acólitos "não era um simples função ritual", mas uma verdadeira e própria missão eclesial, e que, portanto, os ministérios "não devem de forma alguma ser diminuídos nem como atribuições honoríficas, nem como momentos episódicos da vida do cristão" (n. 14).
Além disso, os ministérios instituídos são também chamados ministérios laicais, para sublinhar que não significam pertencimentos ao clero nem referência à Ordem, ainda que aqueles que se reparam à ordenação continuem a recebê-los; o direito de acesso é fundamentada no Batismo.
Mas uma anomalia deve ser assinalada aqui também no que diz respeito à (dis)paridade dos sexos. O punctum dolens de MQ é encontrado no n.15. As mulheres também têm acesso ao batismo, mas, de forma pouco compreensível, aos ministérios instituídos não. “A instituição do Leitor e do Acólito, segundo a venerável tradição da Igreja, é reservado aos homens" (Institutio Lectoris et Acolythi, iuxta venerabilem traditionem Ecclesiae, viris reservatur).
Notamos que, na versão oficial italiana, a venerabilis traditio Ecclesiae tornou-se veneranda. Poder dos sufixos! Se algo é venerabilis, significa que é 'digno de veneração', que 'pode ser venerado' (mas também não); se, por outro lado, é venerando, 'deve ser venerado' (= e ai de não o fazer).
Paulo VI estava bem ciente de que o leitorado e o acolitado têm seu fundamento na dignidade batismal, porém agia também sobre ele o hábito arraigado de pensamento que lia esses ministérios em referência imediata à ordenação, daí o temor presente de que a separação entre leigos e clérigos se atenuasse: inaceitável, ao que parece, especialmente quando o leigo era do sexo feminino.
Apesar da clareza do QM, a normativa sobre os ministérios manteve-se quase entre parênteses, pouco conhecida porque pouco utilizada. De fato, poucos leigos têm acesso ao leitorado ou acolitado instituídos. No entanto, existem muitas mulheres que leem na igreja, certamente mais do que os homens, mas o delas é um ministério de fato, que é exercido com o consenso do pároco (que representa o bispo) não 'dado' a cada oportunidade, claro, mas sim suposto.
A exclusão foi aprovada no Código de Direito Canônico de 1983, cânone 230 § 1.
O motu proprio do Papa Francisco Spiritus Domini dispõe que doravante aquele parágrafo seja formulado da seguinte forma: “Os leigos que tiverem a idade e as aptidões determinadas com decreto pela Conferência Episcopal, podem ser assumidos estavelmente, mediante o rito litúrgico estabelecido, nos ministérios de leitores e de acólitos; no entanto, tal concessão não lhes atribui o direito ao sustento ou à remuneração por parte da Igreja”.
Em seguida, acrescenta-se que caberá às Conferências Episcopais estabelecer critérios adequados para o discernimento e a preparação dos candidatos e candidatas, após à aprovação da Santa Sé e de acordo com as necessidades de evangelização em seu território.
As reações foram bastante brandas (com exceção daquelas dos ultraconservadores que, de forma risível, reconheceram no m.p. do Papa Francisco um novo golpe dirigido a afundar o sacerdócio ordenado). A notícia não é uma que "vira manchete", e pode-se supor que muitos, mesmo cristãos praticantes, nem mesmo serão informados.
As mulheres que já leem na igreja provavelmente continuarão a fazer isso como agora. Nos momentos de alta solenidade também se utilizam, embora ordinariamente sejam poucos, os leitores (ainda) leigos encaminhados a receber a Ordem.
Agora o Papa, também na esteira do discernimento que emergiu dos últimos Sínodos dos Bispos, quis oficializar e tornar institucional, portanto, estável, essa presença feminina no espaço sagrado que não é absolutamente uma novidade, mas até agora era apenas de facto e não de iure. Pode-se, portanto, concordar com aqueles que viram na escolha do Papa Francisco um passo (muito) pequeno, mas na direção certa. Claro que, para que a direção seja claramente entendida, o pequeno passo deve ser acompanhado por outros de maior visibilidade e impacto. Veremos agora se o documento de 10 de janeiro será seguido de iniciativas concretas, em particular de cursos sérios de formação bíblica e litúrgica para os leitores e as leitoras e por um envolvimento autêntico dos pastores: isto é, dos bispos, mas também dos párocos, dos quais depende em grande parte que a mudança de princípio tenha verdade e profundidade e possa influir no modo de ser das comunidades cristãs.
A escolha do Papa Francisco, em que muitos viram apenas a oficialização muito tardia de algo que se faz há quase meio século, está na verdade ligada à sua instância de pensar em "novos caminhos para a ministerialidade eclesial", que emergiu durante o Sínodo para a Amazônia (6 a 27 de outubro de 2019). Como enfatiza o documento final, "não só para a Igreja amazônica, mas para toda a Igreja, nas diversas situações, é urgente promover e conferir ministérios a homens e mulheres" .
Agora, segundo o Papa, “para toda a Igreja, nas diversas situações, é urgente que os ministérios sejam promovidos e conferidos a homens e mulheres ... É a Igreja dos homens e das mulheres batizadas que devemos consolidar promovendo a ministerialidade e, sobretudo, a consciência da dignidade batismal”.
Na carta ao card. Luis F. Ladaria (Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé), que acompanha o Motu Proprio explicando seus aspectos teológicos com mais atenção e intenção, o Papa Francisco destaca que a sua escolha “... de conferir também as mulheres estes ofícios, que envolvem uma estabilidade, um reconhecimento público e o mandato do bispo torna mais efetiva na Igreja a participação de todos na obra de evangelização.
Isso também faz com que as mulheres tenham uma presença real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na liderança das comunidades, mas sem deixar de fazê-lo com o estilo próprio de sua marca feminina”.
Essa notação não pode nos fazer exultar, mas ainda assim é importante: mesmo além das intenções explícitas do redator, parece inequivocamente abrir novos tempos em que as mulheres poderão trazer a 'marca feminina' também em outros ministérios relacionados com a direção das comunidades.
A associação Mulheres pela Igreja, por meio de sua presidente Paola Lazzarini, manifestou em 12 de janeiro a satisfação percebendo no gesto do Papa, que modificou e tornou o direito canônico mais inclusivo, a vontade de aceitar os convites provenientes dos últimos dois sínodos e também de escutar a ação das mulheres fiéis. Trata-se de uma satisfação 'dinâmica', em caminho: “Estamos (...) conscientes de que estamos apenas no início de um longo caminho que a Igreja deve percorrer para fazer justiça aos milênios de subalternidade, misoginia, humilhação e violência contra as mulheres. Estamos confiantes de que o Papa e toda a Igreja hierárquica pretendem isso como um primeiro passo a ser seguido em breve por outros. Para nós, em particular, indica um método de trabalho: isto é, que precisamos agir agora para a mudança, viver agora a Igreja que queremos (...) sabendo que as ratificações sempre vêm e sempre virão depois”.
Também Jeannine Gramick, cofundadora do New Ways Ministry, segue a mesma linha, na opinião expressa em Linkiesta: “... Permitir que as mulheres sejam leitoras e acólitas é um pequeno passo, mas na direção certa”.
A biblista Marinella Perroni, ex-presidente do Comitê de Teólogas Italianas (CTI) e professora do Novo Testamento, julga o m.p. Spiritus Domini "uma obra-prima de estratégia bergogliana" e acima de tudo aprecia a centralidade da teologia batismal em um documento que é em si disciplinar. Ela enfatiza que o grande nó da eclesiologia, como ficou claro no Concílio Vaticano II, é a estrutura ministerial da Igreja. “... Nó que o Concílio não quis enfrentar, nem muito menos resolver, esperando, contudo, que se continuassem os trabalhos a respeito. Foi o que biblistas fizeram nas décadas de 1970 e 80 com publicações, que podem ser consideradas definitivas. Mas depois veio a grande geada”.
Nossas análises e respostas são frequentemente condicionadas pela experiência da situação italiana e europeia. Em várias partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos, como pe. James Martin S.J., consultor do Dicastério do Vaticano para a Comunicação, bispos e pastores tradicionalistas reservavam esses ministérios para os homens, recusando também o ministério "de fato" amplamente exercido pelas mulheres. O do Papa Francisco é o primeiro reconhecimento formal do serviço no altar realizado por uma mulher como ministra instituída com mandato eclesial.
Acima de tudo, é importante que o Papa Francisco tenha falado de "desenvolvimento doutrinal" em relação a essa mudança: um verdadeiro desafio para todos aqueles que ainda veem a fidelidade como um imobilismo a-histórico e argumentam que a Igreja nunca poderá de mudar. Um desafio instrutivo e construtivo.
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Motu proprio Spiritus Domini. Um pequeno passo na direção certa. Artigo de Lilia Sebastiani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU