18 Outubro 2021
Rutger Bregman, jovem historiador holandês, nascido em 1988, tem fama e cara de provocador. Com seu livro Utopia para realistas (2014) desafiou a cátedra ao propor ideias – então – revolucionárias como a Renda Básica Universal, uma semana de trabalho reduzida e um mundo sem fronteiras.
Como ele mesmo conta, começou falando com jovens anarquistas e acabou explicando suas ideias aos grandes executivos e políticos em Davos, quando também aproveitou para repreendê-los por usar jatos particulares para ouvir Sir David Attenborough falar sobre mudanças climáticas.
Seu novo livro também é provocativo, mas por sua visão bondosa e sem cinismo sobre as possibilidades dos seres humanos de ser solidários, pensar comunitariamente e se adaptar. Em Humanidade: uma história otimista do homem, apresenta exemplos originais e eloquentes sobre como a humanidade está mais inclinada à bondade do que à maldade, e como algumas histórias foram distorcidas para se encaixar na ideia de que o homem é o lobo do homem ou que apenas uma pequena camada separa a civilização da barbárie.
Seus livros foram traduzidos para 30 idiomas e Yuval Noah Harari disse: “Este livro está me fazendo enxergar a humanidade sob uma nova perspectiva”. De sua casa, na Holanda, conversou conosco via Zoom.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 08-10-2021. A tradução é do Cepat.
Por que decidiu escrever esse livro e desafiar a ideia de que a natureza humana é intrinsecamente má?
Comecei a notar que muitos cientistas de disciplinas muito diferentes estavam se direcionando para uma nova visão mais esperançosa da natureza humana. A segunda razão é que quando estava na turnê de Utopia para realistas, o que ouvi dos leitores, mais de uma vez, foi “Rutger, todas as suas ideias utópicas soam realmente interessantes e talvez funcionem em escala local, mas não podem ser ampliadas, porque os humanos não são justos, os humanos são simplesmente egoístas”. E comecei a perceber que muitas das ideias que me entusiasmam – não só a Renda Básica Universal, mas também a democracia participativa, por exemplo – se baseiam em uma visão fundamentalmente diferente da natureza humana.
Em seu livro, apresenta casos realmente eficazes para afirmar seus pontos de vista a esse respeito. Essa visão positiva foi alterada pela pandemia?
No início da pandemia, alguns de meus amigos me disseram: “Ainda acredita em seus sonhos utópicos sobre a bondade humana? Não está vendo as notícias? As pessoas estão acumulando papel higiênico”. E, então, deixa-me ser claro: acumular papel higiênico não é bom. Mas penso que quando tomamos um pouco de distância, podemos ver que milhares de milhões de pessoas em todo o mundo ajustaram radicalmente seu estilo de vida para deter a propagação do vírus.
Penso que os sacrifícios que muitas pessoas comuns fizeram foram extraordinários. E, claro, você sempre pode destacar incidentes e exceções e pessoas que não seguem as regras, etc. Contudo, mesmo nesses casos, não acredito que seja o egoísmo o que impulsiona as pessoas, mas diferentes crenças e ideologias.
Por exemplo, isso ficou particularmente claro nos Estados Unidos, onde o uso de máscara se tornou um símbolo de identidade política, um símbolo de progressismo. Você a usou porque era leal a seus amigos e companheiros de trabalho, e isso é muito humano, ser leal a seu grupo.
Grande parte do livro trata, obviamente, dessa tendência humana, que é uma de nossas grandes forças e uma de nossas fragilidades. E eu vi pouca, bem pouca evidência da teoria “do verniz”, você já conhece, esta noção de que a nossa civilização é apenas um fino verniz, mas o oposto.
Como viu a pandemia?
No primeiro capítulo do livro, escrevo como as pessoas respondem aos desastres naturais, e não é uma surpresa que mostramos nosso lado melhor. É uma explosão de cooperação. Nos primeiros meses, a Covid foi um pouco como um terremoto: uma explosão de solidariedade, pessoas ajudando a seus vizinhos, etc.
Mas o tempo passa e as pessoas se acostumam com a nova situação, e depois isso se torna uma prova de nossa resistência. Isso tornou as coisas mais complicadas. Outra coisa que realmente complicou foi que esse vírus foi um ataque à nossa própria humanidade.
Por quê?
Porque é humano querer se conectar, tocar, sentir, estar perto um do outro, certo? Então, basicamente tivemos que negar nossa própria natureza humana. E foi isso que fez com que tudo fosse tão, tão incrivelmente difícil...
Mas, em geral, quando olhamos de um pouco mais longe, penso que podemos dizer que a maioria dos cidadãos fez um grande trabalho de adaptação e os cientistas foram incríveis. São principalmente os líderes políticos que foram muito decepcionantes. Mas não há nada de novo nisso.
Algumas das ideias que você apresentou em ‘Utopia para realistas’ se aproximaram. Por exemplo, a Renda Básica Universal, pois foi repassado dinheiro de forma sem precedentes por causa da pandemia.
Publiquei Utopia para realistas em holandês em 2014, e naquele momento as ideias do livro eram consideradas completamente ridículas. Não teve muita atenção. A maioria das pessoas nem sequer sabia o que era a renda básica. Muitas pessoas aqui na Holanda pensaram que eu estava falando do salário base dos banqueiros. Então, foi extraordinário presenciar como essa ideia aparentemente louca se tornou cada vez mais realista.
Também falo desse processo no livro: como as ideias utópicas podem se tornar realidade e como as coisas que primeiro são descartadas como irracionais, irreais e impossíveis podem se mover das margens para o centro. Inclusive, hoje, existem pessoas que criticam a Renda Básica Universal por não ser suficientemente radical. O próprio fato de que a administração Trump – e não só ela – começou a distribuir dinheiro para as pessoas... É o que Milton Friedman chamava “dinheiro de helicópteros”.
Isso em si mesmo é politicamente muito significativo, porque durante anos e anos nos disseram que não podemos nos permitir isso, nem aquilo, etc. Mas como disse John Maynard Keynes, se podemos fazer, podemos pagar... Fizeram uma lavagem cerebral em nós, durante tanto tempo, de que o déficit é a única coisa que importa. A geração jovem está preocupada com o déficit ambiental, o green deal, é uma maneira muito diferente de pensar.
O que acontece com a responsabilidade fiscal?
É claro, sempre há limites, como disse. A inflação é um limite real, em algum momento. Mas acredito que realmente vimos uma expansão das possiblidades políticas nos últimos 5 a 10 anos. E é muito oportuno e muito necessário também, porque a realidade também se tornou muito mais radical.
Devo admitir que 10 anos atrás não estava tão preocupado com as mudanças climáticas. Pensei que eram reais, não era um negacionista do clima, mas era uma das 10 coisas em minha agenda política e não estava na parte superior da lista como o maior desafio de minha geração. Agora, é completamente diferente.
Como a Renda Básica Universal dialoga com a economia pós-pandemia?
Você pode olhar para ela a partir de vários pontos de vista: se nos ajudará a combater a pobreza, inclusive erradicar a pobreza, se ajudará as pessoas a encontrar empregos diferentes. Existem evidências disso em muitos âmbitos de que é uma política muito promissora, em muitas dimensões. Você também pode ver o seu efeito em nossa psique...
E um dos efeitos mais importantes de uma renda básica é que dará muito mais poder de negociação às pessoas que realizam os trabalhos realmente importantes. No início da pandemia, países do mundo todo começaram a elaborar essas listas dos trabalhadores essenciais que mereciam acesso a serviços de cuidado infantil, etc. Onde estavam os banqueiros ou os gerentes? Não estavam nessas listas. Sim, os encanadores, cuidadores, professores, enfermeiras, etc.
Agora, todas essas pessoas, quando tiverem uma renda básica, terão muito mais poder de negociação. E então, a longo prazo, uma sociedade de renda básica poderia ser uma na qual os salários estejam muito mais alinhados com o valor social que se oferece para a sociedade. Hoje em dia, parece ser o contrário... Quanto mais você recebe, menos contribui. Muitas vezes, esse é o caso.
Eu diria que uma renda básica nos obriga, ou ao menos nos ajuda, a nos fazermos essa pergunta fundamental, mais uma vez: Quem são os verdadeiros criadores de riqueza? Sobre os ombros de quem estamos realmente? Quem são os que apoiam todos nós? Essa é a forma como eu tento ver essas coisas, e é uma maneira, a tudo isso, muito old fashion... Os economistas do século XIX eram muito diferentes dos economistas de hoje. Embora estejam melhorando, devo dizer.
Em que sentido?
Como disse, certa vez, John Maynard Keynes, “um bom economista é também um estadista, é um filósofo, trata-se de moralidade”. A economia deveria ter relação com o significado da vida. Trata-se do que é valioso e das decisões que tomamos. A economia é a ciência da tomada de decisões. E penso que não é possível tomar decisões, caso não se tenha uma visão fundamental do que é valioso.
E acredito que se esqueceram dessas importantes perguntas. Disseram: “Vamos a ver o que o mercado faz”. Mas os mercados nunca são neutros. Os preços nunca surgem no vazio. Sempre surgem em um contexto político e sempre há opções por trás disso. E essas escolhas podem ser contestadas. Não temos que concordar com essas escolhas. E acredito que em uma democracia adequada, podemos discutir tudo.
Em ‘Utopia’, você também defendeu uma semana de trabalho de 15 horas. Ainda considera que é uma boa ideia?
Acho que nisso mudei um pouco de opinião. Existem algumas coisas com as quais temos que lidar. E a primeira é, obviamente, as mudanças climáticas, o aquecimento global. E penso que se torna cada vez mais descabido falar em uma semana de trabalho de 15 horas, quando há tanto, tanto trabalho a ser feito. O que precisamos é falar sobre o fato de tantas pessoas estarem realizando um trabalho completamente inútil ou um trabalho que, na realidade, está piorando o problema.
Penso que uma das maiores tragédias de nosso tempo é termos tantas pessoas, jovens que são realmente brilhantes, com currículos maravilhosos, que foram para grandes universidades da Ivy League nos Estados Unidos, mas que possuem um trabalho inútil que, na realidade, destrói a riqueza em vez de criá-la. Um exemplo simples são aquelas pessoas no Vale do Silício que desenvolvem todos esses aplicativos ou algoritmos tolos, para que outros cliquem mais nos anúncios, para que compremos coisas que não precisamos.
Mas também criam riqueza no Vale do Silício, concorda?
Criam riqueza para suas empresas. Note, imagine que alguém é um pirata no século XVII. É um trabalho difícil ser pirata, é preciso ir para a escola de piratas, onde ensinam a queimar, saquear, estuprar, etc. Investiram muito no capital pirata humano dessa pessoa. Então, ela consegue um trabalho bem remunerado em um dos melhores barcos piratas do mundo. E tem uma carreira maravilhosa matando pessoas, torturando e estuprando, etc., e gera muita riqueza para sua empresa, certo?
E a empresa, muito satisfeita, diz: “Olha, contribuímos muito com o PIB, estamos fazendo um trabalho maravilhoso”. E depois alguém vem e diz: “Isso é realmente ruim, você está matando outras pessoas, etc. É preciso abolir a pirataria”. E a pessoa diz: “Não, não, não, não. Não é possível abolir a pirataria, isso custará muitos postos de trabalho e destruirá todo esse capital humano”.
O que equivale a isso?
Penso que, deixando de fora a pilhagem e o estupro, etc., muitos banqueiros modernos estão em uma situação semelhante. Dizem: “Trabalhamos tão duro para conseguir esse trabalho e estamos contribuindo muito com o PIB”. De fato, precisamos fazer um debate mais fundamental sobre quem são os verdadeiros geradores de riqueza. Isso é uma verdadeira riqueza? Ou é apenas a busca de rendas? É só um jogo de soma zero? Ou, pior do que isso, está tirando a riqueza dos outros?
Algo pode ser benéfico para você, mas não benéfico para a sociedade. Penso que essa é a perspectiva que devemos adotar. Quem são os verdadeiros criadores de riqueza que estão jogando o jogo de soma positiva, do qual todos nós nos beneficiamos?
Finalmente, qual é a responsabilidade dos meios de comunicação nessa ideia tão disseminada de que a natureza humana é intrinsecamente má?
Sempre gostei de fazer uma distinção entre jornalismo e notícias. Precisamos do jornalismo, é incrivelmente importante e um dos pilares da democracia. Precisamos de jornalistas com a coragem de dizer a verdade ao poder, precisamos de jornalistas que nos ajudem a ter perspectiva e nos concentrar nas forças estruturais que governam nossas vidas. Precisamos de jornalistas que nos deem esperança, que falem do que vai bem, e que não falem somente dos problemas, mas que também se concentrem nas pessoas que estão trabalhando com soluções...
Não estou falando que deve haver mais notícias “positivas”, não falo de otimismo. Aqui, você tem que fazer uma distinção entre otimismo e esperança. O otimismo é uma forma de complacência, mas a esperança trata da possibilidade de mudança. Não é a inevitabilidade da mudança, é a possiblidade de mudança. Então, isso é jornalismo.
Mas, por outro lado, você tem as notícias e eu as defino como o foco implacável no que está acontecendo hoje, em incidentes, em coisas sensacionais e, muitas vezes, em coisas negativas. Isso atrai muitos olhos, conecta-se com uma parte de nossa psique ou trabalha com uma parte de nosso cérebro que inclusive está presa a esse viés de negatividade. E todas essas notícias que as pessoas consomem diariamente não ajudam a entender o mundo, não são boas. Desconecte-se, não as consuma, não as ofereça para seus filhos. Ofereça a eles um jornalismo construtivo. Assine um jornal de alta qualidade e o leia.
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“A esperança não está na inevitabilidade da mudança, mas em sua possiblidade”. Entrevista com Rutger Bregman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU