Publicamos aqui a reflexão do Pe. Timothy Radcliffe, OP, ex-superior da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) de 1992 a 2001, sobre o exercício do ministério presbiteral no nosso tempo, realizada durante uma jornada de três dias de formação do clero da Diocese de Bolonha, na Itália.
O artigo foi publicado em Settimana News, 16-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sou imensamente grato ao cardeal Zuppi, por ter me convidado para compartilhar com vocês algumas reflexões sobre o que significa ser sacerdote hoje. Estou particularmente comovido por fazer isso para os sacerdotes de Bolonha, onde São Domingos jaz 800 anos após a sua morte. Ele está em casa com vocês, o que significa que eu também me sinto em casa com vocês!
Como jovem dominicano, fui ensinado que toda a pregação começa com a escuta e estou muito consciente de estar falando com vocês agora, antes de tê-los escutado e aprendido alguma coisa sobre a vida de vocês, sobre as suas alegrias e os seus sofrimentos. Portanto, peço-lhes que me perdoem se o que eu disser não lhes for útil.
Certa vez, um amigo meu, um bispo inglês, me pediu para pregar no 25º aniversário da sua ordenação episcopal. Todos os bispos ingleses estariam presentes. Ele me disse: “Timothy, diga-nos o que significa ser um bom bispo”. E disse aos meus irmãos dominicanos: “O que eu posso dizer? Eu nunca fui bispo!”. Um deles respondeu: “Não se preocupe, Timothy, no passado a ignorância nunca o impediu de falar!”. E não o fará hoje.
Este é um momento difícil para ser padre. O povo de Deus está profundamente escandalizado com a crise dos abusos sexuais. Muitos jovens acham que a Igreja está fora do mundo, que é contra as mulheres e os homossexuais. Eles sentem que não temos ideia da sua vida. Podemos parecer irrelevantes, como uma máquina de escrever na era dos laptops. E muitos jovens estão abandonando a Igreja. Renunciaram a ela.
Existe uma história que fala de uma situação desse tipo, que é a nossa história. Dois discípulos desiludidos estão em viagem para Emaús logo depois da Páscoa. Eles esperavam que Jesus seria aquele que viria para redimir Israel, mas ele fracassou. Havia relatos de algumas mulheres que diziam que Jesus havia ressuscitado dos mortos, mas os apóstolos os haviam liquidado como “tolices” (Lc 24,11). Eram apenas mulheres! Portanto, eles perderam a fé e a esperança. Abandonaram a comunidade dos discípulos em Jerusalém e voltaram para casa. Eles se renderam. São exatamente como muitas pessoas hoje. Como podemos ir ao encontro delas? Como Jesus faz isso?
Os dois discípulos estão tentando dar um sentido ao fracasso das suas esperanças quando encontram esse desconhecido. Jesus não diz que eles estão errados e que ele ressuscitou. Ele não lhes diz que devem acreditar. Ele lhes pergunta: “Do que vocês estão falando?” (cf. Lc 24,17). Começa a partir deles. Eles são convidados a expressar a sua perplexidade e a sua decepção, a sua raiva. Ele não fala antes de escutar. Portanto, a nossa pregação começa ouvindo aquilo que as pessoas trazem em seu coração, o que é exatamente aquilo que eu não estou fazendo hoje!
E as primeiras palavras deles a Jesus são: “Tu és o único estrangeiro em Jerusalém que não sabe quais são as coisas que aconteceu aqui nestes dias” (Lc 24,18). São exatamente como muitos jovens italianos e ingleses: “Vocês, sacerdotes e religiosos, não têm ideia do que estamos passando”. Muitos católicos desiludidos pensam que não temos ideia das suas lutas ou do que significa ser uma jovem com um bebê indesejado a caminho, ou ser gay e solitário, e se sentir rejeitado pela Igreja.
Essa sensação de não ser entendido se agravou durante esta pandemia, na qual se perdem os modos normais de compartilhar a vida do nosso povo. Depois de mais de um ano com o vírus, muitas pessoas, até mesmo sacerdotes, também se sentem sozinhas, esquecidas e incompreendidas.
Então, como nós, sacerdotes, abrimo-nos aos seus mundos, com a dor e alegria deles, os seus sonhos e os seus medos? Pessoalmente, acho útil ouvir as músicas e assistir aos filmes de que os jovens gostam. Esse é o mundo deles, e eu tenho que entrar nele. Por exemplo, uma série de TV muito popular na Grã-Bretanha se chamava “Normal People”. É sobre um casal de jovens estudantes irlandeses que se apaixonam. Há muito sexo e nenhuma menção à Igreja ou à religião. Os jovens simplesmente presumem que um velho padre como eu não pode se interessar por um programa desses. Mas, se é aqui onde eles se encontram, é aqui onde eu devo me aventurar.
Notem que eles estão indo na direção errada, fugindo da comunidade dos apóstolos em Jerusalém. Jesus não bloqueia o caminho deles, nem lhes diz para voltarem atrás. Eles farão isso livremente quando os tempos estiverem maduros. Em vez disso, ele caminha com eles.
O ministério mais doloroso de um sacerdote é caminhar com as pessoas quando elas se afastam da Igreja e rejeitam os seus ensinamentos. Santa Teresa de Lisieux dizia que a sua vocação era a de se sentar à mesa com os incrédulos e beber do seu cálice amargo. O Papa Francisco disse que a Igreja é chamada a sair de si mesma e a “ir às periferias, não só geograficamente, mas também às periferias existenciais: o mistério do pecado, da dor, da injustiça, da ignorância e da indiferença à religião, das correntes intelectuais e de toda miséria” [1].
Um dos meus amigos mais próximos abandonou a Ordem Dominicana antes da ordenação. Depois, ele abandonou a Igreja e perdeu a fé em Deus. Nós nos encontramos a cada dois meses para comer e beber alguma coisa. Compartilhamos aquilo que estamos fazendo, as nossas esperanças e os nossos sonhos. Muitas das suas convicções são agora contrárias às minhas. Ele luta pela eutanásia voluntária. Isso é profundamente doloroso para mim. Mas eu não tenho que romper com ele.
Primeiro, porque ele é um amigo, e as amizades deveriam ser para sempre. Mas, em segundo lugar, porque, se eu compartilhar a viagem dele a Emaús, longe da Igreja, talvez um dia ele volte atrás e volte para casa. Frequentemente, não quero ouvir as suas novas convicções, mas, se é disso que ele fala pela estrada enquanto caminha, então é isso que eu devo ouvir.
O desconhecido se junta a eles em uma conversa. Jesus era um homem da conversa, principalmente com as pessoas difíceis! Pensem naquela extraordinária conversa com a mulher samaritana junto ao poço. Ele realmente não devia estar lá! Ela lhe responde: “Como é que você, judeu, pede de beber a mim, uma mulher da Samaria?” (cf. Jo 4,9).
Portanto, a primeira pergunta que eu gostaria de fazer aos sacerdotes é esta: com quem devemos falar enquanto caminhamos pela estrada? Quem é para nós a mulher sozinha junto ao poço? Quem são as pessoas que fogem da Igreja com quem podemos caminhar?
Então, Jesus expõe as Escrituras. “E, começando por Moisés e por todos os profetas, interpretou a eles em todas as Escrituras as coisas que lhe diziam respeito” (Lc 24,27). Não é que Jesus primeiro ouve e depois prega, provavelmente longamente! As Escrituras são o diálogo de Deus com a humanidade. Na Verbum Domini, o Papa Bento XVI escreve: “A novidade da revelação bíblica consiste no fato de Deus se dar a conhecer no diálogo, que deseja ter conosco” (VD 6).
Cada homilia é uma contribuição ao diálogo da comunidade com Deus e entre si. Portanto, o principal testemunho da nossa fé, especialmente como pregadores, é nos envolvermos em uma conversa. Alguém poderá objetar que, antes de tudo, devemos proclamar a nossa fé, caso contrário cairemos no relativismo. Mas a conversa é o único modo de anunciar Jesus, que é o diálogo da Palavra de Deus com a humanidade. Qualquer outro modo corre o risco de cair na ideologia. Todo o Evangelho de João é uma conversa após a outra.
Portanto, no centro da vocação do sacerdote está a arte da conversa. Ele deve ser alguém que gosta de conversar com as outras pessoas, principalmente se não concordam com ele. Ele precisa de confiança para falar e de humildade para escutar. Isso é particularmente difícil na nossa sociedade, que está perdendo a arte de interagir com pessoas que pensam de forma diferente.
Os algoritmos do Google e do Facebook nos guiam ao encontro com pessoas que pensam como nós. A sociedade ocidental está se tornando tribalizada. Vivemos em câmaras de eco de pessoas que pensam da mesma forma. As melhores conversas abraçam e se deleitam com a diferença.
A história da viagem rumo a Emaús envolve uma diferença interessante. Jesus está em dois lugares ao mesmo tempo. Está em Jerusalém, o lugar da ressurreição. Lá, ele se mostrará aos apóstolos e compartilhará uma refeição com eles. Ele está no centro da comunidade apostólica. Mas também está com os discípulos que estão decepcionados e fogem para Emaús. Jesus está tanto no centro quanto na margem.
Nós também devemos viver em ambos os lugares. Dizia-se que São Domingos estava “in medio ecclesiae”, no meio da Igreja. Pensamos com a Igreja. A Igreja é a nossa casa. Porém, também somos pessoas que estão nas periferias, nas palavras do Papa Francisco. Nós nos identificamos com quem se interroga e com quem duvida. Nós assumimos as suas perguntas. Devemos estar em Jerusalém e na estrada para Emaús.
O Pe. Tony Philpot, diretor espiritual do English College de Roma, foi a uma conferência realizada em Cambridge pelo então cardeal Ratzinger. Foi uma conferência maravilhosa e inteligente, mas distante da vida dos seus paroquianos. Ele se sentiu dilacerado. E escreveu: “É incômodo ocupar o espaço entre a rocha e o martelo. É incômodo pertencer ao mundo da ortodoxia, mas gastar tanto do meu tempo e das minhas energias com os não ortodoxos e, de fato, pertencer também ao mundo deles. Aos homens que se preparam para o sacerdócio como padres diocesanos, gostaria de dizer que esse coração dividido é a dor característica da sua vocação, e, se experimentam a dor, é sinal de que serão bons sacerdotes” [2].
Os sacerdotes, portanto, são chamados a viver na tensão entre as convicções da Igreja e as questões do mundo. Nenhum de nós conseguirá encontrar o equilíbrio perfeitamente correto. Alguns de nós serão mais naturalmente pessoas da instituição da Igreja e terão uma adesão instintiva ao magistério. Outros encontram o seu ministério nas periferias, identificando-se com as pessoas nas margens, com os estranhos. Alguns são Pedro, a rocha, outros são Tomé, o duvidoso.
Alguns de nós serão por temperamento mais conservadores, e outros, progressistas. Porém, cada um deve valorizar a vocação do outro. Não deve haver rivalidade. Alguns são corações e estômagos do corpo de Cristo, que mantêm todo o organismo vivo. Outros são mãos que se estendem e exploram o mundo exterior, testando os limites, a pele do corpo. Todos são necessários, e ninguém deve ser desprezado. A polarização entre conservadores e progressistas deveria ser totalmente estranha ao catolicismo.
Nós precisamos uns dos outros. Nunca somos padres solitários, cada um com a sua vocação privada. Juntos como presbitério, cada um com o seu papel diferente, facilitamos o complexo diálogo entre a Igreja e a Palavra, o Evangelho e a realidade secular, Jerusalém e Emaús.
Chegamos agora à grande ironia dessa história, tão típica dos Evangelhos. Eles dizem a Jesus: “Fica conosco, porque é tarde, e o dia já passou” (cf. Lc 24,29). Essas pessoas irrequietas, fugindo da Igreja, convidam o Senhor do Sábado para repousar com elas. Oferecem a Deus uma refeição e um leito para a noite. Ele é convidado a se recostar com eles à mesa, para ficar tranquilo.
Pregamos aceitando a hospitalidade. Quando Jesus envia os discípulos para pregar, ele diz que eles não devem levar nada com eles, “e em qualquer casa em que vocês entrarem, permaneçam aí, até vocês se partirem do lugar” (cf. Lc 9,4). Jesus está à porta e bate, e, se alguém abrir a porta e o deixar entrar, ele permanecerá com ele (cf. Ap 3,20).
Portanto, o nosso ministério sacerdotal inclui a aceitação da hospitalidade, como eu digo aos meus irmãos em Oxford quando saio para jantar de novo! O dominicano francês Marie-Dominique Chenu era o avô do Concílio Vaticano II. Mesmo aos 80 anos, na maioria das noites, ele saía para ver amigos, artistas ou para ouvir políticos ou líderes sindicais. Esse grande pregador aprendeu a arte de ser hóspede nas casas e nas instituições de outras pessoas. Ele compartilhava a sua comida, as suas ideias, os seus sonhos, as suas esperanças. Tarde da noite, nós o encontrávamos no refeitório para uma última cerveja, e ele perguntava: “O que você aprendeu hoje? Na mesa de quem você se sentou?”.
Então, devemos ter a coragem de aceitar o convite para descansar com os jovens, ou artistas, ou trabalhadores, ou industriários. Apenas para desfrutar a companhia deles, para sentir prazer por estar com eles.
“Fica conosco, pois já é tarde, e a noite vem chegando” (cf. Lc 24,29). Se quisermos que eles se sintam em casa na Igreja, devemos estar em casa com eles.
Chegamos aqui ao grande ápice: “Quando estava recostado com eles, tomou o pão, deu graças, o partiu e deu a eles. Então, os olhos deles se abriram, e eles o reconheceram, e ele desapareceu da frente deles” (cf. Lc 24,30-31).
Esse é o gesto que Jesus fez durante a Última Ceia, o momento do desespero mais total. Na noite antes de morrer, ele fez um gesto de esperança. Judas o havia traído, Pedro logo o renegaria, e a maioria dos discípulos fugiria. Quando tudo o que parecia acontecer eram torturas, humilhações e morte, ele deu um sinal de esperança, que repetimos todos os dias.
Só comecei a entender isso um pouco quando visitei Ruanda pela primeira vez em 1993. O genocídio havia apenas começado. Tínhamos planejado viajar de carro para o norte do país para visitar as freiras dominicanas. O embaixador belga veio e nos disse que devíamos ficar em casa, porque todo o país estava em chamas.
Mas éramos jovens e tolos, em vez de agora que sou velho e tolo! Atravessamos um país que estava cheio de soldados do Exército e de rebeldes em conflito. O pior momento foi visitar um hospital cheio de crianças que haviam perdido os seus membros nos combates ou por causa das minas terrestres. Uma criança pequenina havia perdido ambas as pernas, um braço e um olho. Seu pai se sentou ao lado do leito e chorou. Eu também saí para a mata para chorar.
Quando chegamos às freiras dominicanas, eu sabia que devia dizer alguma coisa. Mas o que eu podia dizer diante de todo esse sofrimento? Estava sem palavras. E então me lembrei de que havia algo que eu podia fazer. Eu poderia evocar aquele gesto de Jesus na noite antes de morrer, quando tomou o pão, abençoou-o e partiu-o, dizendo: “Este é o meu corpo” (Lc 22,19). Isso expressa uma esperança para além das palavras. Essa é a esperança que os discípulos descobrem naquela noite em Emaús, e assim eles podem voltar para casa. Foram libertados da pequena esperança de uma vitória militar sobre os romanos na vasta esperança de uma vitória sobre a morte.
Como podemos compartilhar a esperança eucarística com quem se sentem desiludido? Eu fiz essa pergunta a uma amiga minha que trabalha com os refugiados na Inglaterra. Ela respondeu: “Eles me dão esperança”. Essa foi a minha experiência muito limitada.
Depois que o ISIS ocupou as planícies de Nínive, no norte do Iraque, centenas de milhares de pessoas fugiram, incluindo os meus irmãos e irmãs dominicanos. Fui ao encontro deles lhes dar esperança, mas foram eles que me ensinaram a esperança. Talvez foi um pouco recíproco.
Se formos aos lugares da miséria, vamos nos perguntar o que devemos para dar. Mas lá será dado a nós. Jesus diz aos discípulos: “Quando colocarem vocês à prova e lhes enganarem, não fiquem ansiosos antecipadamente com aquilo que deverão dizer, mas digam aquilo que lhe será dado naquele momento, porque não serão vocês que falarão, mas o Espírito Santo” (Mc 13,11).
Se formos ao encontro dos jovens que estão desesperados pelo futuro, ou dos doentes e moribundos, nos sentiremos como peixes fora d’água. Vamos nos sentir pobres. Mas depois o Senhor nos dará a palavra que é necessária. E poderemos nem saber que a recebemos e a damos. Então, duc em altum! Saiamos das águas onde nos sentimos mais seguros!
Eles reconheceram o seu rosto!
Esses discípulos ficaram decepcionados porque Jesus não havia resgatado Israel e não havia derrubado os romanos. Não haviam reconhecido que ele era a esperança mais profunda deles. Durante séculos, Israel havia cantado: “Resplandeça o teu rosto sobre nós e seremos salvos” (Sl 80,19). Em Jesus, revela-se o rosto de Deus que sorri para eles, mas até então eles não o tinham visto.
O nosso papel como sacerdotes não é principalmente o de revelar e descobrir o rosto do Senhor. Devemos ser esse rosto e ver esse rosto naqueles a quem nos dirigimos. Cada ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus, oferece-nos um vislumbre daquele rosto que desejamos.
Muitas vezes contei como fui convidado pelos bispos a visitar a Argélia, para ajudar a pensar o futuro da Igreja ali. Eu não podia voar para o Sul do país. Por causa dos combates, todos os voos haviam sido cancelados. Então, um bispo dominicano me levou no seu carro velho. Acabamos sendo envolvidos nas violências.
Jamais esquecerei o rosto de um jovem de pé em cima do para-brisa do nosso carro com uma grande pedra. Tentei olhá-lo nos olhos: se pudéssemos nos olhar um ao outro, talvez a violência tivesse parado. No começo, eu só vi um rosto cheio de ódio. Depois, debaixo da raiva, vi o medo. Cheguei a entrever por um instante o rosto de alguém que a sua mãe certamente amava: toda a complexidade de um rosto humano.
Os cristãos administravam um albergue no distrito da luz vermelha de Amsterdã. Um dia, uma prostituta chegou e disse: “Você deve ser um cristão!”. Sim, como você sabe?” “Por que você me olha nos olhos.”
Portanto, a formação sacerdotal inclui a arte da conversa e a habilidade de ser um rosto e de ler rostos. Se olharmos as pessoas nos olhos, então saberemos o que dizer.
No momento em que o Senhor é visto, ele desaparece. Ele está surgindo na onipresença de Deus, em Jerusalém, em Emaús e por toda a parte. Nós, sacerdotes, também devemos desaparecer, porque não somos Jesus. Devemos sair do meio do caminho para que as pessoas possam ir ao encontro dele. A grande tentação dos sacerdotes é de se colocarem no centro e de se tornarem indispensáveis.
“Caro Pe. Timothy, como faremos sem você?” É fácil se tornar um guru, com os nossos fã-clubes, os nossos admiradores. Mas, se somos mensageiros do Evangelho, nós também devemos desaparecer como João Batista: “Ele deve crescer, mas eu devo diminuir” (cf. Jo 3,30). Se um bom músico se apresenta, ficamos admirados com a sua habilidade. Mas, se for um grande músico, então ele desaparece, porque somos tomados pela música.
Então, os discípulos dizem: “O nosso coração não ardia dentro de nós quando ele nos falava pela estrada, enquanto nos abria as Escrituras?” (Lc 24,32). O coração das pessoas arde dentro delas quando pregamos e interpretamos as escrituras?
Enquanto eu preparava esta conferência, ministrei um retiro para os bispos do Caribe, e eles me disseram que um dos principais motivos pelos quais as pessoas abandonam a Igreja Católica é que as homilias são chatas! É o meu medo constante quando eu prego: estou entediando as pessoas? Como podemos pregar para que as pessoas fiquem cheias de alegria?
Eu falei demais e devo ser breve. A fuga dos discípulos de Jerusalém é uma expressão de desespero. O cerne do desespero é que tudo aquilo pelo qual se sofre não tem significado. Quando São Oscar Romero visitou o cenário de um massacre do Exército, ele se deparou com o corpo de um menininho caído em uma vala: “Era apenas um menininho, no fundo da vala, com o rosto para cima. Eu podia ver os furos das balas, os hematomas deixados pelos tiros, o sangue seco. Seus olhos estavam abertos, como se perguntasse o motivo da sua morte e não entendesse”.
O desespero é o colapso de todo significado. Václav Havel, o dramaturgo que se tornou presidente da República Tcheca, disse que a nossa esperança não é de que tudo corra bem, mas de que as nossas vidas tenham um significado.
O mal é o desespero da insensatez. O químico judeu italiano Primo Levi desceu àquele inferno de Auschwitz. Estava desesperado de sede e estendeu a mão para fora do seu barracão para pegar um pedaço de gelo para sugá-lo. “Imediatamente, um guarda grande e pesado que circulava do lado de fora o arrancou brutalmente de mim. Warum?, por que, eu lhe perguntei no meu pobre alemão. Hier is kein warum, não há 'por que' aqui, ele respondeu” [3].
Talvez o coração das pessoas arderá dentro delas se ousarmos abraçar os sofrimentos das pessoas, os seus momentos de desespero. Não saberemos explicar por que sofrem. Nenhuma teoria resolverá o problema do sofrimento. Mas podemos abraçá-las na história daquele homem cujos sofrimentos foram necessários para que ele pudesse entrar na sua glória. Nele encontramos a promessa de significado a tudo aquilo que vivemos. Se as pessoas entrevirem o rosto de Deus, elas começarão a entender.
São Paulo diz: “Agora conheço em parte; então entenderei também como sou conhecido” (1Cor 13,12). A nossa pregação pode fazer arder o coração das pessoas se reconhecermos o seu sofrimento, a sua dor e o abraçarmos na história desse desconhecido que caminha conosco agora, aonde quer que formos.
Então, grande parte do sacerdócio é a prática das habilidades humanas comuns. Em Jesus, Deus se fez homem, e nós também somos convidados a nos tornarmos humanos! Primeiro, existe a arte da conversa. Se escutarmos profundamente, abrindo a nossa mente e o nosso coração para outras pessoas que estão longe da Igreja, elas podem nos escutar.
Se aprendermos a ler os rostos, em toda a sua complexidade humana, veremos o rosto de Deus cem vezes por dia. Se ousarmos sair das nossas profundezas, a ponto de nos sentirmos sem palavras, o Espírito Santo nos dará o que dizer, mesmo que nunca o saibamos. E as nossas homilias às vezes poderão até arder o coração das pessoas.
1. Declaração do cardeal Bergoglio à Congregação dos Cardeais antes da sua eleição, segundo o cardeal Jaime Lucas Ortega y Alamino.
2. Priesthood in Reality: Living the vocation of a diocesan priest in a changing world. Bury St. Edmunds, 1998, p. 88.
3. P. Levi. Se questo è un uomo. Turim: Einaudi, 1989, p. 25.