03 Setembro 2021
Jaime Breilh é uma referência latino-americana em epidemiologia crítica e no campo da saúde coletiva. Professor e pesquisador, questiona as formas hegemônicas de exercer a medicina e a ciência. Denuncia “a ditadura do paper científico” e as décadas de domesticação do pensamento acadêmico.
Com distância dos antivacinas, aponta os riscos das novas tecnologias que são utilizadas contra o coronavírus e defende “romper com a ideia da vacina como única salvação”. Propõe que se aponte para as causas da Covid-19 e afirma que, para a pós-pandemia, é urgente parar o extrativismo.
O nome Jaime Breilh é sinônimo de epidemiologia crítica na América Latina. Referência no campo da saúde coletiva, esse professor e pesquisador equatoriano é um incansável pedagogo da reflexão profunda sobre a prática científica e crítico ao exercício da medicina hegemônica. Embora tenha inúmeras credenciais acadêmicas e a recente publicação de seu livro Epidemiology and The People´s Health (Epidemiologia e saúde dos povos), pela Oxford University Press, Breilh não se entrincheira na suposta superioridade da voz científica, convoca a “sair da ditadura do paper” e a reconhecer outras formas não hegemônicas de pensar a saúde.
Nessa linha, convida a olhar as estruturas profundas do capitalismo para abordar de forma realista o atual mundo pandêmico. “Não colocar as vacinas como panaceia”, denunciar a “infodemia do campo médico-hegemônico” e desarmar “décadas de domesticação dos cursos de medicina” são alguns dos pontos que destaca como fundamentais.
Sua voz é uma aposta para sair do cada vez mais limitado campo de debate entre negacionistas, de um lado, e a monocultura da indústria farmacêutica, grande parte dos governos e os meios de comunicação em massa, do outro.
A entrevista é de Leonardo Rossi, publicada por Tierra Viva, 26-08-2021. A tradução é do Cepat.
Como analisa a abordagem hegemônica em torno da pandemia?
Vejo que pensar a pandemia a partir da lógica de uma causalidade tem nos ludibriado. Se me aproximo dessa problemática de forma reducionista, a pandemia será um vírus, vacinas, medicamentos, prevenção etiológica individual, contágio. E isso é apenas a ponta do iceberg, apenas uma parte dos efeitos observáveis em um processo muito mais complexo.
O primeiro grande vínculo que temos que estabelecer é entre a pandemia e o sistema agroalimentar do capitalismo em sua versão 4.0 por seus impactos ecológicos, sanitários e sociais. No coração da pandemia está o sistema agroalimentar do capitalismo. E é preciso dizer, então, que não existe somente agricultura, nem somente sistema agroalimentar, mas que existe uma disputa profunda de sentidos, de implicações e de práticas sobre essas categorias que devemos discutir e colocar em diálogo urgente com a saúde.
Você aponta para uma forma específica de produção agrícola e de alimentação.
Primeiro temos que começar distinguindo os modelos agrários. Há dois paradigmas produtivos, políticos e sociais em torno da agricultura. Por um lado, a agricultura da vida, e por outro, a das corporações, a do mercado.
E não são compatíveis, são antagônicas. Porque existe uma agricultura que é pensada para defender, proteger, alimentar o sujeito vivo social. E há outra que é pensada a partir da ganância e que busca a forma de transformar tudo em commodities, do ser humano e a força de trabalho ao genoma, a terra, a água.
Tudo faz parte de uma estrutura de acumulação de capital. É o sistema agroalimentar da morte, porque tem consequências profundas sobre a vida humana e não humana, e vemos isso com os surtos virais ocorridos nos últimos anos e com a vulnerabilidade na saúde das populações. Não podemos mais ignorar isso.
No campo crítico da saúde, é dito que atravessamos uma sindemia (sinergia de várias problemáticas sanitárias com alcance epidêmico). Qual é a sua definição a respeito desse conceito?
É verdade que estamos em uma sindemia muito antes da expansão do Sars-CoV-2 (Covid-19). Ou seja, estamos diante de uma confluência de vários processos correlacionados, sinérgicos, que se potencializam, e o efeito é mais do que a mera soma desses processos.
Minha visão, a partir da epidemiologia crítica, entende que o problema não é apenas as doenças virais e não virais, as doenças crônicas, a saúde mental. Essa é uma parte da saúde muito importante, claro, mas é muito mais do que isso. Os processos sindêmicos vão além e devemos pensar no estrutural. Aí encontramos uma confluência de processos políticos, econômicos, sociais, ecológicos e culturais.
No coração disso está o capitalismo, cuja capacidade de concentração e destruição é inédita, com um crescimento galopante da desigualdade social em níveis explosivos. Esse marco destrói o bem comum e produz uma exclusão, em grande escala, de tudo o que é necessário para o bem viver humano e não humano.
Que outros processos formam essa sindemia?
Outro ponto central é a sistemática acumulação de condições de “pandemicidade”. É uma estrutura globalizada de um sistema cada vez mais acelerado para transformar as bases mínimas de desenvolvimento dos ecossistemas. Essa estrutura é o que provocou as pandemias dos últimos anos e das que virão. É impossível continuar pensando nos vírus como um sistema biológico com sua lógica, seus processos de adaptação e os ritmos que historicamente tiveram.
Se temos hoje uma agroindústria que está gerando condições para animais em massa com uniformidade genética, que é a base para a combinação e mutação viral; um sistema de vacinação irrefletido e descoordenado que irá catapultar a diversificação das cepas virais; e um sistema social onde a cidade neoliberal e o campo neoliberal são propícios para a concentração de uma alta carga viral e uma alta carga de populações vulneráveis, não podemos pensar os vírus como algo que flui naturalmente. Isso é o estrutural que é necessário entender.
Ou seja, é preciso explicitar a dimensão política na própria propagação do vírus.
Não se trata de um vírus atuando conforme a lógica de um manual, porque falar disso seria fazer neodarwinismo do mais perverso. Pensar que o vírus está caminhando pela sua própria dinâmica, a partir de sua própria estrutura genética, e que está buscando aceleradamente a mutação sozinho, como em um ensaio experimental, isso é falso. O vírus é impulsionado por um sistema tão brutal de recomposição da relação entre humanos e natureza que tem a mesa servida para a sua reprodução.
Qual é o papel da acelerada crise climática nessa sindemia?
Dentro dessas transformações drásticas, um quarto ponto da sindemia e que é central é a mudança climática. Parece que assim como estamos vendo com as inundações, os incêndios, a perda de geleiras, a acidificação do mar e os ciclones dos últimos tempos, estamos frente a sinais gravíssimos de um transtorno ambiental integral que dá seus últimos avisos ao entrar no ponto de não retorno. E essa dimensão não só não deve ficar de fora, na hora de pensar a saúde a partir de uma perspectiva crítica e integral, como também deve fazer parte das abordagens da pandemia.
Você criticou a informação hegemônica sobre a abordagem sanitária. O que é preciso destacar a esse respeito?
Aqui, temos o quinto ponto dessa sindemia, que é a desinformação que existe sobre um tema como essa pandemia e que atinge toda a população global. E sobre isso tenho uma visão crítica dos discursos que hegemonizaram a abordagem sanitária.
Em seu momento, a OMS (Organização Mundial da Saúde) falou de infodemia acerca das fake news e a desinformação sobre a pandemia nas redes sociais. Tudo bem, mas, ao final, isso é ridículo em comparação à pandemia de informação manipulada exercida pelo poder corporativo real em torno do vírus.
Os sistemas de saúde do mundo estão estruturados em torno de um amplo sistema infodêmico. A ciência do poder trabalha em tudo isso com sofisticação de dados acerca da ponta do iceberg que mencionamos antes. Ou seja, falam dos efeitos do vírus, dos contatos, apresentam sistemas de multiplicação, taxa de letalidade diferencial. No máximo a que chegam é dizer que nos Estados Unidos a mortalidade de negros e latinos é maior do que a de brancos.
Há uma desinformação dramática onde não há informação atualizada e que cubra o necessário para uma abordagem integral. Os aspectos estruturais que falamos, como parte da abordagem sanitária, ficam totalmente de fora. Essa informação que hegemoniza o discurso em torno da pandemia não é democrática e é totalmente manipulada em favor dos grandes interesses dos negócios da indústria farmacêutica.
O que poderia dizer desse status de ‘verdade única’ que a ciência médica hegemônica adquiriu no contexto da pandemia?
Para entender isso, primeiro é preciso saber que arrastamos décadas de domesticação do pensamento acadêmico em saúde. Uma domesticação em torno da ciência positivista, cartesiana, de olhar a realidade de forma fragmentada.
A ideia de sofisticação da ciência é poder manipular pedacinhos da realidade que são chamados de variáveis, com isso construir sistemas complexos formais e prever uma probabilidade ou descrever um comportamento empírico. Mas aí, nessa ponta do iceberg que podemos conhecer em detalhes, não está a essência do que está acontecendo conosco. Há um controle profundo sobre o funcionamento dos centros hegemônicos de pesquisa, que muito recentemente começa a ser rompido.
Outro dia, na legislatura do Texas, um dos grandes cardiologistas daquele centro hegemônico da ciência disse: estamos enlouquecendo. Questionava-se: “Como podemos investir milhões e milhões apenas em uma ferramenta como a vacina, sobre a qual nem sequer está totalmente comprovada a eficácia, e deixarmos todas as outras questões básicas abandonadas?”.
Existe lugar para vozes dissidentes nessa visão médico-hegemônica?
No mundo andino e em outros países, muitas práticas médicas que saem do modelo hegemônico, da revisão por pares, têm sido perseguidas. O que sai da estrutura hegemônica, como práticas sociais de médicos que trabalham com comunidades e saberes das próprias comunidades, é satanizado. Estamos vivendo a ditadura do paper científico. O que vale para qualificar sua voz como válida é quantos papers escreveu em revistas de alto impacto.
Não se nega que nessas revistas existam coisas muito valiosas, e muitos de nós nos esforçamos para escrever trabalhos. Mas quando passamos a confiar apenas nesse plano, devemos saber que as revistas de alto impacto não são neutras. E, por fim, o que lê o estudante, o residente de medicina ou os profissionais da saúde? O que está na revista científica de alto impacto. Mas o conhecimento não se reduz a isso, de forma alguma.
A pandemia evidenciou isso. Temos inúmeros campos para estudar de zonas cegas da ciência que são fundamentais para fazer uma prevenção profunda, real e consistente da pandemia. E isso não é levado em conta porque não entra na lógica hegemônica.
Conforme você explicava, não é possível separar essa abordagem do comando capitalista.
É preciso compreender que a ciência médica é controlada por uma lógica comercial, muitas vezes disfarçada de neutralidade científica. Esse tipo de irracionalidade governa neste mundo. É o mesmo que acontece com as vacinas, que em sua grande porcentagem foram desenvolvidas na proporção de 9 a 1, de 7 a 3 ou de 6 a 4 entre fundos públicos e privados. Mas não temos código aberto para saber como são feitas e, em todo caso, ver como elaborá-la em outros lugares de forma pública. Isso é uma loucura.
Além disso, esse mesmo sistema de saúde está estruturado em grande parte do mundo para causar uma alta mortalidade de profissionais da saúde da linha de frente, e a pandemia também evidenciou isso. Então, não se pode deixar de apontar, revisar e mudar esses aspectos que denotam uma forma de entender a saúde como um negócio em vez de o cuidado da vida.
Um ponto crítico nesse fechamento do debate científico é a vacinação. Qual é a sua visão a esse respeito, quando o debate se simplifica a vacinas ou antivacinas, frente a um assunto tão delicado como o cuidado do tecido da vida?
Antes de tudo, é preciso romper com a panaceia da vacina como a grande via, a única salvação, até pelo fato de que a tão mencionada imunidade de rebanho é uma enteléquia. O que é o clássico da imunidade de rebanho? Se tenho uma epidemia de sarampo, tenho certa cobertura de vacinação, um número de contatos controlado. Isso gera uma paralisação ou diminuição até o desaparecimento do sistema de contágio.
Hoje, existem vários debates sobre essa possibilidade em relação a esse vírus específico. Estudos já marcam sua preocupação porque o pessoal da linha de frente em hospitais foi infectado por vacinados. Existem evidências se acumulando a esse respeito, ao menos de vacinados com a Pzifer, nos Estados Unidos. Os próprios vacinados estão sendo elementos de contágio. O sistema clássico de que vacino a população e pronto, não está claro ser o que funciona agora.
Também se fala genericamente de vacinas, quando na verdade há tecnologias clássicas, outras novas, baseadas em modificação genética, e as de RNA mensageiro. O que pode nos dizer sobre esse ponto?
É preciso especificar que uma vacina, propriamente chamada assim, é um vírus inativado ou um vírus atenuado e ponto. No caso das vacinas clássicas, não aconteceu com a sua genética, não há introdução de um código de produção de proteínas anômalo, artificial em seu corpo, nem estamos introduzindo ou inoculando as instruções.
Precisamos pesquisar o que acontecerá daqui há dez, quinze, vinte anos com essas tecnologias que eu não chamo de vacinas, mas de medicamentos de geração de imunidade baseadas em um mecanismo de indução genética de RNAm. Hoje, não sabemos. E quem disser que sim, sabe, não está oferecendo um dado científico.
Esse tipo de advertência, que é própria do princípio da precaução científico, é cancelado como “antivacina”.
Qualquer pesquisa ou alerta a esse respeito é questionado pelos centros que controlam essas decisões. Estão tendo que aproveitar a aceleração da venda de vacinas e nada pode ser questionado. Tudo isso não está sendo debatido, porque os meios de comunicação nos encantam com os últimos acontecimentos da vacina tal ou qual.
Quando paramos e pensamos que não estamos podendo debater a esse respeito, parece realmente que o mundo enlouqueceu, ao passo que os cavaleiros do apocalipse da ganância estão soltos. Essa é a lógica do mundo na pandemia, e é o que as academias deveriam estar questionando.
E o que acontece como prática hegemônica nas academias, hoje em dia?
A maioria dentro das universidades nem se inteira dessas questões de fundo, das zonas de incerteza em relação a algumas tecnologias, nem questionam tudo isso. Só estão desesperados para obter uma vacina. E não se questiona isso em meio ao medo pessoal de sofrer um caso grave, mas ao mesmo tempo não deveriam deixar de debater todas essas estruturas de poder que afetam o campo científico.
A partir das ciências da saúde, é preciso ver que áreas de incerteza há em torno de uma transgênese que pudesse ser perigosa no futuro. Então, é necessário sermos cautelosos com a informação. Por exemplo, é preciso pensar bem o que fazer com os jovens e crianças que majoritariamente não passaram por casos graves. Em todo caso, seria necessário fazer algo organizado, altamente monitorado, com grupos de observação, para poder tomar decisões certeiras e muito específicas.
Que políticas urgentes são necessárias, hoje?
É preciso haver uma proposta integral para sair da pandemia, onde vejo que uma ferramenta muito importante é a agroecologia. A luta pela agroecologia e por sistemas alimentares da vida, que substituam o extrativismo agroindustrial, é uma via de saída. Precisamos construir políticas de fomento à produção ecológica, ao emprego rural de qualidade, recompensar aqueles que cuidam do meio ambiente, não usam agroquímicos, que não destroem ecossistemas, que protegem a água. Essas são políticas antipandêmicas.
A agricultura como um eixo central.
Eu falo em promover os quatro “S” da vida: Sustentabilidade, Soberania, Solidariedade e (bio)Segurança integral. Para sair dos ciclos pandêmicos, temos que criar sociedades sustentáveis nas quais, sem dúvida, a agricultura tem um papel fundamental por suas implicações no uso da água, da terra, da biodiversidade e das relações sociais. Esse processo deve ser soberano, não pode continuar dependendo das lógicas impostas pelas grandes corporações.
Para alcançar isso, devemos cultivar a solidariedade em todos os níveis como um aspecto político fundamental para deixar para trás essa sociedade patriarcal, racista e classista. E, finalmente, a segurança última que não podemos omitir como projeto é a da vida, e isso depende de políticas muito concretas.
Para a pós-pandemia, precisamos de um freio urgente ao extrativismo, proibir o uso em massa de agrotóxicos, proibir os transgênicos, as formas de produção em massa de animais e sua alta carga viral. Esses são exemplos concretos de políticas que dão segurança à vida, e uma verdadeira via de organização antipandêmica.
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“No coração da pandemia está o sistema agroalimentar do capitalismo”. Entrevista com Jaime Breilh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU