20 Julho 2021
“A revolução socialista é questão do passado, não é o futuro da humanidade. Tampouco o capitalismo. O binarismo capitalismo/socialismo já não funciona como organizador e ordenador dos conflitos sociais”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por Brecha, 16-07-2021. A tradução é do Cepat.
Pertenço à geração que cresceu influenciada pelo clima político e cultural da revolução cubana. Contagiei-me pelo entusiasmo que gerava, em particular, a figura de Che, que não hesitou em deixar os confortos da vida urbana pós-revolucionária para caminhar por matas e montanhas, porque “o dever de todo revolucionário é fazer a revolução”.
Hoje, Cuba atravessa uma situação complexa, que me leva a refletir em vários momentos sobre a conjuntura, a estrutura e o próprio conceito de revolução.
A soberania nacional é intocável, tanto como o direito das nações a sua autodeterminação. A soberania de uma nação não depende de quem esteja no governo. Ninguém tem o direito de intervir ou subverter o governo de uma nação alheia.
O bloqueio a Cuba é inaceitável, assim como as tentativas de derrubar a revolução, há seis décadas, sistemáticas e contínuas. Nunca pedimos uma intervenção estrangeira para colocar fim às ditaduras do Cone Sul, porque confiamos em que os povos devem decidir o seu futuro. Por isso, também não pedimos que regimes oprobriosos e genocidas (como o da Arábia Saudita, entre muitos outros) sejam derrubados com invasões militares.
Cuba tem o direito de ser deixada em paz, assim como acontece com todas as nações do mundo. Só dois países apoiam o bloqueio: Israel e os Estados Unidos.
A crise atual tem causas precisas. Em 2020, a economia registrou uma contração de 8,5%, segundo a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe. A indústria caiu 11,2% e o agro, 12%. A crise do turismo é tremenda e repercute em toda a sociedade. Em 2019, Cuba recebeu 4,2 milhões de turistas, em 2020, apenas 1,2 milhão. No primeiro semestre deste ano, só recebeu 122.000 turistas, segundo dados coletados pela jornalista chilena Francisca Guerrero.
O turismo é responsável por cerca de 10% do PIB, emprega 11% da população ativa e é a segunda fonte de divisas. A escassez de divisas cria enormes dificuldades para a importação de alimentos: Cuba precisa importar 70% dos alimentos que consome, enquanto os preços internacionais aumentaram 40% em um ano.
O chamado ordenamento cambial, que eliminou as taxas diferenciadas com as quais se trocavam os pesos cubanos por dólares, decidido em janeiro, ainda que necessário e desejável, chegou tarde e em um momento de aguda escassez de dólares. O certo é que a população tem grandes dificuldades para ter acesso a bens básicos.
Inflação e apagões são o corolário de velhos problemas nunca resolvidos (como a deterioração das infraestruturas) e de improvisações na aplicação de mudanças amplamente postergadas.
O bloqueio é um grande problema para Cuba. Mas nem todos os seus problemas podem se reduzir ao bloqueio. Um problema sobre o qual não se quer falar, não só em Cuba, é o da revolução como problema. Ou seja, do Estado como alavanca para um mundo novo.
Acreditávamos que a revolução era a solução para os males do capitalismo. Não foi. Talvez a maior obra das revoluções tenha sido impelir o capitalismo a se reformar, aparando durante certo tempo suas arestas mais extremas, aquelas que confiam tudo ao mantra do mercado autorregulador, que leva milhões à pobreza e ao desespero.
Revolução sempre foi sinônimo de conquista do Estado, como ferramenta para caminhar para o socialismo. Originalmente, o socialismo deveria ser, nem mais e nem menos, o poder dos trabalhadores para superar a alienação que supõe a separação entre os produtores e o produto de seu trabalho. No entanto, socialismo se tornou sinônimo de concentração dos meios de produção e de mudança no Estado, controlado por uma burocracia que, em todos os casos, veio a ser uma nova classe dominante, quase sempre ineficaz e corrupta.
O pensamento crítico se submeteu a esta nova burguesia ou, caso se prefira chamar, a essa casta burocrática que, não sendo proprietária, tem a capacidade de gerir os meios de produção a seu bel-prazer, sem prestar contas a não ser a outros burocratas, sem que os trabalhadores, privados de formas de organização e de expressão autônomas, possam incidir nas decisões.
Sem liberdades democráticas, os Estados socialistas (contradição semântica evidente) se tornaram Estados autocráticos e totalitários, não muito diferentes das ditaduras que sofremos e das democracias que não nos permitem escolher o modelo econômico que nos governa, mas apenas representantes ungidos graças às caríssimas campanhas publicitárias.
As revoluções socialistas e de libertação nacional, e mesmo os movimentos emancipatórios, autodestroem-se nos muros de sustentação dos Estados ao se institucionalizarem e perderem o seu caráter transgressor e de superação do estado atual das coisas; ao relegitimarem um sistema-mundo que pretendiam ultrapassar, ao transmutarem, pela via institucional, a potência rebelde das classes populares em impulso de conversão dos burocratas em novos opressores.
Como argumentaram Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein, e agora Abdullah Öcalan, o Estado-nação é a forma de poder própria da civilização capitalista. Portanto, diz o líder curdo, a luta antiestatal é mais importante que a luta de classes, e isto não tem nada a ver com o anarquismo, mas com a experiência de mais de um século de socialismo. É revolucionário o trabalhador que resiste a ser proletário, que luta contra o status de trabalhador, porque essa luta visa superar e não reproduzir o sistema atual.
Para fazer política centrada no Estado, as categorias de hegemonia e homogeneidade são centrais. A primeira é uma forma de dominação, sem mais, ainda que o progressismo e a esquerda acreditem que ela supera o leninismo. A segunda é uma pretensão daqueles que, de cima, querem conduzir os povos debaixo de seus narizes.
Com o patriarcado e o colonialismo interno fendidos, hoje, é impossível uma sociedade homogênea, porque as mulheres, os jovens e todos os tipos de dissidências (das culturais às sexuais) rejeitam o achatamento das diferenças e diversidades.
Impor uma homogeneidade com base na hegemonia é uma aposta no autoritarismo, seja por meio do mercado ou do partido de Estado. A forma ideal de dominação é aquela que se apresenta como democrática (simplesmente porque há eleições), mas aprisiona a população em um modelo econômico que fragiliza sua própria vida.
A revolução socialista é questão do passado, não é o futuro da humanidade. Tampouco o capitalismo. O binarismo capitalismo/socialismo já não funciona como organizador e ordenador dos conflitos sociais.
Enquanto as esquerdas seguem prisioneiras de sua visão estadocêntrica, os setores mais ativos e criativos das sociedades latino-americanas (feministas, povos originários, jovens críticos) não se referenciam mais em Cuba, como fez a minha geração, mas em lutas concretas como as revoltas chilena ou colombiana, no zapatismo e nos mapuches, em ritmos de rap e em sonhos de liberdade impossíveis na Nicarágua de Ortega e na Cuba do Partido, na Colômbia dos paramilitares ou no Brasil de Bolsonaro.
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A revolução como problema. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU