31 Mai 2021
A diretora executiva do Centro Nacional para a Verdade e a Reconciliação fala sobre a dor da Primeira Nação: tantas crianças desaparecidas, os mortos poderiam ser 6.000.
Stephanie Scott é a primeira mulher indígena a chefiar o Centro Nacional para a Verdade e a Reconciliação (NCTR) e é a tutora do imenso arquivo de testemunhos, fotos e outros documentos que lançam luz sobre os horríveis abusos cometidos nas “escolas residenciais”, geridas pelas Igrejas Cristãs. O seu primeiro comentário foi como mãe, avó e tia: “Aquelas pobres crianças! Como se pode fazer isso a crianças?”. Depois, pede à Igreja Católica um passo em frente: “Um pedido de desculpas ajudaria os sobreviventes e as suas famílias a iniciar a jornada de reconciliação. Sem verdade não podemos ter reconciliação. As desculpas simplesmente reconhecem a verdade”.
A entrevista é de Sara Gandolfi, publicada por Corriere dela Sera, 30-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma ferida ainda aberta?
A perda das crianças é insondável e nossos corações estão realmente pesados. Esta manhã eu estava conversando com minha filha sobre o que aconteceu e ela estava chorando. Nosso Ancião, que é um sobrevivente, também disse: ‘Quantos mais existem?’ Essa é a violência infligida aos povos indígenas e nunca devemos esquecer essa história, a verdade ainda está sendo revelada e o trauma do sistema ainda está muito vivo hoje. 215 crianças ocupam quase 7 salas de aula. Antes mesmo de o NCTR falar sobre isso publicamente, realizamos uma cerimônia como um primeiro passo para compreender e reconhecer seus espíritos. Fizemos um fogo sagrado, erguemos os cachimbos sagrados e fizemos uma festa enquanto colocávamos o tabaco. Nossos anciãos disseram que tínhamos que realizar uma cerimônia antes de falar com a mídia e foi o que fizemos. Honramos as crianças para todas as famílias, nações e sobreviventes que foram atingidos por esse sistema. O Canadá e seus cidadãos devem se levantar e agir para corrigir esses erros. Como as notícias daquelas vidas perdidas revelaram a verdade, não se pode mais negar que o sistema escolar residencial foi responsável pela morte de milhares de crianças e o número continuará a crescer à medida que continuamos a fazer buscas e trabalhar com a comunidade para encontrar aquelas crianças. O registro comemorativo nacional do NCTR lista crianças que morreram na escola residencial.
Vocês não esperavam esta última descoberta na escola Kamloops?
Infelizmente, as comunidades indígenas em nosso país tiveram experiências semelhantes com crianças que nunca voltaram para casa da escola residencial. A Comissão para a Verdade e a Reconciliação emitiu 6 apelos à ação separadas em relação a crianças desaparecidas e informações sobre suas sepulturas (CTA 71-76). O trabalho a ser feito é enorme, pois as mortes e identidades das crianças nem sempre são encontradas nos registros, mas sabíamos que as verdades sobre os entes queridos desaparecidos logo seriam confirmadas com o avanço da tecnologia. Esta é uma das mais de 140 escolas em todo o país, muitas das quais têm lugares de sepultura não identificados.
Pelo que vocês sabem, quantas crianças das Primeiras Nações morreram naquelas escolas?
Com base na pesquisa da Comissão para a Verdade e a Reconciliação, confirmamos a identidade de 4117 crianças mortas. O desafio com este importante trabalho é que a manutenção de registros para essas escolas não estava no mesmo nível que os padrões atuais, nem era coerente. Estamos nos estágios iniciais de um segundo projeto de pesquisa e esperamos que esse número cresça muito. O ex-presidente do NTRC, o deputado Murray Sinclair, estimou certa vez que o número de mortes confirmadas poderia chegar a 6.000.
Como as crianças da escola Kamloops teriam morrido?
É difícil especular sobre as mortes daquelas crianças com as informações disponíveis atualmente. Há muito trabalho a ser feito para determinar quem eles eram e entender o que levou a esse número devastador de mortes. O que sabemos é que as causas são variadas. Registros de outras escolas mencionam acidentes ou doenças graves, especialmente tuberculose. Essas escolas não estavam equipadas para fornecer nem mesmo os cuidados de saúde mais rudimentares. Também sabemos de muitas crianças que morreram tentando fugir.
Os abusos eram sistemáticos nas escolas residenciais canadenses?
Sim, as escolas funcionam desde antes de o Canadá se tornar um estado e a última fechar apenas em 1996. Infelizmente, ouvimos vários testemunhos de sobreviventes que sofreram danos emocionais, físicos e sexuais enquanto frequentavam essas escolas.
O governo canadense pediu desculpas. O Papa Francisco não. O que pensa a respeito?
É importante para a Reconciliação que a contribuição de todos para o sistema escolar residencial seja reconhecida. A Igreja Católica desempenhou um papel enorme no legado da escola residencial e um pedido de desculpas ajudaria os sobreviventes e suas famílias a iniciar a jornada de reconciliação. Sem a verdade não podemos ter reconciliação. As desculpas simplesmente reconhecem a verdade.
Você pediu ao governo de Ottawa que construísse monumentos em todo o Canadá para homenagear os sobreviventes de escolas residenciais. Por que é tão importante para as Primeiras Nações?
É importante reconhecer o passado. As 215 crianças encontradas lembram que 215 crianças não tiveram um funeral adequado, nem suas famílias puderam se despedir delas. As famílias agora sentem a necessidade de prestar homenagem. Isso se expressará de muitas maneiras e o monumento poderia ser uma dessas formas de lembrar.
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Canadá. “As desculpas do Papa ajudariam os sobreviventes a iniciar a jornada de reconciliação” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU