21 Mai 2021
A filosofia de Franco Berardi – teórico e ativista emblemático do movimento insurrecional italiano de 68, melhor conhecido como “Bifo” – é incendiária. Um pensamento que por sua pretensão em falar das coisas enquanto acontecem, às vezes, coloca-o em perigo de pecar como filósofo-pitonisa ou agoureiro.
Diz que é necessário desacelerar e pensar. Parafraseia Marx na contramão: pede para que voltemos a interpretar o mundo, antes de transformá-lo. Exercer a crítica é, segundo Bifo, um desafio em tempos em que a informação caminha mais rápida do que a capacidade de processá-la. Faz tempo que se preocupa com os modos como a aceleração informática está mudando a sensibilidade e a capacidade de deliberação.
Em La segunda venida. Neorreaccionarios, guerra civil global y el día después del Apocalipsis, livro que Caja Negra acaba de publicar na Argentina, ainda que fale do fim do mundo, em um sentido mais ou menos metafórico, também se pergunta se é possível mudá-lo para melhor. A convivência e a empatia ainda são viáveis, em um contexto de guerra civil global, de efervescência neofacista, e diante do que Berardi chama de “apagão da sensibilidade”, uma onda de “idiotice propagada pelo mundo” em forma de “rebeldia contra a ciência e a razão”?
O contexto que descreve é o da queda da “ilusão neoliberal” que arrasta para “uma obsessão com a política identitária” (os neonacionalismos, os racismos). “Como podemos pensar em recompor um corpo tão desagregado, uma mente tão medrosa?”, pergunta-se Berardi.
Nos anos 1970, Berardi participou da criação da rádio pirata Alice, uma das mais famosas experiências europeias de comunicação cooperativa. Em fins dos anos 1970, foi preso, no contexto das perseguições contra militantes da autonomia operária, a rádio foi fechada e Bifo acabou exilado em Paris, onde se ligou a Félix Guattari e Michel Foucault.
Durante os anos 1980, viveu nos Estados Unidos, começou a pesquisar sobre o cyberpunk. Em 2002, fundou a Orfeo TV, a primeira televisão comunitária italiana. Hoje, trabalha como professor no Instituto Aldini Valeriani, em Bolonha.
La segunda venida é a aventura de um diagnóstico. E também um manual de instruções para lidar com um mundo zumbi, que Berardi descreve como o exército de autômatos – que somos todxs – sem tempo e capacidades cognitivas suficientes para elaborar a complexidade do mundo contemporâneo.
Berardi tem 68 anos e neste livro relata que vive no mesmo bairro onde vivia, há 50 anos, quando era estudante. “Praticamente, nada mudou na paisagem, exceto os estudantes. Eu os vejo de minha janela: solitários, olhando as telas de seus smartphones, correndo para não chegar atrasado na sala, voltando com rostos tristes aos quartos caros alugados por suas famílias. Sinto sua melancolia, sinto a agressividade latente em sua depressão. Sei que essa agressividade pode brotar e se expressar sob o estandarte do fascismo. Não do velho fascismo que explodiu da energia futurista, mas do novo fascismo que resulta da implosão do desejo, da tentativa de manter sob controle o pânico e a raiva depressiva da impotência”.
A entrevista é de Dolores Curia, publicada por Página/12, 17-05-2021. A tradução é do Cepat.
Sem dúvida, a citação anterior leva à questão: Não há nessas formas de conexão – por sua globalidade, por sua velocidade – possibilidades emancipatórias?
Claro que sim. Claro que há enormes potencialidades de emancipação, tanto nos meios digitais como no progresso técnico em geral. Mas a transformação técnica e midiática implica uma mutação antropológica, e particularmente psíquica, que precisamos avaliar.
Certamente, eu perco muito do potencial da nova tecnosfera, mas a geração que mais sofre é a nova. Há toda uma literatura (penso no livro de Jean Twenge sobre a geração hiperconectada, por exemplo) que mostra como a mutação conectiva está produzindo uma onda de psicopatia que atinge, sobretudo, a geração que aprendeu a dizer mais palavras graças a uma máquina que à voz da mãe.
Disse que não resta alternativa à humanidade: comunismo ou extinção. Pede para que nos preparemos para quando acontecer o imprevisto, a irrupção de um neocomunismo que pouco tem a ver com o de 1917. Contudo, não diz como chegaremos a ele...
Marx disse, não me lembro quando, que não estava interessado em escrever receitas para o restaurante do futuro. E, de fato, não é possível encontrar uma descrição utópica do futuro comunista em sua obra. Por quê? Porque o comunismo não é um estado futuro, é a tendência possível. Não a necessária - cuidado -, a possível.
Hoje, no buraco negro que vai se revelando com a pandemia, e sobretudo após quarenta anos de devastação sistemática de tipo nazi-liberal, parece-me que a perspectiva mais provável é um processo caótico de autodestruição do gênero humano. Mas também vejo uma tendência à formação de comunidades igualitárias e frugais.
Igualdade e frugalidade são os caracteres essenciais do comunismo possível e urgente (mas em nível majoritário, não muito provável). Frugalidade não significa sacrifício, nem pobreza. Ao contrário, significa uma relação concreta com o útil. Uma autonomia na relação de intercâmbio abstrato de valor, e autoprodução comunitária do concreto útil.
Não há uma terceira alternativa. Ou a frugalidade igualitária ou a barbárie desencadeada, a violência totalitária, a guerra global, a devastação mortífera. Comunismo ou extinção.
Sobre o conceito de consciência de classe hoje: ainda existe? Onde reside, atualmente, a consciência de classe? Que formas assume?
“Consciência de classe” é um conceito que precisamos especificar. O que é? O efeito intelectual da pertença a uma classe social? Um efeito determinista? A possibilidade de compartilhar formas de pensamento, de comportamento? Não sei. Eu prefiro pensar em termos de composição de classe para me referir à estrutura material do trabalho e da sociedade, e de subjetivação para me referir ao processo de formação de um movimento fundado sobre a condição material, mas carregado de inconsciência, de mitologias comuns, de imaginação, de desejo.
Temos que pesquisar mais o inconsciente coletivo que a consciência de classe. O processo de subjetivação contemporânea é o resultado de uma longa época de agressão midiática ao cérebro coletivo, de desagregação do trabalho, de concorrência entre trabalhadores, provocada pela precariedade e, como se fosse pouco, o resultado de um longo tempo de isolamento, de distanciamento.
A pandemia produziu uma desaceleração do fluxo de informação e estimulação permanente, ao menos durante o primeiro momento. É possível falar em uma desaceleração hoje, um ano depois?
A deflação do ritmo cognitivo, psíquico e social é um aspecto que se manifestou claramente no início da pandemia, mas que depois não desapareceu mais. A maioria dos trabalhadores, e sobretudo das trabalhadoras, não conseguiu relaxar muito na fase pandêmica. Apesar do perigo de contágio, foram obrigados e obrigadas a continuar com o seu trabalho.
O ‘efeito deflação’ continua sendo dominante na mente coletiva, não só porque existem muitas coisas que não podem ser feitas, mas sobretudo porque as expectativas da época neoliberal (crescimento constante, competência ininterrupta, mitologia da energia competitiva e agressiva, mitologias publicitárias) se viram dissolvidas.
Acredito que a euforia agressiva produzia pela ideologia neoliberal não voltará. Só pode retornar a tristeza agressiva, a raiva depressiva que se manifesta como histeria da liberdade individualista. A força da direita, hoje, funda-se nesta tristeza: o fascismo como reação histérica à depressão.
Falando em subjetivação contemporânea e mitologias..., o filósofo francês Jacques Rancière disse que houve exagero em relação ao efeito das 'fake news' e que estas não representam necessariamente um engano. Disse: “Não acredito que as pessoas que aderem às teorias conspiratórias tenham sido enganadas. Aderem porque concordam, seu problema não é se é verdade ou não, mas se gostam ou não”. Qual é a sua opinião?
Concordo. A noção de fake news está vazia. Sempre houve notícias falsas no discurso público. Hoje, há muitas mais porque o volume de informação se ampliou. O que mudou não é a falsidade do discurso: há uma crise da mente crítica.
A crítica não é uma faculdade natural da mente humana, manifesta-se quando a comunicação pública se torna comunicação escrita. A crítica se torna uma modalidade do discurso público quando uma parte ampla da população pode ler e reler textos escritos. A crítica precisa do ritmo da comunicação.
Quando o ritmo da comunicação se acelera até o rumor alvo, a mente perde sua capacidade de distinguir entre o verdadeiro e o falso. Não podemos contar muito com a mente crítica. No futuro, a capacidade crítica terá desaparecido da mente humana, será privilégio apenas de uma minoria que possa ler e se abstrair do rumor.
Então, como podemos pensar em produzir efeitos de solidariedade, de emancipação, se não há crítica?
Este é o ponto... No passado, a mente crítica era a condição da subjetivação progressiva e solidária. Hoje, acredito que apenas a sensibilidade pode ser, um tipo de sentimento muito mais sutil, que não concerne à razão, que sobretudo concerne à emoção, ao sofrimento, ao prazer.
Por isso, parece-me que a comunicação política precisa se transformar em comunicação essencialmente estética, em um sentido mais amplo da dimensão da arte. Estética não é apenas a faculdade de entendimento da arte, é também a faculdade de entendimento da percepção psíquica, da dor, do desejo...
Há uma sensação de que a rebeldia e a irreverência se tornaram de direita e que a esquerda ficou ligada ao politicamente correto. Ou, como é dito por aí, que as esquerdas não aprenderam a fazer memes. Como você enxerga esta questão?
Não concordo! Pelo contrário, nos últimos cinquenta anos, do Maio Francês ao black power, do Movimento Antiglobalização ao Occupy Wall Street, os memes mais poderosos e mais significativos foram produto do progressismo. A direita não é mais inventiva, nem mais inteligente.
Contudo, não avalia que existe algo na forma de convocar que está falhando?
Penso que hoje a direita pode fundar sua comunicação sobre uma verdade profunda que a esquerda não sabe interpretar: a impotência, a agressividade que nasce da impotência. A direita fala diretamente do sofrimento dos homens brancos envelhecidos, e dos homens brancos que são jovens, mas que estão deprimidos e furiosos por sua impotência política, psíquica e sexual. Não fala de maneira sincera, naturalmente. Fala dos impotentes exaltando a potência infinita da raça, da violência, do trabalho, da concorrência.
A esquerda segue repetindo palavras cada vez mais vazias sobre a democracia. A democracia está morta, é um ritual ineficaz cooptado por automatismos técnicos e financeiros. É um ritual inútil porque as condições de formação do pensamento coletivo e da decisão coletiva são manipuladas pelo predomínio mediático do capital.
A democracia é uma condição política muito boa e favorável ao progresso social, quando há força cultural para impor os interesses dos explorados. É uma metodologia. A esquerda transformou a democracia em um valor. E a democracia não é um valor, é uma condição de possibilidade. E agora esta condição foi destroçada.
Em ‘La segunda venida’, escreveu que, “nos anos 1960, os partidos de esquerda e os sindicatos viram na tecnologia um perigo, em vez de uma oportunidade a ser assumida em favor do interesse da sociedade”. Qual é a situação atual deste problema?
O movimento operário e progressista percebeu as tecnologias conectivas como um perigo. Elas eram, mas ao mesmo tempo também eram a condição para entender a nova composição social. Agora, é tarde demais para isso, porque as novas tecnologias já se consolidaram como infraestruturas de um poder transpolítico. A força e a própria pertinência da política se dissolveram.
Hoje, o problema da subjetividade social se mede em termos psicanalíticos, não políticos. Não existirá no futuro o objetivo de governar o conjunto da sociedade. O foco estará no problema de proteger comunidades autônomas, capazes de viver em condições de isolamento, mas, ao mesmo tempo, capazes de interagir em condições de autossuficiência alimentar, educacional, tecnológica.
Também disse que a humilhação, como conceito, não foi suficientemente abordada pela teoria política. Por que é crucial hoje? Como fazer para oferecer aos humilhados outras rotas de fuga que não sejam o fascismo?
Günther Anders, um judeu da Alemanha que se casou com Hannah Arendt, foi o pensador que melhor compreendeu esses temas da humilhação como efeitos da onipotência dos automatismos técnicos e como causas do fascismo.
Nos anos 1960, sob o influxo do que ocorreu em Hiroshima e da proliferação das armas nucleares, Anders publicou um livro intitulado Die Antiquiert der Menschen. Nele, diz que os homens percebem a onipotência da máquina (que é um produto da inteligência humana) como algo que supera e aniquila a própria inteligência humana.
Existe aí um núcleo profundo da humilhação como conceito político. Hoje, devemos acrescentar à intuição de Anders uma nova dimensão da humilhação masculina: a impotência psíquica e sexual ligada ao envelhecimento da população branca no planeta.
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“Há uma crise da mente crítica”. Entrevista com Franco “Bifo” Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU