04 Mai 2021
"Não se desfigura um grande documento como a Amoris laetitia para defender um pequeno “responsum”. Não é bonito para quem o faz, nem para quem o publica".
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 30-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Estamos há cerca de um mês no ano dedicado à Amoris laetitia, a cinco anos da sua publicação. Por isso, é ainda mais surpreendente que a referência a essa importante exortação apostólica de 2016 possa ser utilizada em defesa do texto do “responsum” do dia 15 de março de 2021.
De tal modo, com um efeito um tanto paradoxal, um grande texto, que inaugura um novo paradigma de magistério familiar, é reduzido aos termos mínimos e desfigurado, para defender um pequeno texto, que condena a bênção dos casais homossexuais.
Como a questão é particularmente grave e põe em jogo não apenas quem escreveu o texto, mas também o renomado jornal que o publicou, gostaria, primeiro, de examinar o texto com as suas argumentações, para depois ilustrar os seus graves limites, restituindo à Amoris laetitia o seu verdadeiro valor.
O artigo repete, de modo muito clássico, dois argumentos que pertencem à tradição católica do último século e que têm sido usados para todas as situações mais ou menos “desviantes”. É preciso dizer, porém, que Cozzoli estrutura o discurso como se as críticas ao responsum tivessem se manifestado como “em contraste com a Amoris laetitia”. Na realidade, não me parece que seja assim. Que eu saiba, muitas críticas ao responsum nascem sobre uma base totalmente diferente e sem referência direta à Amoris laetitia. Portanto, a estruturação do discurso já é bastante unilateral, pois visa a demonstrar que os argumentos fundamentais que inspiram o responsum se encontram, tais e quais, na Amoris laetitia. Em particular, os dois “argumentos” seriam o conceito de “amor” e o conceito de “misericórdia”.
Para Cozzoli, uma definição de amor “segundo o desígnio de Deus” é incompatível não com a amizade homossexual, mas com a sexualidade homossexual, enquanto a misericórdia não teria sentido sem a verdade, e a verdade sobre a relação homossexual seria, precisamente, a do pecado. Com uma série de “recortes” da Amoris laetitia, muitos dos quais totalmente fora do contexto, Cozzoli faz com que a Amoris laetitia repita, em pé de igualdade, o mais clássico dos catecismos.
De fato, não se sai de uma sobreposição entre casal homossexual e matrimônio que impede toda forma de apreciação do “bem possível” e, portanto, também de toda bênção. Precisamente o conceito-chave com o qual a Amoris laetitia sai do canto do ringue, no qual Cozzoli parece se encontrar tão bem, nunca é citado pelo autor.
Alguns lugares-comuns da tradição moral sobre a sexualidade, sobre o matrimônio e sobre a homossexualidade são repetidos como se tivessem sido aprendidos com a Amoris laetitia. Na realidade, são o fruto de uma compreensão que, já há algumas décadas, é inadequada para dar conta da realidade sexual, matrimonial e homossexual, tal como ela existe “in re”. Uma teologia moral que usa o conceito de amor, de natureza, de misericórdia de modo tão abstrato, com uma teologia de escritório e não de rua, inevitavelmente acaba interpretando gravemente mal a maior tentativa de releitura que a Igreja conheceu nas últimas décadas.
Deve-se acrescentar que a Amoris laetitia não é apenas o fruto do magistério de Francisco, mas também o ponto de chegada de um complexo caminho sinodal, no qual foram elaboradas laboriosamente “mediações preciosas”, que no artigo de Cozzoli são ou desconsideradas ou até invertidas.
De forma totalmente surpreendente, tanto mais por vir de um moralista, soa a citação de AL 300, que é um texto que garante a abertura ao “bem possível” e que Cozzoli, ao invés disso, utiliza para excluir todo outro bem que não seja o máximo. Porque este continua sendo o ponto-chave do debate em torno do responsum. A bênção de casais homossexuais não é a equiparação entre hetero e homossexualidade, mas sim a possibilidade de que a Igreja possa reconhecer um “bem possível” também em formas estáveis de relação homossexual. No horizonte de Cozzoli, isso entra apenas como “relação amical”. Aqui existe ao mesmo tempo um defeito de realidade e um defeito de teologia. E o resultado é que – diante do cardeal Schönborn, que, no rastro da Amoris laetitia, recordava que a Igreja, além de “magistra”, é também sempre “mater” – Cozzoli reivindica, não sei com qual relação com a Amoris laetitia, que a Igreja, além de mãe, continua sendo sempre mestra.
No entanto, para além da questão específica, na qual, de fato, Cozzoli nem sequer entra, parece-me realmente surpreendente que um teólogo moralista – e, na verdade, também para o L’Osservatore Romano – possa falar da Amoris laetitia esquecendo que, entre outras coisas, esse documento dá início a dois grandes fatores de novidade no magistério familiar, matrimonial e afetivo do catolicismo, e o faz com a coragem não só do Papa Francisco, mas também de duas assembleias sinodais:
1) expressa uma importante autocrítica de um estilo do magistério matrimonial que, no último século e meio, monopolizou inoportunamente o discurso católico e se iludiu de que podia deduzir ou da natureza ou da lei uma “ordem imutável” no nível pessoal e social;
2) desenvolve com grande coerência uma leitura “processual” do amor e das formas de vida familiar, saindo de todo imediatismo natural ou institucional. A ideia de que cada casal “caminha rumo ao ideal” que não tem “atrás de si”, mas “à sua frente”, permite uma grande releitura dos seus “bens”.
Em tudo isso, há coragem: coragem para fazer as contas com a realidade e coragem para traduzir a tradição. Creio que, se não se tem a coragem de entrar nessas duas perspectivas de profunda renovação pastoral e eclesial, seria melhor evitar a referência à Amoris laetitia.
O que o Prof. Cozzoli escreveu podia ser argumentado simplesmente citando o Catecismo da Igreja Católica. Reduzir a Amoris laetitia a uma versão catequética é cometer uma injustiça com o texto que devemos celebrar neste ano.
Vice-versa, se lermos a Amoris laetitia de modo completo, damo-nos conta de que algumas das proposições do Catecismo da Igreja Católica – como já aconteceu sobre a pena de morte, a guerra e agora também sobre a homossexualidade e a sexualidade – merecem uma adequada correção. Não se desfigura um grande documento para defender um pequeno responsum. Não é bonito para quem o faz, nem para quem o publica.
Assim, para restituir o tom do grande texto, do qual o artigo de Cozzoli propõe uma colagem infelizmente sem estilo e com pouca fidelidade, é suficiente citar uma das últimas frases inesquecíveis:
“Como recordamos várias vezes (...), nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada de uma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (...) Mas contemplar a plenitude que ainda não alcançamos permite-nos também relativizar o percurso histórico que estamos fazendo como família, para deixar de pretender das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo. Além disso, impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade” (AL 325).
Como o Prof. Cozzoli conseguiu se esquecer completamente dessa perspectiva, tão qualificadora para a Amoris laetitia, e que poderia sugerir respostas muito mais ricas e promissoras não apenas para os teólogos ou jornalistas, mas também para os pastores e os oficiais da Cúria?
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Uma Amoris laetitia irreconhecível. A infeliz defesa do “responsum” no L’Osservatore Romano. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU