30 Abril 2021
“Esta fusão e confusão de Religião e Evangelho tem sido muito mais complicada pelo fato, perfeitamente compreensível, do 'desequilíbrio social' que, de fato e inevitavelmente, existe e se dá entre a Religião e o Evangelho. A religião dá dinheiro, poder, importância, influência e exige submissão. Enquanto o Evangelho se baseia no despojamento e exige proximidade para a identificação com os pobres, os marginalizados, e despoja o discípulo que assume, como projeto de vida, o seguimento de Jesus”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 29-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A crise religiosa, que cresce sem parar, sobretudo nos países mais industrializados (os mais ricos), está se manifestando não apenas no abandono de práticas religiosas, mas sobretudo no ápice e origem de tais práticas: o próprio Deus. Mas, como se fazer “ateu” descaradamente é assumir uma postura malvista, para amplos setores da opinião pública, os “sabichões” em assuntos de religião buscam escapatórias, que podem vir estupendamente para maquiar suas posições ambíguas de abandono ou inclusive de negação de Deus. Um exemplo – talvez pertinente neste assunto delicado – pode ser o recente livro de Roger Lenaers, “Depois de Deus, outro modelo é possível?”.
Os que pensam desta maneira (ou se aproximam dela) deveriam começar pensando que a totalidade da realidade não se esgota no “imanente”. O cristianismo baseou sua existência precisamente na aceitação de que o “transcendente” é absolutamente imprescindível para que seja possível a totalidade da realidade. Por isto precisamente, quando o Evangelho afirma: “Ninguém jamais viu a Deus; quem nos revelou Deus foi o Filho único” (Jo 1, 18), na base e fundo desta afirmação, o que na realidade se diz é que, se não aceitas a “transcendência”, o que não aceitas é o Evangelho. Isso é, o que não aceitas é o cristianismo.
O ensinamento de Jesus a seus apóstolos foi firme e claro neste sentido, segundo a resposta que o mesmo Jesus deu a Felipe: “O que me vê está vendo Deus” (Jo 14, 9). O que Felipe estava vendo? Um homem condenado à morte. Porque era um homem considerado muito perigoso para o templo (“tópos” = “lugar santo”, cf. Bauer-Aland, col. 1693), uma ameaça para os sacerdotes e para a Religião. O que, na realidade, nos vem a dizer que a Religião não suporta o Evangelho. Um homem bom, Jesus, que nem Pilatos quis matar, enquanto que os profissionais do “sagrado” o insultaram até em sua agonia (Mt 27, 38-44 par.). Porque, para eles, Jesus (com seu Evangelho) foi um “delinquente executado” (G. Theissen).
Pois a “conduta” (“erga” = “obras”) (Mt 11,2) de Jesus desconcertou inclusive João Batista. A Religião se desconcertou diante do Evangelho. Vamos superar o medo! Perguntemo-nos: cremos no Deus da Religião? Cremos no Deus do Evangelho? O Deus do Evangelho se conhece “nas obras” (“ta êrga”) de Jesus (Jo 5, 20; 9, 3; 10, 25. 32. 37): “Se não crês em mim, creia em minhas obras”. Isso é, “creia na minha conduta”. Que conduta? Dar vida, ao paralítico, ao cego, ao defunto, ao pobre, ao desamparado... É uma conduta para os demais. Ainda mais para os mais necessitados.
No caso da religião, é exatamente o contrário. Porque não é um comportamento essencialmente “para os outros”, mas um comportamento, sobretudo, “para si mesmo”: é submissão, obediência, observância exata, subordinação “aos superiores invisíveis” (Walter Burkert). E tudo isso para quê? Para se libertar dos sentimentos de culpa, para conseguir o que se deseja, para obter sorte, triunfo e glória.
Ora, dado que existem estas duas formas de relação com Deus, “para si” e “para os outros”, o enorme problema que nos é colocado é que a Igreja, dos séculos I ao IV, viveu e se comportou de tal maneira que, tendo a sua origem em Jesus e no seu Evangelho, acabou por fundir, numa difícil e estranha unidade, o que, na “teologia narrativa” dos Evangelhos nos é mostrada, é vista e palpada como o confronto mortal entre a Religião e o Evangelho.
Mas esta fusão e confusão de Religião e Evangelho tem sido muito mais complicada pelo fato, perfeitamente compreensível, do “desequilíbrio social” que, de fato e inevitavelmente, existe e se dá entre a Religião e o Evangelho. A religião dá dinheiro, poder, importância, influência e exige submissão. Enquanto o Evangelho se baseia no despojamento e exige proximidade para a identificação com os pobres, os marginalizados, e despoja o discípulo que assume, como projeto de vida, o “seguimento de Jesus”.
Segundo os Evangelhos, Jesus nunca pretendeu fundir seu Evangelho com a religião do templo e dos sacerdotes. O clero que governa a Igreja modificou o projeto do Evangelho de Jesus. E são os sacerdotes, de seus templos, que leem e explicam o Evangelho como lhes convém ou não complica suas vidas. É o que é melhor para a religião. E o que explica por que existem tantas pessoas tão religiosas, que estão tão distantes do Evangelho.
A questão que surge desta situação é inevitável: acreditamos em Deus? Em que Deus acreditamos?
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O clero que governa a Igreja modificou o projeto do Evangelho de Jesus. Artigo de José M. Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU