22 Abril 2021
''Quem não tem fé duvida de Deus. Quem acredita, duvida de si mesmo''. Entrevista com Paolo Ricca
Abade emérito da Trapa do Mont-des-Cats (Norte) e presidente da Fundação dos Mosteiros, dom Guillaume Jedrzejczak passou por duas crises de fé. Ele testemunha esta grande aventura que é a jornada espiritual.
A entrevista é de Anne-Laure Filhol, publicada por La Vie, 30-03-2021. A tradução é de André Langer.
Guillaume Jedrzejczak nasceu em 1957 (com o primeiro nome Bernard), no Norte, em uma família de mineiros de origem polonesa. Em 1982, entrou na Abadia de Sainte-Marie du Mont-des-Cats, da qual foi abade entre 1997 e 2009.
Costuma-se dizer: “Eu tenho fé”, “Não tenho fé”. A fé é algo que se pode ter?
Uma primeira confusão seria considerar a fé como uma certeza absoluta, porque é dom e acolhida desse dom. Em sua dimensão humana, a fé é uma realidade dual: uma experiência e uma reflexão sobre essa experiência. Esta experiência pode ser para uns um encontro interior com Cristo, para outros uma provação ou mesmo um confronto com o absurdo da existência. A partir daí, nossos marcos mudam. Longe de ser uma resposta pronta, a fé é, portanto, uma outra forma de questionar a realidade e de se deixar questionar por ela.
Ou de questionar a existência de Deus nesta realidade?
Não, é exatamente o oposto! Deus não é tanto aquele que dá as respostas, mas aquele que faz as perguntas. A fé é uma abertura para um Outro, que surpreende nossa evidência de realidade. O homem de fé é aquele que não pode se satisfazer em tratar na planura das coisas, na cadeia de causalidades. Ele vê que tudo é muito mais complexo. E por isso não se pode dizer que se tem fé ou que não se tem. Em vez disso, é uma forma de ser, uma qualidade de ser. É por isso que acho que Deus provoca nossa inteligência! Ele nos força a pensar além do pensamento, além do pensável.
O que fazer com a dúvida?
A dúvida é constitutiva da fé. Visto que a fé não é nem certeza nem negação, ela se encontra entre as duas. A dúvida vai aprofundá-la continuamente e, assim, a fará crescer. Agora, existem dois tipos de dúvida. Por um lado, existe a dúvida positiva que me faz perceber que não compreendo: em vez de me encerrar nessa incompreensão, vou em frente, sempre procurando; para aqueles que receberam uma herança religiosa e veem um mundo interior vacilar, este é o momento em que a fé realmente se tornará sua.
Por outro lado, existe a dúvida negativa que encerra a existência no presente. Em vez de nos ajudar a buscar, ela elimina todas as pistas. É por isso que muitos, quando começam a duvidar, param. Na verdade, eles não estão realmente em dúvida, porque estão simplesmente banindo a hipótese de Deus de suas vidas.
A fé seria uma confiança?
Não, na verdade você precisa passar da confiança à fé. Confiar é acreditar em algo ou alguém que me provou que vale a pena. A confiança se apoia em evidências. Ter fé é acreditar no que não vemos, como diz a Carta aos Hebreus.
Crer que Deus, neste incompreensível, me leva a algum lugar. E é aí que começa a crise da fé... Porque a fé sempre supõe a crise, como uma desestabilização contínua de algo, que gostaria de avançar sobre os trilhos. Muitas vezes vemos a fé como uma instalação, como uma segurança, quando é acima de tudo uma aventura fora dos caminhos muito frequentados.
Essa crise pode ser conjugada no plural?
Algumas crises atingem a sensibilidade, ou a inteligência, ou mesmo a experiência. A primeira tem a ver com o fato de que não sinto nada quando disso teria necessidade. E se eu sentir novamente, a fé recomeça. Essa crise é muito positiva, pois me questiona sobre minha necessidade e me levará a um autoconhecimento mais profundo.
A crise intelectual pode surgir quando as descobertas científicas ou outras questões desafiam a minha visão de mundo. Não consigo mais me expressar de forma coerente. Isso perturba minha inteligência.
Finalmente, a crise da experiência pode ocorrer durante uma provação e abalar os alicerces da minha existência. Podemos então culpar a Deus, ou melhor, a imagem que tínhamos dele.
Os episódios de secura espiritual, acídia, de noite de fé para alguns, são necessários no e para o crescimento espiritual?
A cada um, sua própria aventura interior. Além disso, Deus quer uma história de amor e de amizade com cada um de nós, não uma relação de dependência, mas uma parceria, uma aliança. Isso supõe que não nos situemos mais naquilo que São Bernardo chama de atitude do “escravo”, mas em uma dimensão filial.
Com extraordinária sutileza, Deus nos acompanha em uma progressão, durante a qual podemos ter a impressão de que Ele está nos decepcionando. Mas Ele está realmente presente, mas não como seria de se esperar. Eu acredito que Ele coloca então as pessoas certas em nosso caminho, nos momentos certos. Ele nos proporciona viver acontecimentos especiais que, de fato, embora dolorosos, são os que nos eram necessários naquele momento. O que é surpreendente na vida interior é que quanto mais avançamos, mais Deus se esconde.
Como explicar isso?
Deus não está aí para preencher nossa necessidade e nossa sensibilidade! Muitas vezes vivemos em uma espécie de imaturidade, porque queremos que Ele faça tudo o que esperamos que Ele faça. Isso também é verdade para nossas outras relações humanas!
O que importa para Ele é que existimos. Todo o seu trabalho consiste em nos fazer nascer para nós mesmos, portanto, ajudar-nos a sair de nosso caos primordial e fusional, para que realmente nos tornemos quem somos. Mas não aceitamos isso facilmente. Com o tempo, descobrimos que nosso desejo por Deus muitas vezes não tem nada a ver com Ele.
Temos dificuldade em nos aproximar de Deus ou deixá-Lo se aproximar de nós?
Somos marcados pelo pecado original. Adão e Eva, depois de cometer o pecado original, se escondem de Deus. Passamos nossas vidas nos escondendo: dos outros, de nós mesmos e de Deus. Tendo perdido essa fé primordial, somos assolados pela dúvida e pelo medo.
Achamos que é a nossa relação com Deus que é difícil, mas quando Ele se revela, somos nós mesmos que nos vemos na verdade: assim que começa a haver luz, vemos o pó. Basicamente, o que nos assusta somos nós mesmos... mas preferimos colocar a culpa de tudo em Deus!
Como explicar o silêncio de Deus apesar de uma vida de oração fiel e sincera?
Segundo Santo Agostinho, se desejamos Deus é porque acreditamos. No entanto, a vida espiritual não consiste em preencher nossos vazios com respostas. Gregório de Nissa afirma que quanto mais se conhece a Deus, mais se deseja conhecê-lo. O silêncio de Deus é como uma aspiração ao profundo. Precisamos dele porque as respostas muitas vezes nos impedem de avançar. E diante de um drama, de uma provação, Deus não está mais silencioso do que antes. Em vez disso, é a nossa angústia que fala e invade o espaço.
Não existe um problema de linguagem entre Deus e nós?
Existe uma linguagem de Deus à qual somos mais ou menos sensíveis. Alguns percebem-no e outros não, porque não é o que eles esperam. Deus possui uma linguagem muito personalizada, adaptada a cada um de nós, mas também uma gramática universal que nos permite interpretá-la.
O acompanhamento espiritual, a lectio divina nos ensina a conhecê-Lo e reconhecê-Lo. Como cada um de nós é único, somos feitos sob medida. A fé personaliza infinitamente. A questão é que temos dificuldade em nos tornar uma pessoa. Preferimos fazer parte da massa.
Talvez a maturidade espiritual seja aquele momento em que aceitamos que é Deus quem está fazendo as perguntas e não nós. No Gênesis, Deus pergunta ao homem: “Onde você está?”. Esta é a verdadeira pergunta. Deus fica me perguntando onde estou, onde estou nisso. E então, ele me convida a ser uma pessoa em face dele. Sempre tendemos a transferir a responsabilidade para o outro. Ele me pergunta: “E você?”.
Você diz que Deus se esconde para nos deixar existir. Mas nós somos seres encarnados e precisamos sentir essa relação viva...
Ele está aí! A Eucaristia é um sacramento extraordinário. A liturgia, a Bíblia, os acontecimentos... Deus se aproxima de nós de muitas maneiras. Mas ele nunca se impõe. Ele se expõe.
E este é o nosso problema: seria muito mais fácil se Ele se impusesse de uma vez por todas! Mesmo para quem está passando por conversões radicais: uma coisa é viver esta experiência, outra é perdurar na conversão. Você pode acabar duvidando: “Não imaginei isso?”. Deus vai nos deixar com isso.
O que fazer em tempos de vazio?
Tomemos a imagem do surfista na onda. Se você resistir, você cai; se quiser ir pelo sentido contrário, você cai também. Gastamos nosso tempo nos opondo ao movimento da graça.
Pode-se descrever a vida interior por meio de duas imagens: a do mineiro que cava para encontrar o veio, ou a do surfista que deve se deixar levar, sem resistir. A vida espiritual é ao mesmo tempo fazer e se deixar fazer. Isso corresponde a momentos, a períodos e, às vezes, os dois se sobrepõem.
Você já duvidou da presença de Deus?
Muito, senão não estaria aqui! Apesar de tudo o que aconteceu, Deus ainda está me incomodando. Quanto mais avanço, menos compreendo, menos O conheço. Isso é o que é tão apaixonante! Ele me abriu novos horizontes, apesar de mim mesmo.
Você já teve crises?
Sim, várias, mas sobretudo duas, fundamentais. Quando eu era monge na Abadia de Sainte-Marie no Mont-des-Cats, fui enviado para um outro mosteiro. Eu me senti como se tivesse sido rejeitado e que tudo o que estava passando não fazia mais sentido. Foi psicológico e espiritual.
Eu me ressentia de Deus, porque até então tudo havia transcorrido de acordo com minhas expectativas. Depois de alguns meses, escrevi uma carta ao meu abade para compartilhar meu sentimento de que tudo estava desmoronando em minha vida. Ele me respondeu: “Sobretudo, não reconstrua!”. Este colapso era necessário.
A segunda grande crise veio anos depois, quando eu era abade. Descobrindo a comunidade por dentro e me descobrindo a mim mesmo, percebi que tudo estava por um fio. Então surgiu em mim uma angústia com relação ao futuro, uma profunda incompreensão.
Eu caí pouco a pouco na noite interior. Isso aprofundou minha fé. Um dia tive que me deixar levar e aceitar que não era eu quem estava com as rédeas na mão, mas Deus. Nestes momentos, não devemos mais pensar, mas simplesmente continuar.
Do ponto de vista da sociedade, a fé ainda tem seu lugar na França?
Existem vestígios extraordinários do Evangelho deixados na memória coletiva hoje. Les restos du cœur [Os restaurantes do coração. É uma instituição de caridade francesa, cuja principal atividade é distribuir pacotes de alimentos e refeições quentes para os necessitados. A associação não visa apenas os sem-teto, mas também todos aqueles com renda baixa ou muito baixa] são uma manifestação disso, fora dos muros. Porque essa atenção aos outros e esse senso de dignidade da pessoa são uma herança do Cristianismo.
O risco, em uma sociedade liberal onde o capitalismo dá mais valor às coisas do que aos seres, é que esses valores cristãos desapareçam. Que todo ser humano tenha uma dignidade em si, independente do que faça ou produza, coloca muitas perguntas sobre a eutanásia, o aborto, o acolhimento aos pobres ou a liberdade humana. A fé, portanto, mantém um lugar, mas talvez não mais como uma questão colocada à sociedade.
O que dizer às pessoas quebrantadas por ações nefastas na Igreja? Não existe o risco de perder a fé?
Sim, mas a Igreja instituição precisa passar por isso. Embora essa crise seja muito pesada para todos, ela é salutar e benéfica. Quando julgamos o outro, o fazemos em relação aos atos: o ato é abominável em si mesmo. No entanto, uma pessoa sempre permanece uma pessoa. Esta é a palavra de Jesus nos Evangelhos.
Além disso, ter fé é acreditar que a Igreja é santa ao mesmo tempo que é terrivelmente humana. É muito difícil para nós fazer uma avaliação precisa do que realmente está acontecendo. Às vezes, reversões surpreendentes ocorrem na história, e então percebemos que Deus devolveu em bem um mal.
O mesmo vale para a existência humana: passamos por provações e fraturas que se transformam e dão frutos. No entanto, não podemos ver isso no momento. A Igreja se compreende apenas no longo prazo, que é o tempo de Deus.
Para ler: Ta lumière sur ma route. Commentaires de la règle de saint Benoît [Tua luz no meu caminho. Comentários sobre a Regra de São Bento], de dom Guillaume Jedrzejczak, Salvator, € 20.
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“A dúvida é constitutiva da fé”. Entrevista com dom Guillaume Jedrzejczak - Instituto Humanitas Unisinos - IHU