15 Abril 2021
“Os 'novos métodos pastorais' do Papa Francisco em Amoris Laetitia, que exigem que 'as diferentes comunidades tenham de conceber iniciativas mais práticas e eficazes que respeitem tanto o ensinamento da Igreja quanto os problemas e necessidades locais', abriram a porta para o desenvolvimento orgânico da doutrina católica. Em certo sentido, seu apoio à legalização de uniões civis de pessoas do mesmo sexo o coloca em desacordo com a doutrina sexual oficial da Igreja Católica. Por outro lado, ele se enraíza firmemente na doutrina social da Igreja Católica que promove a dignidade humana, se opõe a toda discriminação e ensina que os homossexuais 'devem ser aceitos com respeito, compaixão e sensibilidade'”, escrevem Michael G. Lawler e Todd Salzman, em artigo publicado por The New Ways Ministry, 14-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Michael G. Lawler e Todd Salzman são professores eméritos em Teologia na Universidade de Creighton. Publicaram juntos o livroThe Sexual Person: Toward a Renewed Catholic Anthropology (Georgetown, 2008), também publicado em português com o título A Pessoa sexual. Por uma antropologia católica renovada (Editora Unisinos, 2012).
A união civil de casais homossexuais esteve nas notícias logo após o lançamento do documentário Francesco, de Evgeny Afinevsky, sobre o impacto do Papa Francisco nas pessoas de todo o mundo e o resultado de suas muitas viagens. No filme, o papa oferece uma resposta a uma carta que recebeu de um casal gay italiano que lhe perguntava como eles poderiam viver como um casal comprometido e criarem seus filhos em uma Igreja que julga a união e os atos sexuais deles como “intrinsecamente desordenado e que não pode ser aprovado”.
Os homossexuais “são filhos de Deus e têm o direito a terem uma família”, respondeu o Papa, baseado na doutrina católica. No contexto em que Francisco estava falando, a frase “tem direito a ter uma família” deve ser entendida no sentido que crianças LGBTQ não devem ser rejeitadas por seus pais, mas isso também pode ser interpretado como se elas pudessem ser amparadas ou adotadas. Nenhum católico que entende o ensino social da Igreja sobre a igualdade da dignidade humana entre as criaturas de Deus poderia duvidar da verdade da declaração da dignidade humana de pessoas lésbicas e gays.
O apoio de Francisco às uniões civis do mesmo sexo é consistente com suas declarações sobre “situações irregulares” em sua Exortação Apostólica Amoris Laetitia (AL).
O papa ensina: “Já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (AL 301). Esse ensino desafia seriamente o ensino católico prevalecente de que aqueles que vivem em situações “irregulares”, como uniões civis de pessoas do mesmo sexo, e que se envolvem em relações sexuais, estão vivendo em estado de pecado mortal. Embora nenhum documento oficial da igreja jamais tenha citado esta passagem particular de Tomás de Aquino, o Papa Francisco cita um dos argumentos mais conhecidos do estudioso e convida todos a incorporá-lo em seu discernimento pastoral: “‘Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da ação, a verdade ou a retidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a retidão é idêntica nas próprias ações, esta não é igualmente conhecida por todos. (...) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação’” (AL 304).
Este argumento é popularmente declarado como “o diabo está nos detalhes”. É crítico e instrutivo discernir o que Francisco está dizendo e o que não está dizendo aqui. Ele está dizendo claramente o que sempre acreditou, a saber, que as uniões homossexuais não devem ser consideradas de forma alguma análogas aos casamentos heterossexuais. Ele não está dizendo claramente, como disse a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) em 1975, que “atos homossexuais são intrinsecamente desordenados e não podem ser aprovados”. Como um pastor empático e compassivo, ele argumenta, falando da CDF sem nomeá-la, que “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja ‘para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas’” (AL 305).
Os escritos e declarações de Francisco sobre uniões civis do mesmo sexo são difíceis de conciliar com a declaração da CDF de 15 de março de 2021 que proíbe as bênçãos católicas de uniões civis do mesmo sexo, que afirma que Deus “não pode abençoar o pecado”. A declaração parece mais uma tentativa dos conservadores eclesiais de minar a perspectiva compassiva de Francisco do que uma representação real de sua posição. A abordagem pastoral de Francisco não é julgar com superioridade e superficialidade, mas fazer as perguntas difíceis sobre os detalhes e as circunstâncias daqueles que vivem em situações “irregulares”.
Os “novos métodos pastorais” do Papa Francisco em AL, que exigem que “as diferentes comunidades tenham de conceber iniciativas mais práticas e eficazes que respeitem tanto o ensinamento da Igreja quanto os problemas e necessidades locais”, abriram a porta para o desenvolvimento orgânico da doutrina católica. Em certo sentido, seu apoio à legalização de uniões civis de pessoas do mesmo sexo o coloca em desacordo com a doutrina sexual oficial da Igreja Católica. Por outro lado, ele se enraíza firmemente na doutrina social da Igreja Católica que promove a dignidade humana, se opõe a toda discriminação e ensina que os homossexuais “devem ser aceitos com respeito, compaixão e sensibilidade”.
O Papa Francisco não aceita nem promove o casamento de casais do mesmo sexo na Igreja, e sua defesa das uniões civis visa proteger a dignidade e os direitos dos casais LGBTQ e também os direitos e privilégios do casamento heterossexual. Ele, no entanto, reconhece e promove proteções legais para a dignidade humana tanto na lei civil quanto na Igreja. Suas declarações pastorais defendendo as uniões civis homossexuais devem ser lidas como uma tentativa de equilibrar essas duas realidades de uma forma que promove a dignidade humana, acolhe os membros da comunidade LGBTQ na família da Igreja e os trata com “respeito, compaixão e sensibilidade”.
Em AL, o Papa Francisco abriu a porta para o desenvolvimento orgânico do ensino sexual católico. Agora se requer bispos, pastores, leigos e indivíduos LGBT corajosos para escancarar essa porta e deixar a luz e a verdade do Evangelho de Jesus iluminar os ensinamentos antiquados da Igreja, que são dolorosos e alienantes sobre questões éticas LGBTQ.
Lawler e Salzman também são os autores do mais recente artigo do Cadernos Teologia Pública, intitulado “O Papa Francisco, a Igreja e a ética teológica. Alguma coisa mudou?”, publicado pelo IHU. Confira no link.
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Pastores corajosos para escancarar a porta deixada entreaberta pela Amoris Laetitia. Artigo de Michael G. Lawler e Todd Salzman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU