27 Março 2021
Atualmente, nenhum Governo é um exemplo de virtude em matéria climática. “Todos os países deixam muito a desejar”, avalia Joana Setzer, pesquisadora adjunta no Instituto de Pesquisa Grantham sobre Mudança Climática e Meio Ambiente, na London School of Economics and Political Science (LSE), onde lidera a base de dados de Climate Change Laws of the World, o recurso mundial mais completo sobre política, legislação e litígios climáticos. Além disso, é autora colaboradora do Grupo de Trabalho 3 do novo relatório que o IPCC elabora.
Setzer insiste em que, neste momento, “nem todas estas leis e políticas são compatíveis com as metas estabelecidas no Acordo de Paris”. Tampouco as da Espanha, um país que, em sua avaliação, “tem um baixo nível de desempenho”, uma vez que suas “metas sobre mudança climática não se alinham” com os objetivos do pacto alcançado na capital francesa. Por isso, avalia que “o litígio climático é cada vez mais considerado uma ferramenta necessária de governança climática”.
A entrevista é de Eduardo Robaina, publicada por La Marea, 22-03-2021. A tradução é do Cepat.
Em que consiste seu trabalho e o do Instituto de Pesquisa Grantham sobre Mudança Climática e Meio Ambiente?
Este instituto foi estabelecido em 2008, na London School of Economics, com o objetivo de criar um centro dedicado à pesquisa, a educação e a formação que fosse relevante para as políticas sobre a mudança climática e o meio ambiente, desenvolvimento internacional e economia política. Nele, meu trabalho se concentra no litígio climático e na governança ambiental internacional.
Atualmente, lidero o projeto Climate Change Laws of the World, uma base de dados acessível, gerada a partir do monitoramento de políticas, legislações e litígios climáticos em nível global, excluindo os Estados Unidos.
Em relação aos litígios climáticos, quantos vocês já contabilizaram?
De acordo com a base de dados do Sabin Center for Climate Change Law – que monitora litígios climáticos da jurisdição estadunidense – e de Climate Change Laws of the World, de 1986 a 2020, houve 1.727 casos de litígios climáticos, em nível global. Este número inclui litígios de jurisdições estatais, bem como litígios apresentados na jurisdição de instituições internacionais ou regionais, tais como a Corte Internacional de Justiça e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Em relação ao sentido das resoluções, o fracasso de vários litígios estratégicos de alto nível, em matéria de mudança climática – por exemplo, processos de indenização contra as corporações mais poluentes ou processos apresentados contra governos por contribuições pouco ambiciosas –, ainda é perceptível. No entanto, uma análise de 534 casos estadunidenses, entre 1990 e 2016, destacou que 42% dos litígios climáticos naquele país teve resultados favoráveis à ação climática. Fora da jurisdição dos Estados Unidos, 58% dos 187 casos, entre 1994 e maio de 2020, foram favoráveis. Que se tenha um resultado favorável, neste caso, significa que a resolução judicial se deu a favor de uma regulamentação climática mais efetiva ou então contra um resultado que aumentaria as emissões do efeito estufa.
Cada vez, existem mais casos de litígios climáticos contra Estados e corporações. Isto parece transmitir a mensagem de que a justiça é a única via que resta para enfrentar a mudança climática, por causa da inação dos governos. Isto é o desejável? Outras vias deveriam ser exploradas?
O litígio é muito importante neste momento porque há uma clara necessidade de agir. É algo urgente. A intervenção legal tem um papel substancial na implementação de medidas para combater a mudança climática. Não obstante, não é a única e nem a melhor opção, mas uma das ferramentas de governança climática disponíveis.
Atualmente, os litígios têm sua razão de ser porque contribuem para a viabilidade da luta contra a mudança climática, mas isto não deveria continuar assim indefinidamente. Qualquer tipo de litígio requer tempo e implica o risco de acabar em um resultado não favorável. Infelizmente, lutamos contra o tempo e falhar é um risco que não podemos assumir.
A maioria dos litígios climáticos ocorre nos Estados Unidos. É mais difícil que os casos tenham êxito lá em relação a Europa ou outras regiões do mundo?
Os Estados Unidos são de longe o país com mais litígios climáticos do mundo. Dos 1.727 casos de litígios que mencionei anteriormente, cerca de 75% foram apresentados neste país. Isto reflete a cultura pleiteante que os Estados Unidos possuem. Apesar disso, o número de casos que são apresentados em cada jurisdição não caminha necessariamente para uma maior probabilidade de um resultado favorável. A probabilidade de ganhar depende, simplificando, de cada jurisdição e de cada matéria.
Há muitos, mas não é necessariamente simples ganhar um litígio climático nos Estados Unidos. As jurisdições que facilitam um resultado favorável combinam uma série de fatores, incluindo que exista uma constituição e leis que reconheçam proteção diante da mudança climática, que se respeite o direito de acesso à justiça e que os juízes estejam dispostos a emitir resoluções revolucionárias que apoiem a ação climática.
O Acordo de Paris realmente significou alguma coisa em nível legislativo?
Devido ao enfoque bottom-up [“de baixo para cima”] do Acordo de Paris, para poder alcançar seus objetivos é essencial que existam legislações nacionais. Atualmente, todos os países do mundo têm ao menos uma legislação ou política pública sobre a mudança climática. Com base em dados de Climate Change Laws of the World, temos registradas até o momento 2.092 leis e políticas climáticas em todo o mundo. Não obstante, cabe destacar que nem todas estas leis e políticas são compatíveis com as metas estabelecidas no Acordo de Paris.
Quais são, em geral, os maiores obstáculos para avançar com os litígios climáticos?
Recorrer ao aparato judicial para combater a mudança climática traz muitos obstáculos bem conhecidos, como as barreiras para acessar a justiça, as dificuldades para utilizar a evidência científica e o conservadorismo de muitos tribunais quando enfrentam questões políticas contenciosas.
Sempre existiu a figura do litígio climático? Por que só agora tem maior protagonismo?
O litígio climático começou nos Estados Unidos, em fins dos anos 1980 e inícios dos anos 1990. Desde então, este tipo de litígio se espalhou para outros países e adquiriu interesse, especialmente em consequência de certos eventos. Após o fracasso das negociações da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de Copenhague, em 2009 (COP 15), ativistas utilizaram o pleito judicial como mecanismo para combater a falta de ação climática.
Em 2015, o Acordo de Paris também deu impulso. Nos anos seguintes, o Acordo de Paris aumentou o ativismo climático e foram apresentados novos tipos de litígio climático em diferentes jurisdições. É possível que haja uma redução no número de casos devido à pandemia de Covid-19. No entanto, o litígio climático é cada vez mais considerado uma ferramenta necessária de governança climática.
Qual o papel desempenhado pela Espanha em matéria climática?
A Espanha tem um baixo nível de desempenho em relação ao combate à mudança climática, segundo dados do Climate Change Performance Index. Nenhum país tem um nível muito alto nessa classificação, mas isso não justifica a insuficiência ou a falta de ação climática de cada país. Até o momento, as metas da Espanha sobre a mudança climática não se alinham com os objetivos do Acordo de Paris.
Um tema interessante é um litígio climático que está em curso na Espanha. As partes demandantes, Greenpeace Espanha, Oxfam Intermón e Ecologistas em Ação, processaram o governo espanhol para que aumente sua ação climática. Em dezembro de 2020, o caso chegou ao Tribunal Superior. Nesta instância, as demandantes alegam que o governo espanhol não produziu um Plano Nacional de Energia e Clima que inclua as metas do país para 2030, descumprindo assim a lei nacional, as regulamentações da União Europeia e as obrigações da Espanha derivadas do Acordo de Paris.
Há algum Governo que seja exemplar em matéria climática?
Infelizmente, não. Todos os países deixam muito a desejar, incluindo os que garantem acesso à justiça e a informação e que contam com recursos, constituições e leis que protegem o meio ambiente. Podemos tomar como exemplo um caso recente na Noruega, um país que reconhece em sua Constituição o direito a um meio ambiente limpo e que conta com perfeitas condições para enfrentar a mudança climática, estando inclusive classificado pelo Climate Change Performance Index como o oitavo país com melhor desempenho geral.
Em dezembro de 2020, o Tribunal Superior da Noruega resolveu um litígio climático no qual rejeitou invalidar as licenças outorgadas para a exploração petroleira no Ártico. A parte demandante, formada por Greenpeace e Nature and Youth Norway, argumentou que outorgar tais licenças viola os direitos humanos porque contribui para o aumento de emissões de carbono.
Este caso foi o primeiro litígio climático a utilizar como fundamento preceitos constitucionais ambientais na Noruega. Apesar disso, a decisão da Corte considera que as emissões de carbono fora do território nacional, que derivem do gás e petróleo exportados da Noruega, são irrelevantes ao avaliar uma violação governamental à normativa constitucional. A resolução obteve 11 votos a favor e só quatro contra no Tribunal Superior. Este é um precedente notoriamente desfavorável para o combate à mudança climática que denota que, independentemente das circunstâncias de um país, continua ocorrendo muitos fracassos.
Estamos vendo também litígios contra corporações. O último, contra a Shell nos Países Baixos. Qual é o papel das empresas na luta contra a mudança climática? Estes litígios servem para algo?
O número de ações apresentados contra empresas aumentou paulatinamente, assim como as estratégias que as partes utilizam. Em decorrência dos litígios climáticos, as empresas incorrem em despejas judiciais e administrativas derivadas do litígio, em multas que podem vir de uma decisão judicial que as responsabilize, e inclusive podem se ver indiretamente prejudicadas (por exemplo, em sua avaliação de mercado ou no preço de suas ações). Por meio desta ferramenta legal, as partes demandantes não só buscam remediar atos que ocorreram no passado, como também modificar comportamentos corporativos no futuro.
As motivações argumentadas nos litígios variam: afirma-se que houve fraude contra seus acionistas e falsificação do impacto da mudança climática em seus negócios, publicidade enganosa (greenwashing), avaliações ambientais inadequadas e violações aos direitos humanos, para citar algumas.
Mesmo em litígios em que não há uma decisão favorável para combater a mudança climática, estes casos podem criar consciência a respeito destes temas ou ser empregados como precedentes judiciais. Pouco a pouco, as empresas estão começando a ver o momentum e a construir suas defesas jurídicas. A intervenção das empresas no combate à mudança climática é absolutamente necessária, em especial a de empresas altamente emissoras de carbono. Com ou sem uma sentença, já está na hora de que reconheçam sua responsabilidade nesta luta.
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“Os litígios climáticos não são a única e nem a melhor opção para combater a mudança climática”. Entrevista com Joana Setzer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU