15 Janeiro 2021
Em meio à explosão de mortes, governo não é capaz de coordenar abastecimento de seringas. Mas presidente cogita promover celebração no Palácio do Planalto, para assumir paternidade por imunização que sempre rejeitou.
A reportagem é de Raquel Torres, publicada por Outra Saúde, 14-01-2021.
O Ministério da Saúde enviou ontem um documento ao STF informando como estão os estoques de seringas e agulhas para a vacinação contra a covid-19. Disse que não tem estoques próprios, justificando que a compra é geralmente feita pelos estados; quanto a eles, haveria ao todo 80 milhões unidades, que “podem ser mobilizadas, imediatamente, para o início da vacinação”. Os dados excluem São Paulo, que não enviou informações ao governo federal – mas divulgou em dezembro ter 71 milhões de seringas e agulhas. O número chama a atenção, já que praticamente equivale à soma de todos os outros estados.
A distribuição é mesmo desigual. Segundo a pasta, sete estados não teriam estoque suficiente para suprir a demanda inicial caso houvesse disponibilidade imediata das 30 milhões de doses – essa é a quantidade necessária para imunizar, em duas doses, os grupos prioritários da primeira fase do plano nacional (trabalhadores de saúde, idosos com mais de 75 anos ou institucionalizados, população indígena e de comunidades ribeirinhas). Eis os sete: Acre, Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Pernambuco e Santa Catarina.
Uma observação curiosa: na semana passada o Estadão fez um levantamento junto às secretarias estaduais de saúde e, segundo as informações enviadas por elas, haveria 192 milhões de seringas e agulhas disponíveis ao todo. Tirando São Paulo (que respondeu), ainda restariam 121 milhões. E a Bahia, que pelos dados do Ministério não tem insumos suficientes, apareceu na pesquisa do jornal como o terceiro estado com maior volume declarado: 13 milhões. Não sabemos a que se devem essas discrepâncias.
O documento do Ministério afirma ainda que está tomando “todas as medidas possíveis e necessárias” para garantir a disponibilidade dos insumos, mas essa lista é um tanto infeliz. Cita o pregão que conseguiu apenas 7,9 milhões de seringas das 331 milhões previstas – o que foi considerado um “fracasso” pela própria pasta – e diz que serão feitas novas licitações para a compra de 290 milhões de unidades. Além disso, fala no aumento (de 40 milhões para 190 milhões) da quantidade a ser adquirida via Opas, a Organização Pan-Americana da Saúde. O detalhe aqui é que, mesmo para as 40 milhões iniciais, a pasta demorou três meses para responder à Opas se ia ou não querer fazer a compra, como revelou O Globo esta semana. E, quando finalmente decidiu, optou pelo prazo de entrega mais demorado. Por fim, o texto menciona a requisição de 31,5 milhões de seringas feita à indústria brasileira, com previsão de disponibilidade ainda este mês.
O envio dessas informações ao STF se deve ao fato de que, na quinta-feira passada, o ministro Ricardo Lewandovski deu um prazo de cinco dias para que o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informasse sobre os insumos necessários à vacinação. A decisão de Lewandovski foi em função de um pedido da Rede Sustentabilidade para que o governo comprovasse o estoque de seringas e agulhas da União e dos estados.
O primeiro boletim do ano do Observatório Covid-19, da Fiocruz, mostra que, dos 26 estados e o Distrito Federal, mais de 14 tiveram uma taxa de ocupação de leitos UTIs para covid-19 acima de 70% entre os dias 21 de dezembro e 4 de janeiro. Os piores são Amazonas, Distrito Federal, Pernambuco, Mato Grosso do Sul e Amapá. Só três estados tiveram ocupação abaixo de 50%: Maranhão, Tocantins e Paraíba. Em nove das capitais, essa ocupação esteve acima de 80%.
O crescimento é rápido e inequívoco: 144 no domingo, 150 na segunda, 166 na terça e 198 ontem. Estamos falando do número de sepultamentos diários em Manaus, que nesta quarta foi o maior de todo o período da pandemia, quebrando o recorde anterior, que tinha sido de 167 enterros em um dia em abril. A segunda onda da covid-19, por lá, já parece mais violenta que a primeira. Nem todas os óbitos são pelo coronavírus, mas grande parte, sim. Entre os de ontem, 87 foram de casos confirmados, sendo que 26 pessoas haviam morrido em casa. E, dado o colapso na saúde, boa parte das mortes por outras doenças deve estar indiretamente ligada à pandemia também.
Outro recorde ficou marcado ontem na cidade, que registrou, nos 12 primeiros dias de janeiro, 2.221 novas internações por covid-19 – é mais do que o total do mês de abril, primeiro pico da pandemia no Amazonas. A matéria da Folha relata como muitos pacientes peregrinam pela cidade em busca de vaga e como, para quem consegue um leito, a luta continua: falta oxigênio em várias unidades. O governo estadual está usando aviões da FAB para trazer oxigênio de outros estados e tentar atender à demanda.
As taxas de ocupação de leitos de UTI, que já bateram os 90%, sugerem que os critérios para admissão devem estar cada vez mais apertados, o que explica a quantidade de gente morrendo em casa: já foram 169 desde o incio do ano. “O exame constatou uma mancha no pulmão dela, mas o médico disse que não tinha como internar, e mandou de volta para casa. Isso foi na sexta. Ontem, quando eu acordei, ela estava morta na cama dela. Foi muito rápido”, diz na reportagem Esteliano Lopes, padrasto de uma das vítimas.
A prefeitura de Manaus decidiu vetar a realização do Enem na cidade (marcado para este domingo e o próximo) e vai pedir nova data de aplicação. “Prefiro arcar com o ônus de tomar a decisão de não fazer a prova do que ter a culpa de ter liberado para pessoas se algomerarem, serem infectadas e irem a óbito”, declarou Pauderney Avelino, secretário de Educação. Em seguida, a Justiça Federal do Amazonas mandou suspender a aplicação do exame em todo o estado.
O presidente do Inep, Alexandre Lopes, não quer que outros municípios sigam o exemplo: “O prefeito que decidir não liberar Enem corre risco de ter prova cancelada. Não posso garantir a reaplicação em cidades inteiras”, disse ao Globo. Segundo ele, há “um diálogo e uma boa vontade de ambas as partes” no caso de Manaus para possibilitar uma nova data por lá, mas isso não vai acontecer em outros lugares. É claro que a discussão seria evitada se o Inep optasse por adiar o exame em todo o país.
No “dia D e na hora H”, um município específico vai ser priorizado, mas ao mesmo ninguém vai ter prioridade. Deu para entender? Pois foi o que disse ontem o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello: “Vamos vacinar em janeiro e Manaus será também a primeira a ser vacinada. Eu fui claro? Ninguém receberá a vacina antes de Manaus. A vacina será distribuída simultaneamente em todos os estados na sua proporção de população, e Manaus terá essa prioridade também”. Para desfazer o rolo, a pasta precisou esclarecer que a imunização vai ser simultânea em todo o país e que, não, Manaus não vai ser o primeiro município.
Segundo Pazuello, hoje sai o avião que buscará as duas milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca, na Índia. Elas chegariam no sábado. O Ministério ainda informou que prevê o início nas capitais de três a cinco dias após o aval da Anvisa, que deve sair neste domingo (17). Esse seria o tempo necessário para que todas elas recebessem doses. Antes de tal prazo, no dia 19, haveria uma cerimônia no Palácio do Planalto (e não em uma unidade de saúde) para vacinar uma pessoa idosa e um profissional de saúde. O slogan deve ser ‘Brasil imunizado, somos uma só nação’. Apesar de ventilado pela imprensa, o evento não foi confirmado e, segundo o governo federal, ainda está em discussão.
O objetivo, obviamente, seria retirar os holofotes de João Doria (PSDB), que parece ter planos de antecipar sua previsão inicial (de 25 de janeiro): ele quer começar a imunização “imediatamente” após o aval da Anvisa.
Em tempo: o Ministério da Saúde ainda não disse aos governadores quantas doses cada estado vai receber nessa primeira leva.
As autoridades russas anunciaram ontem que devem entrar com um pedido na Anvisa para o uso emergencial da Sputnik V ainda esta semana. Só que tem um problema detalhado pelo Painel, da Folha: a agência colocou, em uma medida provisória deste ano, a exigência de que haja estudos clínicos de fase 3 no Brasil para que os pedidos sejam aceitos (o que já constava do seu guia publicado em dezembro). Esse não é o caso da Sputnik. Os secretários de saúde estão reclamando, e o governador da Bahia, Rui Costa (PT), disse que pode entrar com uma ação no STF para garantir o imunizante.
O presidente do Fundo Russo de Investimentos Diretos, Kirill Dmitriev, afirmou ontem que o país pode fornecer 150 milhões de doses ao longo de 2021.
A Agência Pública e a Repórter Brasil descobriram os números de mais uma trágica faceta dos agrotóxicos no Brasil: seu uso como arma na violência doméstica. Ao longo da última década, eles foram a base de mais de 300 casos de tentativa de envenenamento (em 77% deles, a violência aconteceu dentro de casa). Nesse período foram 32 assassinatos, sendo que as vítimas são, em sua maioria, pessoas do sexo masculino, negras e jovens. Ao contrário do que se poderia imaginar, a maior parte dos casos aconteceu em áreas urbanas, embora a maior incidência esteja em cidades com menos de 100 mil habitantes e afastadas das grandes metrópoles.
O levantamento foi feito com dados do Ministério da Saúde, que trazem outros pontos graves, como o fato de que o agrotóxico mais usado nesses crimes foi o aldicarbe. É o famoso chumbinho, que está banido no país desde 2012 mas ainda é encontrado com muita facilidade – e é muito presente nas zonas urbanas. Outros 22 agrotóxicos, entre eles o glifosato, aparecem na lista. Das cidades que registraram esse tipo de envenenamento, 60% são classificadas com nível alto ou muito alto de privação: nelas, o acesso à educação, renda e moradia são precárias.
Para os especialistas ouvidos, a falta de fiscalização é um dos problemas que impulsionam o uso dos agrotóxicos como armas. “Os dados levantam vários debates urgentes, mas principalmente a ausência de um sistema de controle destes receituários agronômicos, que permitiria rastrear quem comprou, vendeu e receitou o produto. Assim como identificar o passivo de substâncias proibidas existentes no país”, diz a pesquisadora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Karen Friedrich.
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Covid: Bolsonaro pede música no convés do Titanic - Instituto Humanitas Unisinos - IHU