10 Novembro 2020
Ele já anunciou postura oposta à de Trump para a covid: ampla testagem da população e uma rede de 100 mil pessoas para rastreamento da doença. Há dificuldades à frente, mas mudança de agenda é notável — e deixará Bolsonaro a descoberto.
A reportagem é de Maíra Mathias, publicada por Outras Palavras, 09-11-2020.
No sábado, Joe Biden atingiu os 270 votos do colégio eleitoral necessários para assegurar seu ingresso na Casa Branca. De lá para cá, o democrata já aumentou sua vantagem, e até o fechamento da newsletter, tinha 279 votos contra um estacionado Donald Trump, com 214.
Durante seu discurso de vitória, Biden anunciou que pretende lidar desde já com a pandemia. A dúvida é qual será o estrago até a posse, que acontece no dia 20 de janeiro. Nos últimos quatro dias, os Estados Unidos vêm registrando números inauditos nessa crise sanitária, com mais de cem mil diagnósticos diários. Por lá, já são quase dez milhões de casos e 240 mil mortes. E a situação deve recrudescer ao longo das próximas dez semanas.
De qualquer forma, o democrata deve nomear hoje cientistas e especialistas que farão parte de uma força-tarefa sobre covid-19 que trabalhará durante a transição. De acordo com o STAT, o painel será composto por gente que já estava participando da campanha, como David Kessler, diretor do FDA entre 1990 e 1997, e pessoas ligadas à administração Obama. O objetivo do grupo será traçar um plano de ação para ser implementado depois da posse.
Algumas coisas desse plano já estão definidas – e são audaciosas, seja pelo alcance, seja pelo desafio político num país tão federalista quanto os EUA. Biden exigirá o uso de máscaras em todas as instalações federais e em todos os transportes interestaduais, o que é mole e só depende de uma canetada. Mas ele também quer influenciar os governadores a tornarem obrigatório o uso da proteção, algo bem mais difícil.
No campo das grandes promessas, está a criação de uma rede nacional de rastreamento de contatos que contará com “pelo menos” cem mil colaboradores. Biden também prometeu oferecer diagnóstico grátis à população, estabelecendo, no mínimo, dez centros de testagem em cada estado.
Dar um jeito no abastecimento de insumos necessários ao enfrentamento do coronavírus parece ser mesmo uma intenção do democrata, que deve lançar mão da Lei de Produção de Defesa. Sancionada na época da Guerra da Coréia, a lei permite que o presidente ordene a fabricação de determinados produtos. A norma foi invocada por Trump em março, mas a avaliação geral é de que o presidente não fez uso dela para valer.
No médio prazo, Biden promete expandir o acesso a esquemas de seguro de saúde subsidiados pelo Estado. O Affordable Care Act, mais conhecido como Obamacare, foi criado para ampliar o rol de cobertura aos mais pobres – e tem como desafio justamente a adoção de critérios menos restritos, já que muitas pessoas vulneráveis não têm direito a requisitar sua entrada no programa hoje. A iniciativa foi atacada durante todo o governo Trump, e a posição do presidente certamente impulsionou a resistência entre os estados. Em 2018, 20 deles – liderados pelo Texas – moveram uma ação na Suprema Corte visando anular trechos essenciais da lei federal. A ação ficou conhecida como “Califórnia versus Texas” porque o governo Trump simplesmente não defendeu a constitucionalidade da lei, que teve de ser socorrida pela Califórnia. A ação volta a ser julgada agora em novembro, e a maioria conservadora na Corte pode criar complicações nessa seara.
A ação também é simbólica do que um presidente não pode fazer nos EUA, e já há declarações de procuradores estaduais no sentido de barrar novas investidas federais na ampliação da cobertura de saúde.
Biden também sinalizou que vai atuar no setor privado propriamente, para evitar que “milhões de americanos que sofrem os efeitos colaterais de longo prazo da covid não enfrentem prêmios mais altos ou negação de seguro saúde devido a esta nova condição pré-existente”.
No cenário internacional, os democratas querem fortalecer estratégias de vigilância em saúde propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para monitorar riscos de novas pandemias. O diretor-geral da Organização, Tedros Adhanom, tuitou um parabéns a Biden e sua vice, Kamala Harris, com direito a ponto de exclamação. Não é para menos, já que a administração Trump anunciou uma saída teatral da OMS.
Até o fechamento desta edição às 6h35, Jair Bolsonaro não tinha seguido o exemplo de outros presidentes e se pronunciado felicitando Biden pela vitória. Com isso, o Brasil se uniu ao Suriname formando a dupla de países sul-americanos que ainda guarda silêncio sobre o resultado do pleito.
Na certa o presidente brasileiro quer agradar a Donald Trump, que ainda não reconheceu a derrota, abrindo uma crise política inédita nos EUA. O Partido Republicano está dividido sobre a contestação do resultado das urnas, com lideranças, incluindo governadores e parlamentares, apoiando as acusações sem provas de que as eleições foram fraudadas, gente como o ex-presidente George W. Bush se desvinculando – ele ligou para desejar parabéns a Biden – e outros, como o líder do partido no Senado, Mitch McConnell, em cima do muro.
Com a derrota de Trump, o presidente brasileiro perde um farol que servia tanto para orientar suas escolhas políticas quanto para calibrar sua defesa diante da opinião pública. “É um momento difícil para Bolsonaro, que tinha em Trump um trunfo e um aval do seu estilo de governar. O republicano, e sua posição central na geopolítica, ajudaram a normalizar o diversionismo histriônico de Bolsonaro com ataque a instituições, a jornalistas e a avanços na pauta de costumes, uma ruptura inédita no pacto democrático que o Brasil selou em 1988. (…) Com Biden na presidência, o governo se vê obrigado a reinventar sua política externa diante da relação comercial com os Estados Unidos, segundo maior parceiro do Brasil”, analisa Carla Jiménez, no El País.
É consenso que o meio ambiente vai ser simbólico nessa costura: é onde o Brasil vai pior aos olhos dos observadores internacionais; e Biden anunciou que o assunto está entre as quatro prioridades do início do seu governo, junto com a pandemia, a igualdade racial e a recuperação econômica.
Segundo O Globo, alguns assessores de Bolsonaro estão em uma campanha para convencê-lo a aprofundar o pragmatismo inaugurado com a aliança com o Centrão – o que poderia incluir uma reforma ministerial em 2021 que afastasse os dois nomes do núcleo ideológico que mais arestas devem causar nessa nova conjuntura: Ernesto Araújo e Ricardo Salles.
O chanceler, aliás, só agora despachou a diplomatas o pedido de avaliação de como o governo Biden pode influenciar as diferentes áreas do Itamaraty, que está estruturado em regiões, mas também por atuação em negociações comerciais e nos organismos multilaterais. Na avaliação de muitos, essa projeção deveria ter sido feita há tempos.
Luis Arce tomou posse como presidente da Bolívia ontem ao lado de seu vice, David Choquehuanca. Por lá, os planos de implantação do ‘SUS’ boliviano foram interrompidos pelo golpe. Passado o obstáculo político, o sistema público universal de saúde, inaugurado em março do ano passado, deve enfrentar dificuldades no financiamento. “O governo interino deixa uma economia com cifras que não se viam nem mesmo em uma das piores crises que a Bolívia sofreu no governo do UDP nos anos oitenta do século passado. O desemprego, a pobreza e as desigualdades aumentaram”, pontuou Arce em seu discurso.
Ontem, o mundo ultrapassou a marca de 50 milhões de casos confirmados de coronavírus. O Brasil é o terceiro país com mais registros até agora, atrás dos Estados Unidos e da Índia. No momento, somos o sétimo pior país do mundo na contagem absoluta de novos casos. O acompanhamento da situação pelo número de mortes está comprometido há cinco dias, já que alguns estados têm divulgado dados incompletos por dificuldade em inserir as informações no DataSUS. A média da semana passada ficou em 324 óbitos diários.
A segunda onda da pandemia na Europa fez com que sete países voltassem a figurar na lista dos dez mais afetados do planeta nos últimos 14 dias: França, Itália, Reino Unido, Espanha, Polônia, Rússia e Alemanha. O continente experimentou um aumento de quase 314% nos diagnósticos desde o fim de setembro. Naquele momento, figurava como a terceira região mais afetada; agora voltou a ser o epicentro da pandemia. A Itália, primeiro país ocidental a enfrentar a crise sanitária, voltou a registrar mais de 300 mortes por dia – o que não acontecia desde abril.
O Ministério da Saúde ainda não tem um protocolo para orientar o SUS a lidar com uma parte muito importante da pandemia: as sequelas deixadas pela covid-19. Desde a gestão Nelson Teich, quando a pasta capitulou de vez ao negacionismo de Jair Bolsonaro, a abordagem marketeira do “placar da vida” comemora os “pacientes curados” – 5,6 milhões a essa altura. E, como já alertamos por aqui, todas as pessoas que sofrem com as sequelas do vírus acabam relegadas a uma espécie de limbo.
Uma reportagem da Agência Pública captura essa realidade hoje. Descobriu que, se tiverem sorte, esses pacientes estarão próximos de um dos poucos projetos-piloto a endereçar o problema, como o da UFMG, que oferece reabilitação pulmonar a quem viveu um quadro grave da doença e, depois da “cura”, passou a sofrer de fadiga. Mas sem o governo federal na jogada, a regra é cada um por si: cada município decide o que fazer, e na falta de resposta, só resta aos usuários do SUS se endividarem em busca de alívio para as sequelas. “Coronavírus é uma doença pra rico”, desabafa Francisca Benedita, moradora de Fortaleza e infectada no final de abril, que está precisando pagar do próprio bolso os medicamentos para o pulmão afetado. Há casos como o de Raphaela Fagundes, moradora de Bauru (SP) que foi orientada a “procurar um psicólogo”, já que o médico que consultou aparentemente não sabia que doentes de covid-19 podem ter sequelas e imaginou que as queixas deveriam ser parte de um quadro de ansiedade.
De acordo com um estudo de acompanhamento de pacientes feito pelo Hospital Policlínico Universitário Agostino Gemelli, em Roma, apenas 12% dos participantes não apresentaram sintomas persistentes da doença. Do restante, 32% tiveram um ou dois sintomas e 55%, mais de três. As sequelas mais comuns são fadiga (53%), dificuldade de respirar ou dispneia (43%), dor nas articulações (27%) e dor no peito (21%).
Questionado sobre o problema, o Ministério da Saúde afirmou de forma vaga que “as informações estão sendo consolidadas para que seja possível elaborar um protocolo relativo às sequelas”.
A Folha obteve o parecer da Procuradoria Federal que atua na Fiocruz sobre o contrato assinado pela Fundação com a AstraZeneca. E descobriu que há certas exigências da farmacêutica que não apareceram no documento que foi divulgado pela autarquia em seu site semana retrasada. E não são meros detalhes: a empresa exigiu que a Fiocruz arque com todos os custos decorrentes de eventuais reações adversas causas pela vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e patenteada por ela. Ou seja, quer socializar os eventuais prejuízos, assegurando os lucros para si. No parecer, datado de 5 de setembro, a chefe da procuradoria, Deolinda Vieira Costa, afirma que a discussão dessas cláusulas foi “o ponto mais controverso e intenso da negociação”. No entanto, sustenta: era a “única opção possível para a Fiocruz“.
O Datafolha identificou recuo da população em participar de uma campanha de imunização contra a covid em quatro capitais. A pesquisa foi feita no início de novembro, e está sendo comparada com o levantamento de outubro. Recife apresenta a pior situação. Por lá, a adesão caiu de 75% para 65%. No mesmo período, subiu de 20% para 30% a parcela dos que não pretendem tomar a vacina. São Paulo (72%), Belo Horizonte (74%) e Rio de Janeiro (73%) viram a taxa de adesão à vacinação recuar sete pontos em um mês. Enquanto isso, as taxas de recusa para a imunização alcançaram 23%, 21% e 24%, respectivamente.
A vacinação obrigatória também perdeu apoio. No Rio, a taxa dos favoráveis à imposição caiu 16 pontos, chegando em 61%. Em São Paulo, a queda foi de 72% para 58%; em BH de 76% para 62%; e em Recife, de 73% para 61%.
Morreu ontem, aos 78 anos, o médico sanitarista Hésio Cordeiro. Sempre aliando trajetória acadêmica e gestão, Hésio foi um dos responsáveis por formular as ideias que fundamentaram a criação do SUS, história que foi recentemente lembrada pelo parceiro José Luiz Fiori em um artigo escrito para o Outras Palavras. Ontem, o outro coautor do memorável manifesto, Reinaldo Guimarães, lembrou da atuação de Hésio para consolidar o Instituto de Medicina Social da UERJ, berço da Saúde Coletiva brasileira. A Abrasco reuniu depoimentos de ex-alunos, colaboradores e admiradores.
A Assembleia Mundial da Saúde começou hoje. Os países membros da OMS vão discutir tudo aquilo que não teve espaço na sessão de maio, quando a pandemia foi o único assunto em pauta. Dá para acompanhar o evento, que acontece de novo virtualmente, por aqui. A rodada termina no sábado.
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Os planos de Biden para a Saúde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU