09 Novembro 2020
Vários gays e lésbicas se alegram com as palavras do Papa Francisco. Mesmo que, no plano doutrinário, os atos sexuais continuem sendo condenados pelo Vaticano. É uma afirmação que nunca havia sido feita antes por um papa. No documentário Francesco, realizado por Evgeny Afineevsky e apresentado na quarta-feira, 21 de outubro, no Festival Internacional de Cinema de Roma, o líder argentino da Igreja Católica afirma, a título pessoal, que é a favor de "uma lei de união civil" para as pessoas homossexuais, para que parceiros possam se beneficiar de um amparo legal. Em trechos tirados de uma entrevista, o Papa Francisco declara:
“Os homossexuais têm direito a ter uma família, são filhos de Deus, têm direito a uma família. Não se pode expulsar ninguém de uma família, ou tornar sua vida impossível por isso. O que temos que fazer é uma lei de união civil, eles têm o direito de serem amparados legalmente. Eu defendi isso”.
A reportagem é de Marie Slavicek, publicada por Le Monde, 07-11-2020. A tradução da versão italiana é de Luisa Rabolini.
Questionados pelo Le Monde, vários gays e lésbicas católicos consideram a declaração do soberano pontífice "um alívio", "uma mensagem de esperança", "uma pequena vitória". Como Grégoire, estudante em Paris, para quem as afirmações de Francisco “não têm nada de anedótico”: “Acredito que a maioria dos fiéis não esteja pronta para aceitar essas mudanças. Mas o fato que um papa reconheça que eu posso viver com alguém que me ama, independentemente de seu gênero, me dá muita força para continuar", explica o jovem de 23 anos que sente pela primeira vez "um certo desejo" de se assumir e não mais esconder sua homossexualidade de sua família.
Não é a primeira vez desde sua eleição, em março de 2013, que Jorge Mario Bergoglio (nome civil do Papa Francisco) dá um passo em direção à comunidade LGBT. Em julho do mesmo ano, no avião que o trazia de volta da JMJ no Brasil a Roma, chocou os mais conservadores ao declarar: “O problema não é ter uma tendência homossexual, é fazer lobby. Se uma pessoa é gay e busca o Senhor com boa vontade, quem sou eu para julgar?”. Para alguns, é apenas uma variante do Sermão do Monte de Jesus, apresentado no Evangelho de Mateus: "Não julgues e não serás julgado", para outros é o sinal de um papa "gays friendly".
Para Cyrille de Compiègne, porta-voz da associação cristã LGBT + David & Johnathan, as declarações de Francisco no documentário Francesco “se inserem na continuidade de uma mensagem de acolhimento que claramente difere daquela de seus antecessores”. O papa continua firmemente contrário ao casamento para todos, mas se trata, apesar de tudo, “de uma verdadeira tomada de posição, insiste. Declarar-se a favor da união civil é uma forma de reconhecer o casal homossexual como tal. É algo muito forte”. No entanto, a afirmação do soberano pontífice não é de forma alguma “uma revolução”, explica a porta-voz de David & Jonathan: “No plano doutrinal nada muda. Oficialmente, a condenação aos atos homossexuais permanece”. O artigo 2357 do catecismo define aqueles atos “contrários à lei natural”, “intrinsecamente desordenados” e tais que “não poderiam ser homologados em hipótese alguma”. Afinal, o papa também teve palavras mais duras em relação aos LBGT, em especial em 2018, quando disse que as crianças homossexuais poderiam recorrer à “psiquiatria”. “É um tema que desperta muitas tensões dentro da Igreja. E o papa não está sozinho na decisão.
Por enquanto, a situação está bloqueada”, lembra Cyrille de Compiègne. De fato, em nota interna enviada no final da semana passada aos núncios (seus embaixadores) e tornada pública na segunda-feira, 2 de novembro, o Vaticano insistiu no fato de que o Papa Francisco não havia mudado a doutrina da Igreja Católica. Uma “forma de exclusão”, que Anne, que em breve terá 40 anos, está vivendo muito mal. Vinda de uma família muito praticante do Giura, ela descobriu sua homossexualidade tardiamente. Divorciada do pai de seus quatro filhos e agora com sua companheira há quase dois anos, Anne não pode se aproximar dos sacramentos, um verdadeiro "sofrimento" para ela: "Eu me coloco um pouco fora da Igreja, dizendo a mim mesma que não pode ser a vontade de Deus. Não se escolhe ser homossexual. E acho muito injusto ser considerados culpados por ter um modo de vida que nos corresponde”.
Para Michel Elias, membro da associação Carrefour de Cristãos Inclusivos, não há realmente nada para se alegrar. “O papa não mudou a letra da música que o Vaticano vem cantando para nós há anos, ele apenas mudou a música, reclama esse belga de 74 anos. É como se o Secretário-Geral do Partido Comunista da URSS afirmasse pessoalmente que a propriedade coletiva dos meios de produção não fosse desejável! Observem, isso é um pouco o que Gorbachev fez ..." De fato, muitos gays e lésbicas católicos acreditam em uma "estratégia de pequenos passos" do papa: "Mostrando uma abertura a título pessoal, Francisco dá o exemplo e inicia uma nova dinâmica para preparar o terreno para uma eventual mudança no direito canônico [o conjunto das leis e dos regulamentos adotados ou aceitos pelas autoridades católicas]", resume Cyrille de Compiègne. Mas Michel Elias não acredita que isso possa acontecer a médio prazo: “Se ele realmente deseja um avanço na situação, Francisco deve escrever uma nova encíclica. O papa diz ‘sim’ às uniões civis, mas, por enquanto, continuamos a ser passageiros clandestinos da Igreja. Aguardamos uma palavra oficial para sermos plenamente reconhecidos como membros da instituição. Enquanto isso, isso só cria debate e perturba os mais tradicionais. Já é alguma coisa!”.
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União civil para casais homossexuais: “O Papa diz ‘sim’, mas na Igreja continuamos a ser passageiros clandestinos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU