20 Outubro 2020
Lideranças da Aldeia Vy’a Renda, no município de Santa Helena, no oeste do Paraná, denunciaram ao Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria da República em Francisco Beltrão (PR), a falta de água potável, agravada durante as estações mais quentes e com a estiagem que assola a região. Composta por 35 famílias, a aldeia conta com apenas uma caixa de água de 10 mil litros para o consumo de aproximadamente 116 pessoas, em sua grande maioria crianças e idosos. Essencial à vida, a preocupação é ainda maior diante da pandemia do novo coronavírus e da situação de vulnerabilidade, em especial das crianças e idosos.
A reportagem é de Adi Spezia, publicada por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 16-10-2020.
Sem estrutura de saneamento básico, mesmo com doze anos da constituição da aldeia, os indígenas denunciam que a água fornecida pela rede pública não tem chegado até o tekoha. “Utilizada pelos agricultores da região e em outras atividades, o fluxo da água não chega até a aldeia e com isso não abastece o reservatório, deixado os indígenas sem água potável”, explica o cacique Cornélio Veravy Alvez.
Água disponível para consumo dos indígenas no tekoha Mokoi Joegua (Foto: Tekoha Mokoi Joegua)
No documento entregue ao MPF no dia 1º de outubro, as lideranças destacam que há vários anos vêm sofrendo com a falta de água potável e saneamento básico, e cobram soluções urgentes, visto que a única opção de acesso à água é um reservatório próximo à aldeia, e que devido ao baixo nível a água encontra-se lamacenta, imprópria para consumo.
Essa situação do tekoha Vy’a Renda, também é vivida pelos tekoha no município de Santa Helena, Ara Porã, tekoha Pyahu, tekoha Tape Jere (Curva Guarani), Mokoy Joegua e no tekoha Yva Renda em Itaipulândia. O vice cacique Inocêncio Acosta, do tekoha Mokoi Joegua, destaca a apreensão das lideranças. “Estamos muito preocupados por ter que tomar água do lago, muito preocupados com as crianças, várias tiveram diarreia, vômitos e feridas por tomaram essa água. Também tem a falta de comida. Como não temos os territórios reconhecidos, compromete o plantio”, conta Inocêncio.
Lago da Itaipu de onde os Avá Guarani têm pego para o consumo (Foto: Cimi Regional Sul)
Diante da realidade destes locais, o Ministério Público entrou com uma Ação Civil Pública – ACP – Nº 5022446-39.2019.4.04.7002 em 2019, pedindo urgência no atendimento. O juiz da 2ª. Vara Federal em Foz do Iguaçu, Rony Ferreira, negou o pedido de Tutela de urgência. O MPF recorreu ao TRF 4, cuja pedido foi analisado pelo desembargador federal Ricardo Teixeira do Valle Pereira, que negou a tutela de urgência. Ocorreram duas audiências de conciliação onde não se chegou a um acordo, uma vez que esses tekoha estão em processo de identificação pela Fundação Nacional do Índio (Funai), ao mesmo tempo em que a Itaipu Binacional e Governo do Estado do Paraná metem processos de reintegrações de posse.
Ao negar o direito humano básico ao povo Ava Guarani o juiz e o desembargador deixaram os Avá Guarani numa situação muito delicada, pois neste momento onde se vive uma seca os Guarani estão bebendo água diretamente do lago da Itaipu, sem nenhum tratamento, contaminada por agrotóxicos utilizados na agricultura do agronegócio.
Apesar de estarem a pouco metros de um dos maiores lagos artificiais do mundo a falta de água potável apresenta-se como um dos principais problemas.
Após mobilização os indígenas conseguiram a doação de uma caixa d’água. Uma solução paliativa que deve suprir a falta de água potável na aldeia (Foto: Cimi Regional Sul)
As lideranças dos 24 tekoha estão muito apreensivos com a notícia da falta de cestas básicas que são repassadas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a Funai, a última entrega foi em setembro, e para o mês de outubro não é certeza que as 4 mil pessoas que moram nestes tekoha terão alimentos.
A interrupção na entrega das cestas básicas pode agravar ainda mais a situação de vulnerabilidade dos povos, junto com o isolamento social compelido pela pandemia da covid-19; a fome tornou-se uma triste realidade para os povos no oeste do Paraná. “É muito difícil sem saneamento básico, com esse pouco de água e agora sem as cestas básicas. O que acontece é que precisamos de água e alimentação”, defende o cacique da TI Guasu Guavirá.
O baixo nível do reservatório da Itaipu Binacional reflete a gravidade da estiagem prolongada e a falta de água que os indígenas denunciam (Foto: Cimi Regional Sul)
A origem do problema está na negação do acesso aos territórios tradicionais, aponta o cacique Oscar Benites Lopes. “A gente está numa situação precária. A Funai, que seria nosso representante legal, não está nos representando. A Sesai que é a secretaria de saúde, não quer cuidar de nós porque estamos na retomada”. A preocupação das lideranças se deve Ofício circular nº 66/2020/DASI/SESAI/MS de 29 de setembro de 2020, da Secretaria Especial de Saúde Indígena/ Departamento de Atenção à Saúde Indígena onde o Marcelo Alves Miranda, Diretor do Departamento de Atenção à Saúde Indígena e Robson Santos da Silva, Secretário Especial de Saúde Indígena onde consta que:
4.1. Sobre a extensão do atendimento às Terras Indígenas não homologadas, esclarece-se que se trata das terras que estejam em alguma fase do processo administrativo para demarcação, exceto as já homologadas ou regularizadas. (…) Destaca-se que NÃO deverá ser realizada inclusão de população que não esteja dentro de Terras Indígenas. Lei nº 14.021, de 07 de julho de 2020.
Saneamento básico, saúde e alimentação são itens de necessidade básicas e deveriam ser fornecidos pelo Estado. Na avaliação das lideranças, esse descaso com as comunidades está relacionado ao fato de os indígenas estarem vivendo nas retomadas. “Não estamos invadindo, estamos voltando a nossa área, temos esse direito, conhecemos nossa história. As crianças que nasceram no acampamento têm direito, porque a origem delas é aqui. Só estamos pedindo nossos direitos, água, alimentos, saúde e saneamento básico”, reforça cacique Oscar.
A falta de água potável é ainda mais preocupante diante da pandemia e da situação de vulnerabilidade, em especial das crianças e idosos (Foto: Alaudio Velasques)
Com largo histórico de violências e violações, indígenas das 14 aldeias do tekoha Guasu Guavirá se reuniram em mobilização no último dia 3, para reivindicar seus direitos originários, em especial o direito à demarcação de seus territórios tradicionalmente ocupados. A mobilização foi organizada pelas mulheres indígenas e as reivindicações foram enviadas ao MPF.
No Paraná, segundo relatório de Violência Contra os Povo Indígenas, organizado pelo Cimi, edição com dados de 2019, há 40 terras indígenas com alguma pendência administrativa: 20 terras indígenas sem providências, entre elas o tekoha Yv’a Renda, dos Ava Guarani; 14 a identificar; 5 identificadas; e apenas uma declarada.
As lideranças reivindicam providências aos problemas relacionados ao saneamento básico, água potável, reestabelecimento na entrega das cestas básicas, melhorias no atendimento à saúde e seus territórios demarcados (Foto: Cimi Regional Sul)
A não demarcação do território provoca outras violências. “Passamos discriminação, preconceito e violência nas cidades, na rua, no mercado, nas lojas e escolas”, denunciam as lideranças. Sem contar nas dificuldades de acesso à saúde e educação: “temos muita dificuldade de acesso às escolas fora das aldeias, onde nossas as crianças e jovens estudam”, conta a rezadeira Maria Nunes Gonçalves. Insultos como “comedor de terra, sujos ou pés sujos”, tem sido queixas frequentes entre os estudantes, completa Mãe Inácia Jara, da aldeia tekoha Guarani.
As lideranças reivindicam providências, “o mais rápido possível, aos problemas relacionados ao saneamento básico, água potável, reestabelecimento na entrega das cestas básicas, melhorias no atendimento à saúde e seus territórios demarcados”, conta o pedido entregue ao Ministério Público Federal.
O juiz Rony Ferreira, da 2ª Vara Federal de Foz do Iguaçu, ignorando decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), emitiu uma determinação de reintegração e manutenção de posse em favor da Itaipu Binacional, no dia 6 de outubro. Conforme sentença, os indígenas têm 30 dias para desocupara a área de forma voluntária, após o transito em julgado. Os indígenas podem recorrer da decisão, o que não reduz a preocupação das lideranças, numa disputa que se arrasta por anos, agravando ainda mais a situação dos Guarani.
A decisão do juiz no oeste do Paraná contraria a decisão do ministro Edson Fachin, quando em maio, por meio de uma decisão liminar, suspendeu todos os processos judiciais do país que possam afetar a demarcação e ocupação de terras indígenas, enquanto durar a pandemia do novo coronavírus ou até o julgamento na Corte do recurso com “repercussão geral” do caso da TI Ibirama La Klãnõ (SC), do povo Xokleng, previsto para iniciar no dia 28 deste mês.
Indígenas de todas as idades tem se mobilizado contra o marco temporal (Foto: Alaudio Velasques)
Na avaliação do assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto, o juiz desrespeitou a decisão do Supremo. “O processo deveria estar suspenso e a sentença é arbitrária. É uma decisão de mérito, e não uma liminar, para determinar a reintegração de posse. A sentença, inclusive, só pode ser cumprida após o transito em julgado, mas preocupa os indígenas. Cabe reclamação desse juiz no Supremo”.
Mesmo não havendo risco de desocupação nos próximos trinta dias, a decisão do juiz da 2ª Vara Federal de Foz do Iguaçu tem causado angustia e preocupação nas lideranças, pois afeta outras aldeias que estão na mesma situação. “A Itaipu tem muita dívida com os Guarani nessa região e, mesmo assim, não quer reconhecer essa dívida histórica, em vez disso, continua fazendo perseguição, querendo derrubar o direito indígena”, denuncia o cacique Lino Cesar Cunumi Pereira, liderança Avá Guarani do tekoha Curva Guarani, no município de Santa Helena.
Para os indígenas, é uma falta de respeito a sentença do juiz de Foz do Iguaçu. “Ele conhece nosso direito, conhece as dificuldades enfrentadas na região e está passando por cima da decisão do Supremo, ele não tem essa autoridade”, lembram as lideranças.
Indígenas se mobilizam para reivindicar seus direitos originários, em especial o direito à demarcação de seus territórios tradicionalmente ocupados (Foto: Cimi Regional Sul)
“Estou aqui vendo nossas crianças, ao amanhecer pegando seus brinquedos e sair brincar, como se nada aconteceu, como se estivesse tudo bem na aldeia, isso machuca muito a gente. Será que esse juiz não está pensando nas famílias? Com certeza ele tem filhos como a gente, e nós amamos nossos filhos, não queremos que acontece nada de ruim. Quando negam nosso direito, machuca muito nosso coração. Será que vamos ser jogados por aí, como se fossemos nada?”, reflete angustiado o cacique Lino, com inúmeras perguntas sem respostas.
Outra preocupação é o julgamento do caso povo Xokleng, que teve sua repercussão geral reconhecida pelo Suprema Corte e que poderá trazer uma posição definitiva do STF sobre a questão do marco temporal e as demarcações de terras indígenas. Além disso, a Corte discutirá na mesma data se mantém ou não a medida cautelar deferida pelo ministro Edson Fachin, quando em maio suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da AGU, instrumento usado para institucionalizar o marco temporal como norma, no âmbito dos procedimentos administrativos de demarcação, em claro prejuízo aos povos indígenas.
No julgamento da próxima semana, o STF poderá trazer uma posição definitiva sobre a questão do marco temporal e as demarcações de terras indígenas (Foto: Alaudio Velasques)
Descrito pelas lideranças como uma “grande ameaça, o marco temporal causa preocupação e a Itaipu não parou de incomodar. É uma falta de respeito. A gente não quer que aprove o marco temporal, porque não afeta só nossa região, mas o Brasil inteiro. Onde vamos nos enfiar ou pedir socorro pelos nossos direitos se isso acontecer? ”, questiona inconformado o cacique, diante do futuro incerto.
A vida nas retomadas no oeste do Paraná não tem sido fácil aos indígenas, sem água, saneamento básico, energia, alimentos, acesso precário à saúde e a insegurança jurídica fazem parte da vida dos Guarani. No enteando, “a gente vai continuar lutando, temos muita esperança, nossa reza nos dá força e com Nhanderu etê – dono da terra, dono do mundo -, vamos seguir lutando de cabeça erguida pelo direito a nossa terra. Terra que Nhanderu deixou para todos sobreviver e não para fazer briga; vamos seguir lutando e exigir nosso direito até o fim”, conclui cacique Lino.
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Sem água potável e com interrupção na entrega das cestas básicas, os Avá Guarani no oeste do Paraná lutam para sobreviver em meio à pandemia e disputas pelo território - Instituto Humanitas Unisinos - IHU