02 Outubro 2020
"Se o homem é capaz de afetar os sistemas do planeta com suas ações e causar os mais variados efeitos, qual seria o efeito do amor praticado em relação à Casa Comum, na vida social?", escreve Josi Mara Nolli, mestra em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e formada em Comunicação Social - Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC).
Uma das chaves para as mudanças tão necessárias e urgentes que podem amenizar e colocar fim à destruição do meio ambiente está em uma realidade que garante a pessoa, ou seja, que garante o homem enquanto pessoa: o amor, mais especialmente, a prática do amor.
Na dinâmica capitalista da sociedade atual, esbarramos no fato de sobressair um individualismo que se define por práticas avessas à realidade do amor, pois pautadas na exploração, nas desigualdades sociais, nas atividades voltadas exclusivamente para o lucro, na coisificação do homem, ao mesmo tempo que esse parece se posicionar como "deus supremo de uma liberdade sem direção e sem medida", sempre pronto a olhar os outros [e acrescentamos, a Casa Comum] sob a lógica do cálculo (MOUNIER, 1974, p. 62) [1].
Olhamos ao redor e o que vemos é uma sociedade que agoniza sob o peso do cálculo e do lucro que ela mesma supervaloriza. Então, o que é “pessoa” nesse cenário, a priori, desesperado? E se o amor é uma realidade que garante a pessoa, como resgatar a prática do amor em um momento histórico atravessado pelo individualismo?
Sobre o que é "pessoa" não existe uma definição exata, segundo o personalismo mounieriano, que trabalha a ideia de que “pessoa” foge a qualquer forma de classificação. Uma ideia que se encontra também em Guardini [2] (1963) quando o autor afirma que a pessoa escapa a todo enunciado com conteúdo determinado. Em outras palavras, não estamos tratando de uma coisa que pode ser apreendida ou prevista, antes, de um ser em constante formação e desenvolvimento, único, porque irrepetível.
E se alguém nos perguntasse, então: "o que é a tua pessoa?”, considerando o caráter inapreensível da pessoa, não poderíamos nos limitar a responder: "é o meu corpo, a minha alma, a minha inteligência, a minha vontade [...]. Nada disso é ainda “pessoa”, mas por assim dizer, o material que a compõe" (GUARDINI, 1963, p. 160).
Ocorre que o individualismo exacerbado e fomentado pela sociedade do lucro, por vezes, leva o homem a ter uma compreensão fragmentada e mesmo contrária do que é “pessoa”. O comportamento individualista prende o homem em si mesmo, minando suas relações. Nesse movimento, o único mundo que passa a ter importância para o homem é o seu próprio mundo, ou seja, o que o homem passa a importar para si são valores que têm relação apenas com o seu mundo. À medida que olha somente para si, torna-se fechado. O homem se encontra, então, diante de um dos maiores desafios da nossa época - ser pessoa, pois a pessoa se abre em possibilidades, dentre elas, a do amor. Amor que atravessa a dimensão do sentimento para alcançar uma dimensão prática. Em outras palavras, amor que se traduz em obras.
Guardini (1963, p. 159), ao tratar da pessoa, assim compreende a dimensão do amor: "Amar é apreender o valor original presente num existente que nós é alheio - e sobretudo em existentes pessoais; é ser sensível ao bem fundado desse valor; sentir a importância de uma sua subsistência e desenvolvimento; experimentar uma preocupação pela sua realização igual à que pela nossa experimentamos". Essa forma de amar já é, em si, uma prática do amor e desemboca no fato de o homem deixar de olhar para si mesmo para realizar a experiência de voltar-se para o outro e para o que está ao seu redor.
Se o homem abandona ou rejeita esse amor, adoece. Adoece em seu movimento de ser pessoa e corre o risco de se compreender apenas em suas atividades consideradas “úteis”, sem a ação do amor que gera a fraternidade e os gestos conscientes com o mundo que o cerca. Pensar a pessoa, portanto, implica pensar além do "material" que a compõe. Nesse raciocínio, implica acrescentar ao movimento da pessoa, entre outros, o amor.
Com relação ao cuidado do meio ambiente, partimos da dimensão do amor que a pessoa é capaz de colocar em prática. Na Casa Comum, amor praticado é igual a cuidado. A noção de cuidado envolve, entre outros, consciência, ponderação, cortesia, delicadeza e responsabilidade. E mesmo as mais simples atitudes ecológicas diárias partem da capacidade de amar da pessoa. São permeadas de consciência e de responsabilidade, porque fomentadas pelo amor. Amor compartilhado com o outro e com a Terra quando traduzido em ações. Porque ama, a pessoa é capaz, por exemplo, de “habitualmente se resguardar um pouco mais em vez de ligar o aquecimento, embora suas economias lhe permitam consumir e gastar mais” (LS, 211). Uma ação aparentemente simples para o homem que despertou ou foi despertado para o cuidado do meio ambiente. Contudo, bastante difícil de se praticar quando conduzida pelo individualismo que ressalta que o importante é pensar em si.
Quanto mais se pratica o amor, mais livre o homem se torna do individualismo. Se o amor se traduz em cuidado, quanto mais o homem cuida do meio ambiente, tanto mais se livra do que o torna fechado e adoecido. Praticar o cuidado com o planeta conduz o homem para fora de si e o leva à experiência de se sentir ligado à natureza e a tudo o que ela representa para a vida humana.
O amor, por sua vez, deve ser cultivado no homem desde o nascimento. O primeiro espaço em que se aprende e pratica o amor, portanto, é a família, porque também na família se dão os movimentos primários de personalização do homem - a comunhão, por exemplo, como prática de uma comunidade de pessoas. Comunidade essa que se caracteriza, entre outros, por cultivar os primeiros hábitos de amor e o cuidado da vida, como o uso correto das coisas, a ordem e a limpeza, o respeito pelo ecossistema local e a proteção de todas as criaturas (LS, 213).
Nessa comunidade primeira, o homem tem a possibilidade de um desenvolvimento humano autêntico. Esse desenvolvimento está pautado no amor próprio, porque o homem é capaz de uma conversão íntima como recolhimento que gera consciência e pautado também no amor ao outro, porque sabe-se comunidade. “Na família, aprende-se a pedir licença sem servilismo, a dizer “obrigado” como expressão duma sentida avaliação das coisas que recebemos, a dominar a agressividade ou a ganância e a pedir desculpa quando fazemos algo de mal. Esses pequenos gestos de sincera cortesia [cuidado] ajudam a construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo que nos rodeia” (LS, 213) – o outro, os espaços comuns, a natureza, os demais seres vivos etc. Esses gestos estão ao mesmo tempo atravessados pelo amor e dele impregnados. Só podem, então, gerar cuidado.
As mudanças nas estruturas econômica, política e social são fundamentais, ou seja, estão na base da construção e da conquista de uma sociedade que pratica a sustentabilidade. Contudo, não se mudam estruturas sem antes formar pessoas. E não se forma “pessoa” sem a dimensão prática do amor.
A força das pequenas ações, aquelas ao alcance de todo o ser humano, é um caminho de mudanças e uma via de formação da pessoa. A Laudato Si’ [3] (LS) resgata a força transformadora do amor praticado, mesmo em situações complexas e condições precárias de vida (LS, 149), pois os gestos simples cotidianos são capazes de quebrar a lógica da violência, do egoísmo e da exploração. São gestos que promovem a cultura do cuidado.
As dimensões civil e política do amor também são propostas como caminho para o ideal duma “civilização do amor”. "O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. [...] O amor social é a chave para um desenvolvimento autêntico: "Para tornar a sociedade mais humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social - nos planos político, econômico, cultural - fazendo dele a norma constante e suprema do agir"" (LS, 231).
A vida social e as dimensões que ela implica, sobretudo a econômica, deveria ser “expressão de ‘cuidado’, que não exclui, mas inclui, não mortifica, mas vivifica” [4] (Papa Francisco). O amor praticado reaparece na dimensão do cuidado que gera e preza pela vida da pessoa e tudo o que a ela está ligado. O centro da dinâmica social, portanto, deve ser a pessoa e não a produção, o consumo e o lucro.
Se o homem é capaz de afetar os sistemas do planeta com suas ações e causar os mais variados efeitos, qual seria o efeito do amor praticado em relação à Casa Comum, na vida social? As coisas (a dinâmica do ter) dariam lugar às pessoas e o valor à vida e à dignidade da pessoa estaria no topo das prioridades socias, políticas e econômicas.
[1] MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Trad. João Bénard da Costa. 3ª ed. Santos, SP: Martins Fontes, 1974
[2] GUARDINI, Romano. O mundo e a pessoa. Trad. Fernando Gil. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1963
[3] PP, Francisco. Laudato Si': sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus, 2015. São Paulo: Edições Loyola, 2015
[4] Papa Francisco durante o Fórum Internacional promovido pela European House - Ambrosetti, Roma, 04 de setembro e 2020
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A pessoa, a prática do amor e o cuidado da Casa Comum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU