27 Agosto 2020
"O Deus de Jesus não corresponde ao faraó solitário e autorreferente de nossas imaginações. Mas uma circulação movimentada que atua como desejo primordial que faz tudo existir. A "caridade" é antes de tudo o nome de Deus. Colocado como etiqueta na porta de um gabinete da Cúria, corre o risco de se reduzir a marcador de um exercício assistencial que tem dificuldades para manter claro o limite entre serviço e poder", escreve Giuliano Zanchi, teólogo, em artigo publicado por Settimana News, 23-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ninguém poderia imaginar que nos encontraríamos vivendo meses como os que acabamos de passar. Agora já fazem parte de uma história sem a qual não poderíamos falar do nosso presente. Alguém comparou essa epidemia a uma "maré" que com sua onda inunda tudo e quando recua deixa alguns tesouros espalhados e destroços de todos os tipos na costa.
Olhar para os tesouros que emergiram e livrar-se dos destroços anuncia-se como a "sabedoria" a que todos devem aspirar a partir de agora, mesmo que permaneça para muitos a tentação de fingir que nada aconteceu e seguir em frente de forma despreocupada. Aquela de "voltar à normalidade" continua sendo uma aspiração legítima se significa escapar mais cedo ou mais tarde das garras da emergência e de seus comportamentos forçados, mas seria uma grande ingenuidade se surgisse da pretensão de retomar tudo exatamente como antes, ignorando o momento de "revelação” no qual estivemos imersos.
Foram meses de prova. Não só pelas muitas superstições em que nos habituamos a viver, mas pelas muitas implicações que dominam o nosso modelo de vida e pelas estruturações institucionais que o representam. A Igreja foi certamente uma das primeiras a ser posta à prova por um tempo em que o sentido do "trágico", como se tivéssemos regressado repentinamente à Idade Média, pôs em suspensão tudo o que sempre pareceu um ponto fixo.
Apenas alguns meses atrás, teria parecido inimaginável passar por um período em que seríamos impedidos de celebrar a missa. Agora todos nós sabemos com que desorientação e com quanta histeria fizemos tal experiência. Mesmo apenas a nível inconsciente, o temor que sem a Missa não mais existisse a Igreja apoderou-se de muitos com efeitos de desorientação que ainda demorará bastante para ser decifrada adequadamente.
Todos nós sentimos o mesmo sentimento de desorientação também com respeito àquele impulso de "caridade" (vamos usar esse termo em seu significado mais comum) que normalmente é ativado como o primeiro reflexo do Cristianismo nos acontecimentos da história, mas que nessa situação incrivelmente inédita era, junto com a liturgia, parte do que as disposições públicas relativas à contenção do contágio deviam limitar de maneira radical.
Até mesmo isso no início nos deixou quase sem palavras. Não saber o que fazer, não sentir-se imediatamente úteis, ser excluídos de uma atuação que naquele caso era a especialização da ciência médica e dos agentes da saúde, não só suspendeu a forma usual com que a Igreja se coloca no campo, mas principalmente deu o que pensar (naturalmente para quem estava disposto a pensar) sobre o próprio sentido da "caridade" em seu enraizamento teologal e em sua dimensão de testemunho.
A grande atuação das nossas comunidades logo encontrou meios de fazer o possível aceitando o seu papel auxiliar, sem vãos protagonismos, no cumprimento das normas sanitárias e ao lado de todos os que se colocam à disposição da sociedade para uma necessidade de "ajuda mútua" que naqueles meses constituiu o sentimento predominante da coletividade.
Não sem algum mal-estar latente, descobrimos que não somos os únicos a manter viva uma fraternidade geral à qual todos se dedicaram um pouco, talvez amuados com a ideia de que tudo pudesse ter sido feito mesmo sem a gente. Mas, em geral, as nossas comunidades foram, em muitos lugares, decisivas redes de apoio moral e material. Frequentemente cuidando daquelas necessidades que as circunstâncias haviam tirado do radar da consideração social.
Enquanto o tempo passa e a natureza da emergência tende a evoluir, esses traços de fidelidade e esses sinais de desorientação ficam diante de nós como sinais que deveríamos levar em conta. Indicam direções. Uma delas é, sem dúvida, o tema de um testemunho da "caridade" que depois dessa aventura pode ter mais claros que antes as conotações de sua específica qualidade cristã.
Não vou adentar aqui na questão do enraizamento teologal e trinitário da "caridade" como forma originária do divino. Isso exigiria discursos articulados e profundos. Mas quanto ao mérito, não podemos de forma cristã perder de vista a natureza originalmente interpessoal e generativa do Deus de quem Jesus revelou a intimidade.
O Deus de Jesus não corresponde ao faraó solitário e autorreferente de nossas imaginações. Mas uma circulação movimentada que atua como desejo primordial que faz tudo existir. A "caridade" é antes de tudo o nome de Deus. Colocado como etiqueta na porta de um gabinete da Cúria, corre o risco de se reduzir a marcador de um exercício assistencial que tem dificuldades para manter claro o limite entre serviço e poder.
A grande emergência pandêmica, em que experimentamos pessoalmente o fato de que mesmo aqueles que "não são dos nossos" sabem fazer milagres, mostrou-nos que apresentar a caridade no plano de uma "indústria do bem” nos mantém em um nível de narcisismo performativo no qual acabamos mais competindo que testemunhando. Mais ainda, monopolizar serviços em vez de gerar sensibilidade.
Os testemunhos contrários colecionados nessa frente, todos nós conhecemos. Jesus está certo. Quando você se apega a algo, inclusive à vida, acaba perdendo-o. Aplica-se também aos campos do engajamento concreto da caridade cristã. O gênio do cristianismo está inclinado a encontrar continuamente aquelas necessidades que ninguém vê e a dar-lhes uma resposta que depois se torna patrimônio de todos (como o cuidado dos enfermos, a educação para todos, o acolhimento dos errantes).
Quando isso é tratado como algo exclusivo ou retido como uma suplência, põe em risco a liberdade da Igreja e não deixa nada na sociedade. Supre, mas não gera. Deixa de ser uma marca consciente da própria relatividade. Na Igreja, a "caridade" que vem de Deus é apresentada como "sinal" que questiona o mundo. Como tal, não aspira a assumir tudo, sob o risco de se transformar na enésima "potência" que domina a terra. No máximo, acende uma luz suficiente para descobrir onde, mesmo em outro lugar e em qualquer momento, a "caridade de Deus" dá sinais de si mesma, sem necessariamente brotar nas fileiras “dos nossos".
Mesmo a “caridade”, para gerar, e não simplesmente requisitar situações, deve saber abrir mão, como fazem os pais, infundir claramente traços de um estilo e permitir que outros o assumam sem pagar nenhum direito autoral. A sua ambição amplia o espaço de cumprimento da oração com que se pede "venha o teu reino, seja feita a tua vontade". Até mesmo naqueles lugares o nome de Jesus nada diz e o de Deus nem mesmo é pronunciado. Onde quer que tenhamos conseguido tornar comum o gesto que dá o copo d'água ao sedento, aí gerou-se a "caridade". Não se resolveu apenas um problema. A humanidade foi transfigurada.
Naturalmente, isso não significa que a Igreja legitime a aproximação e o desinteresse. Ser guardião de um "signo" relativo não significa ser um simples empregado. Também devemos ter cuidado para não sermos demasiado sensíveis. Por mais que seja relativo, esse "sinal" continua a ser irrenunciável na medida em que serve para manter acesa a luz teologal do gesto da caridade, para dizer a todos, onde quer que se realize e por quem o realize, que ele sempre diz respeito à vontade originária de Deus.
Assimilar essas redescobertas talvez nos ajude a redescobrir também um "estilo" de caridade que possa ser medido em práticas concretas, estruturações operativas e papéis pessoais. O critério básico será certamente o de uma "caridade" que não pode ser de maneira cristã tal sem agir no contexto de uma fraternidade que ultrapassa os limites do recinto eclesial, mas que aceita alimentar também aqueles pactos humanos que mantêm unida toda a sociedade. Talvez signifique renunciar à tradicional prestação unilateral de serviços com a qual a solidariedade com os pobres muitas vezes foi entendida, para construir redes territoriais de comum apoio aos frágeis.
Talvez se destacando entre todos por ter, como sempre, o faro particular por aquelas necessidades que ninguém vê, por aqueles que facilmente todos abandonam, por aquelas pobrezas que nem sempre têm o clamor da notícia. Diria mesmo talvez não aquela franqueza que, sem fugir ao imediatismo de algumas necessidades, estimula a responsabilidade política na assunção estrutural dos problemas que as geram; para não dar álibi a nenhum tipo de retórica e não deixar espaço a nenhum tipo de especulação. Gerar também significa colocar alguém diante das próprias responsabilidades.
Nos últimos meses, sentimos como se estivéssemos debaixo d'água. Impressionado com a sensação de impotência que em algum momento parecia questionar a Igreja nas próprias razões de sua existência. É bem possível que não sejamos capazes de tirar uma verdadeira lição de tudo isso. Talvez sejamos como Jonas, que não aprendeu nada. Mas já ter sido fiéis no pouco, quando estivemos na retaguarda para levar as compras aos idosos e dar apoio aos médicos, pode nos garantir a humildade necessária para ter uma nova visão sobre o "muito" do futuro que se abre diante de nós. A Igreja não terá que enfrentá-lo simplesmente por si mesma. Mas sempre preocupada em ser realmente um “sinal” para todos. Terá que deixar os destroços no chão e recolher os tesouros que nesse momento ainda reluzem molhados pela maré que acaba de recuar.
O texto de Giuliano Zanchi ("Deixar os destroços, encontrar os tesouros. Voltar (também) ao serviço depois da maré de contágio") foi publicado como contribuição ao fascículo dos Percorsi Pastorali 2020-2021 da diocese de Cremona, intitulado Nell’oggi e nel domani di Dio.
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Deixar os destroços, encontrar os tesouros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU