10 Julho 2020
“O algoritmo é incapaz de liderar uma sociedade por muitas razões, uma delas, porque trabalha sobre o que existe, não cria destinos, nem cruza as margens do possível. Para isso, existe a política”, escreve Gonzalo Sarasqueta, professor, pesquisador e coordenador da Pós-Graduação em Comunicação Política e Institucional, Escola de Política e Governo, da Universidade Católica Argentina – UCA, em artigo publicado por TN, 04-07-2020. A tradução é do Cepat.
A COVID-19 não mudou a história, mas a acelerou. Muitas tendências prévias à pandemia se aprofundaram em apenas alguns meses. O trabalho remoto, os vínculos virtuais e o avanço do capitalismo cognitivo sobre o industrial são algumas das arrancadas tecnológicas que impactam na comunicação política e abrem um acúmulo de interrogações frente ao futuro.
O relatório digital do site DataReportal é contundente: o coronavírus apressou a passagem do mundo offline ao online. Em países como Brasil, Espanha e Estados Unidos, as estatísticas são significativas: 76% dos internautas – entre 16 e 64 anos – admitem estar utilizando mais seu celular, 57% confessam que estão vendo mais shows e filmes em plataformas de streaming e 47% reconhecem que passam mais tempo nas redes sociais. E embora seja fato que atravessamos uma situação excepcional, também é verdade que muitas destas alterações se incorporarão em nosso estilo de vida.
Para começar, é importante destacar que a política ingressa definitivamente em uma zona híbrida. É preciso estar presente no território, mas também na arena digital. O cidadão real pesa tanto como o virtual. Um toca, caminha, protesta e vota; o outro, ao contrário, googlea, navega, posta e dá likes. Os dirigentes deverão saber diferenciar as duas dinâmicas para interpelar e, além disso, discernir categorias como “seguidores” e “militantes”. Um ‘influencer’ não é um líder político. O desafio do dirigente público é muito mais complexo que o de uma figura viral.
Há algumas semanas, o presidente sérvio, Aleksandar Vučić, nos deixou um trailer do que poderá ser uma campanha eleitoral, em um tempo próximo. Cercado por telas com rostos de cidadãos e certa estética orwelliana, o candidato do Partido Progressista, que almeja renovar seu mandato naqueles dias, ofereceu um ato virtual de 360º. A distância física de seus militantes não o inibiu em absoluto. O púlpito, as mudanças de tom, os silêncios intencionais para os aplausos e a euforia estiveram presentes de todas as formas. Novos dispositivos, velhos oradores? Pode ser. O passado sempre volta.
Simultaneamente, consolida-se a gramática do ciberespaço. Os emojis, gifs e memes se afirmam como linguagem política paralela. E o discurso “telegráfico” compete com a narrativa tradicional de longo fôlego. Enquanto isso, emerge um cidadão com uma atenção contínua parcial, que cruza em “modo avião” o tsunami diário de informação e retém apenas o que o emociona. Cumpre-se a profecia do colunista do New York Times, Thomas Friedman, que, em 2006, advertiu que iniciávamos a mudança da era da informação para a era da interrupção.
E as coordenadas espaciais também estão mudando drasticamente. As fronteiras entre a esfera privada e a pública estão mais porosas do que nunca. Como destaca o consultor catalão Antoni Gutiérrez-Rubí, a divisão entre estes dois espaços começa a ser uma questão de planos audiovisuais. Quando fazemos um Zoom ou um Instagram Live, da cintura para cima se ativa o espaço público (penteamos os cabelos, usamos camisas, maquiagens, etc.) e da cintura para baixo preservamos o espaço privado (calçamos chinelos, shorts, meias, etc.). As convenções sociais e comodidades íntimas convivem no mesmo metro quadrado.
Em relação a isto, os líderes terão que entender o poder do visual. E não só por sua potência emocional, mas também por sua capacidade de síntese. As imagens são atalhos cognitivos. Em um contexto saturado de mensagens, as fotografias simplificam a interpretação da realidade. Por quê? Simples: comprimem significado, são fáceis de entender e, apesar dos truques de edição que aplicativos como Photoshop e Snapseed oferecem, ainda gozam de certa credibilidade. Em outras palavras, poupamos tempo e esforço.
A demoscopia digital é o tema mais afiado. E com razão. A pesquisa de opinião pública sem o consentimento social atenta contra o direito à privacidade. Por isso, urge oferecer um marco legal ao chamado big data. A armadilha é acreditar que estes problemas são exclusivos do primeiro mundo ou sequelas de séries como Mr. Robot ou Westworld. Não. O petróleo do século XXI são os dados. Carecer de uma posição frente à megamineração de dados é tão grave como não contar com uma normativa frente à mineração a céu aberto. No primeiro caso, deteriora-se a saúde da democracia, no segundo, a ambiental.
São mudanças difíceis de assimilar em tão pouco tempo. Mas é preciso abordá-las, sem entrar em um determinismo tecnológico passivo, nem em um voluntarismo néscio. A partir de uma perspectiva humanista e inteligente. O algoritmo é incapaz de liderar uma sociedade por muitas razões, uma delas, porque trabalha sobre o que existe, não cria destinos, nem cruza as margens do possível. Para isso, existe a política.
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No limiar da ciberdemocracia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU