19 Junho 2020
Um belo texto de Carlo Galli – “Epidemia, entre norma e exceção” – pode ajudar a compreender melhor o debate recente, suscitado pelas páginas fortes de Giorgio Agamben. O teólogo italiano Andrea Grillo reflete sobre esse artigo e sobre as suas implicações políticas, culturais, teológicas e litúrgicas, com a preciosa ajuda de Andrea Ponso nas páginas seguintes.
O artigo é publicado por Come Se Non, 16-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Andrea Grillo
Durante o debate iniciado após as posições expressadas por G. Agamben sobre a reação política, pública e cultural à “pandemia”, parece-me que merece um olhar de particular atenção a rica posição expressada por C. Galli, um dos maiores especialistas italianos em doutrinas políticas, que recentemente escreveu um texto importante sobre o tema da “soberania”. Tento indicar os pontos-chave da sua releitura da questão levantada por Agamben.
Uma síntese
a) O “estado de exceção” é uma criação “antiliberal”, que explica a ordem como “fruto da desordem”. A decisão soberana traz ordem pondo e impondo a desordem. A origem não seria a norma, mas sim o arbítrio da decisão soberana, diante da qual as “substâncias” propostas pelo liberalismo como obstáculo à soberania (direitos, corpos, mediações) permanecem inconsistentes. A raiz é o vazio de um niilismo da exceção. Assim, a própria diferença entre ordem e desordem, entre saúde e doença seria imposta e produzida pelo gesto soberano.
b) Nesse conflito, entre antiliberalismo que traz à tona e denuncia a violência original do estado de exceção, e o liberalismo que, em vez disso, pretende fundamentar acima de tudo os limites do poder, na razão e no outro, a pandemia trouxe uma clareza nova e surpreendente. Ou seja, mostrou que os dois “sistemas” – o liberal e o antiliberal, o da mediação e o da irrupção soberana e/ou revolucionária – podem conviver. E o estado liberal, sem clamor, altera profundamente o estatuto dos direitos, os tempos, os lugares da vida. E a desordem que se produz não depende da “ineficiência” do sistema (italiano), mas sim do “dispositivo de exceção” que gera com indiferença novas diferenças contínuas e sempre novas. Não com base na ideologia, mas sim em relação a eventos reais (uma epidemia não construída teoricamente, mas objetiva), as diferenças irrompem no corpo social, não com base no soberanismo, mas por exercício de soberania. “Isso significa, hoje, cidadãos reduzidos a corpos, governados e hierarquizados em nome da saúde, por uma política que se legitima através de ciência.”
c) O preço dessa condição é uma “redução”: vida acima de tudo. Sim. Mas a dos mais jovens antes da dos menos jovens. Ou a vida “em si”, isto é, a vida fora das relações, fora dos laços, fora do tempo e do espaço. Todas as funções não biológicas são traduzidas, deslocadas, virtualizadas. De algum modo, controladas ou controláveis. Por um lado, o “medo” e, por outro, a “ciência” funcionaram como “reguladores”. A política se deixou levar pelo primeiro e pela segunda.
d) Mas um fato é certo: “No governo da pandemia, há um concentrado de política moderna, dos seus axiomas, das suas estratégias, das suas aporias”. Isso, portanto, demonstra mais uma continuidade do que uma descontinuidade. Revelaram-se mecanismos típicos e próprios do estilo moderno de exercer autoridade e o poder. A emergência tende a se tornar “normal” e a se perpetuar. E a prontidão elástica surpreendente em “fechar” se torna uma inércia inelástica quando se trata de reabrir. Mas não são os direitos que resistem ao “poder soberano”, mas sim o lucro. Ao princípio de soberania, serve de contrapeso o princípio de desempenho. Mas capitalismo de controle e Estado de segurança podem se aliar, em uma “custódia” repleta de exceções e de anomia.
E Galli conclui assim:
“Naturalmente, mesmo que a pandemia e a sua gestão tenham revelado e acelerado processos e estruturas, não é totalmente irreal pensar que, a partir dos muitos desequilíbrios que estão se perfilando no horizonte, poderá emergir um imprevisto: a vontade de liberdade de uma sociedade cansada de viver dissolvida e pronta para estreitar laços significativos com base na vida concreta e nas suas reais dificuldades, não no medo, nem na vida nua nem na vida virtual. Um evento excepcional e, ao mesmo tempo, uma pulsão à normalidade, que, por uma vez, seriam não uma coação a repetir, mas sim um autêntico sopro de novidade.”
A análise proposta parece-me contribuir para superar uma série de “equívocos” ou de “miragens”.
O primeiro é, sem dúvida, a contraposição entre duas “perspectivas” – soberanistas e liberais – que releem de modo simplificado demais o impacto entre tradição política e emergência pandêmica. Enfrentar o desafio do vírus revelou mecanismos profundos da tradição institucional e da gestão política do consenso. Os direitos, à luz da “vida nua” e da “ciência”, podem perder consistência, até se tornarem “flatus vocis”.
Por outro lado, o estado de exceção torna-se claramente parte de uma “política liberal”. Sem cataclismos, sem ter que negar a realidade do contágio, sem implicar em uma “mistificação generalizada”, é certo que a gestão política transforma os sujeitos, introduz diferenças, estratifica as ordens, introduz formas cada vez mais refinadas de desordem. Na imprevisibilidade dos tempos, introduz outro motivo de invisibilidade.
O mérito de Galli, na minha opinião, consiste em ter “embaralhado as cartas”, encontrando razões de esperança onde, normalmente, ficamos preocupados, e razões de temor onde, em vez disso, estamos acostumados a confiar de modo talvez imprudente.
* * *
Andrea Ponso
Carlo Galli, nas suas fundamentais reflexões sobre a soberania e a situação atual no período do vírus, defende não só que os direitos podem perder consistência, mas também que, na soberania moderna – referindo-se à implacável, mas muito lúcida análise de Hobbes – são um “acessório” que talvez poderia nem existir, pois são o fruto de uma negociação totalmente contingente e concreta, uma espécie de convenção como a dos signos linguísticos; por outro lado, temos narrativas políticas e sociais, também elas produzidas na confusão que a própria ordem cria para poder se justificar e operar.
Em segundo lugar, alinhando-se fundamentalmente com a reflexão arqueológica de Giorgio Agamben, ele enfatiza a evidência da vida nesse contexto – evidência ou, melhor, revelação das práticas de poder que, desde sempre, pelo menos no que diz respeito à história a partir da modernidade, a informam e a reduzem a matéria biológica disponível e controlável.
Parece-me que nessa reflexão sobre a categoria totalmente fantasmagórica da “vida em si”, produzida pelo gesto soberano, mas também, é preciso dizer, por uma convicção generalizada que tem raízes metafísicas e também em parte católicas, chega-se a tocar um dos grandes problemas do Ocidente: uma espécie de tirania dos valores, desse valor em particular, que é posto no centro do debate apenas para nunca ser tomado na sua problematicidade e inaferrável complexidade; poderíamos ler a perpetuação desse “ídolo” como um sintoma de uma falta de unificação, de um desaparecimento da percepção do eu cenestético e carnal, para usar categorias fenomenológicas – algo muito semelhante, para dar um exemplo pé no chão, à coação a repetir do selfie.
A “vida em si”, como absoluto, praticamente desprovida de relações públicas que não sejam previstas e monitoradas pelas sociedades do controle, e igualada à vida nua, é gerida pela técnica administrativa (e não política) e pela médica, que chegam a se confundir. Nessa confusão, entra em colapso o próprio dispositivo de uma soberania em sentido positivo, aquela que Galli intercepta no movimento da “crise” como momento essencial de crescimento ou decadência, sem falar do desaparecimento da prática da autoridade como capacidade de fazer crescer – ou, melhor, essa capacidade de “fazer crescer” é reduzida ao biológico, à manutenção de uma existência capaz de renunciar a tudo em nome da sobrevivência, para estar pronta, por sua vez, a “tomar tudo” na dinâmica do mercado e da espetacularização generalizada.
Por trás da “cura”, quase não se encontram mais vestígios de escuta singular, mas apenas uma espécie de cultivação intensiva. A virtualização das relações interpessoais parece, portanto, virar daquela entre sujeito e sujeito àquela entre sujeito (administrativo/médico/abstrato) a “objeto” – e o sujeito reduzido a objeto é sempre passivo, fechado: não mais sujeito, portanto, e não mais ícone, janela aberta à transcendência (não necessariamente de fé), mas acomodada na representação, faminto daquela “papa de significados” aceitos criticamente que, de fato, o possuem e regulam o seu desejo.
O mérito de Galli, na minha opinião, é o de operar como uma espécie de transferência lacaniana, na qual o sintoma é levado a agir, é mostrado no seu desenvolvimento concreto, nos curtos-circuitos entre exceção/lei e anomalia: na esperança de desativar pelo menos um pouco a sua coação a repetir orientada apenas no sentido do “desempenho” e do “lucro”, em que soberania e capitalismo se aliam em algo de perturbador, precisamente por serem extremamente familiares.
Com que grande problematicidade – finalmente damo-nos conta – podemos nós, cristãos – que não somos chamados a viver em um mundo fechado, que estamos encarnados na história ou pelo menos devemos estar até a kenosis –, falar ainda acriticamente, por exemplo, da “festa” e da gratuidade doada da liturgia? Além disso, para permanecer no âmbito lacaniano, sabemos que o sintoma não pode desaparecer, assim como a soberania não pode desaparecer – mas pode pelo menos ser despotencializada, abrindo à possibilidade de uma relação diferente com ela e, consequentemente, com os outros. E, lembremo-nos, não se trata de uma “consciência” racional ou conceitual: em vez disso, é algo que acontece nos gestos e nas palavras, na divisão concreta dos tempos e dos espaços... ritualmente, poderíamos dizer. Revelá-la só é útil até certo ponto: em vez disso, é preciso vivê-la e tentar dar a ela uma nuance diferente, uma postura menos passiva.
Mas, talvez, também nesse caso, seja possível ver um vislumbre de luz: um vislumbre literalmente poético, isto é, capaz de trazer novamente para o jogo, no sentido profundo do termo (que também diz respeito à liturgia), os sinais, despotencializando a sua carga imposta a eles pelo sistema convencional, libertando-os dos significados para torná-los, sempre de novo, significantes e significativos no seu momento criativo.
A própria tradição, portanto, não pode ser demolida ou posta de lado, pois isso seria nada mais do que o jogo de criar uma desordem totalmente funcional ao mecanismo soberano da ordem: em vez disso, ela deve ser investida, habitada e vivida como uma caixa de ressonância e partitura na qual se possa tomar a palavra de forma individual e criativa – algo muito semelhante ao que ocorre na proclamação litúrgica da Palavra que se encarna no indivíduo e na comunidade em escuta todas as vezes com nuances diferentes, com novas e inesperadas epifanias de sentido que vão além da incrustação dos significados, também esta muito útil precisamente como trampolim a partir do qual se possa alçar voo todas as vezes.
Somos capazes de viver cristãmente, pelo menos em mínima parte, esse risco e esse jogo no rito e na nossa vida de todos os dias? Se não somos, é porque estamos espremidos na engrenagem espetacular e econômica do “novo”, da contínua e entediante reproposição publicitária das necessidades induzidas e do mercado. Contra essa velocidade, o ventre semiogenético do rito pode se tornar, precisamente através da espacialização e não do cancelamento simplista da tradição em favor do “novo” exterior, um feliz ponto de fuga “firme”, no qual o sujeito não é parcializado e dispersado pelo bombardeio midiático da novidade, para também se tornar vazio e, portanto, capaz de acolhida e de escuta. É a única forma viva de ob-audire que se pode fazer novo nascimento e nova passagem pascal, contra um estado de exceção da novidade como entediante imobilidade, fruto da hipervelocidade do mercado como equívoco liberal.
Uma fé que não leva em conta concretamente tudo isso, que não reencontre tudo isso no próprio corpo como sintoma é uma fé que carece da encarnação, refugiando-se em uma imunidade fantasmagórica e angelical, que nada pode nos dizer sobre Cristo, apesar de apoiar os seus valores.
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A política da pandemia: réplica a Carlo Galli. Artigo de Andrea Ponso e Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU