Vírus e fé: tripla correspondência com Agamben. Artigo de Andrea Ponso e Andrea Grillo

Foto: PxHere

06 Mai 2020

“Entrelaçamos as canetas, Andrea e Andrea, tendo como pano de fundo as questões levantadas pelas posições expressadas por Giorgio Agamben (nosso convidado de pedra e Comendador). O resultado foi uma ‘troca de cartas’ que traz à tona questões, argumentos e perspectivas de leitura da relação entre ‘cuidados sanitários’ e ‘vida de fé’. Propomos, na sua sequência original, assim como se sucederam, os textos de Andrea Ponso e de Andrea Grillo (o texto inicial, de Andrea Ponso, foi publicado em Pangea)", informa o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, Roma, ao publicar em Come Se Non, 05-05-2020, os comentários acima referidos.

 

Andrea Ponso é poeta e doutor em literatura pelas universidades de Macerata, na Itália, e de Lille, na França.

 

Eis os comentários.

 

O vírus, entre sepulcro e câmara fechada (Andrea Ponso)

Podemos ver a que se reduziu a nossa existência talvez precisamente nestes dias, mas em uma modalidade do ver que não é a imagem clara que temos diante dos olhos, mas, ao contrário, em que tudo ao seu redor está como que fora de foco e indistinto: acreditamos que somos a imagem clara, enquanto estamos mais próximos dos seus contornos desfocados, que, justamente, são indistinguíveis em nós.

 

Então, se quiséssemos dizer isso de modo dualista, porque é precisamente essa a condição em que estamos imersos, por um lado, a defesa do biológico até o fim – defesa que apertos se faz presa e gestão tecnopolítica, aceita cegamente ou imposta mais ou menos à força – e, por outro, uma abstração genérica e generalizante de dados sobre dados, na qual, como Illich já havia reconhecido, é precisamente a singularidade encarnada e concreta da vida humana, em todas as suas formas, que se transforma em mero simulacro – desencarnando-se nas curvas de previsão estatísticas das internações, dos contágios e das pesquisas ou propostas médico-científicas.

 

Poderíamos dizer que estamos suspensos e divididos entre o fechamento no sepulcro do mero corpo biológico de Cristo e o outro fechamento, repleto de medo e desorientação, dos discípulos naquele lugar em que o Ressuscitado entrará e não será logo reconhecido na sua plenitude de corpo e espírito, na sua irreprimível e incontornável possibilidade de vida que, é preciso reiterar, não nega a morte, pois todos os sinais estão no corpo ressuscitado, mas a inclui sem se deixar incluir e concluir nela.

 

Entre essas duas “salas”, o sepulcro e o lugar onde os discípulos estão reunidos – esta última, não menos sepulcral –, estende-se a zona cinzenta na qual nós vivemos hoje a nossa condição de seres humanos.

 

O que há nessa zona cinzenta? O que resta de nós, preservado ou privado? Quem verdadeiramente a atravessa sem se deter em um ponto ou no outro, a tecnologia? A política? O sagrado? Somos uma comunidade que descobre que o é no distanciamento social e na emergência sanitária ou, pelo contrário, é hora de nos darmos conta de que nunca fomos verdadeiramente uma comunidade, exceto nas representações que nos foram fornecidas pela retórica política e popular? O que nos impede de passar, sem dividi-los e sem parar neles, do sepulcro àquela sala onde os discípulos estão reunidos?

 

São apenas perguntas, deliberadamente apenas perguntas – contra toda suposta força de segurança, diante de qualquer protocolo operacional, diante de qualquer gráfico de probabilidades, diante de qualquer triagem médica, diante de qualquer autocertificação impossível. Tiremos as nossas máscaras de segurança, qualquer segurança mascarada, e, pelo menos, deixemo-nos infectar pelo contágio de uma demanda de desesperada esperança.

 

* * *

 

Leitura pascal e tensão biopolítica (Andrea Grillo)

 

Interpretar um “estado de exceção” não é fácil. É verdade que a imagem é desfocada. Focá-la é possível, mas há focos demais, e, assim, uma parte da fotografia está fora de foco. Tento enumerar os focos possíveis e talvez necessários.

 

a) Salvar a vida

 

Para salvar a si mesmo e aos outros, é possível toda graça e toda desgraça. Em um cinema lotado onde se grita: “Fogo!”, não é impossível caminhar sobre os corpos dos outros. Em uma sociedade em que se grita: “Infectado!”, o distanciamento necessário pode desencadear discriminação, culpabilização, mas também habituação, rendição, resignação, privatização.

 

Primum vivere, diz um primado antigo, que é a fronteira entre civilização e barbárie. Organizar culturalmente o primado da “não cultura” é um empreendimento. Mas o primado do “bios”, sem projeto, é regressão e morte.

 

b) Fechamento, clausura, distância

 

O #FiqueEmCasa impede a corrida do contágio. Dentro está a salvação, fora está a ameaça. Esse é um esquema de exceção. Nenhuma vida pode florescer se se corta a exterioridade. Todo crescimento, todo trabalho, todo amor, toda vocação são feitos da polaridade dentro/fora. Em longo prazo, morre-se de excesso de casa. Diríamos: a casa também é um contágio.

 

A dinâmica pascal prevê o fechamento: do sepulcro cheio e do cenáculo assustado. A descoberta do sepulcro vazio corresponde à necessidade de sair do cenáculo. A salvação do próprio corpo se compõe com o adeus ao corpo morto e com o encontro com o corpo vivo. A clausura não é defensiva, mas propulsiva e impulsiva.

 

Na tradição monástica, clausura não é principalmente fuga, mas intensificação da relação. A esperança de novas relações decisivas “externas”, “corporais”, “táteis” não pode tornar absolutos os cuidados sanitários, que hoje se impõem razoavelmente, mas que devem voltar ao seu papel não predominante.

 

c) Com o rosto coberto

 

Eu não te conheço, máscara. A defesa de si e do outro, que passa pela cobertura da boca e do nariz, altera o rosto. Não somos mais reconhecíveis e não reconhecemos mais. Assim, a distância física se une à distância emocional. Cada homem e mulher mascarado se torna uma mistura de festa e de rapina, sujeito “curioso”, “monstruoso” e “bandido”. O olho se surpreende, e o coração treme.

 

Não é fácil cumprimentar um sujeito cujo rosto está coberto, cuja mímica é impedida e oculta. Redescobrir o rosto “ao vivo”, fora de casa e fora da mídia. Não será imediato. E será sempre mediado demais.

 

Desfigurar o outro, não reconhecê-lo, em regime ordinário, é fácil e frequente. Em um mundo de máscaras, o reconhecimento se torna uma obra de misericórdia e quase um milagre moral.

 

* * *

 

Viver, crer, poder (Andrea Ponso)

 

Caro Andrea, inspiro-me nas suas considerações e tento imaginar e propor algo, outras reflexões, talvez arriscadas, talvez não totalmente sobre o tema, mas que espero que sejam um incentivo e estímulo ao debate e ao aprofundamento.

 

a) Comecemos a partir do seu primeiro ponto.

 

Se permanecermos na interpretação de Agamben, mas também na de Esposito, a “vida” a ser salva, de acordo com o sistema político-jurídico, não é o “bios”, mas sim a “zoé”: ou, melhor, é o ponto de indistinção entre bios e zoé. E é precisamente sobre o primado antigo do primum vivere que, como você sabe, de acordo com esses autores, desencadeia-se o poder.

 

Mas eu me pergunto: realmente consideramos o ser humano na concretude social e política em que ele está imerso nos nossos tempos como protagonista da liturgia, ou paramos em concepções da pessoa que nunca realmente integraram, embora criticamente, aquilo que a biopolítica e as outras reflexões filosóficas, antropológicas e sociais mais atualizadas nos dizem?

 

O próprio Guardini, parece-me, já convidava a esse risco positivo e inevitável quando dizia que o cristão dos nossos tempos “deve, ao contrário, superar a si mesmo com um esforço resoluto e se abrir àquilo que talvez ameace a sua própria natureza, assim como ela foi moldada pela história” (Das ende der neuzeit, p. 63) – especificando, depois, que o problema era precisamente o poder:

 

“A ciência como concepção racional da realidade e a técnica como complexo do novo ordenamento da ação, possibilitado pela ciência, imprimem um novo caráter à existência: o caráter do poder, ou seja, do poder em um sentido que chamaríamos de agudo” (Die Macht, p. 151).

 

Não chegou o momento, talvez, de novo, de repensar as categorias de pessoa e de poder também em relação à fé?

 

Agora, digo algo de que não tenho certeza e que precisaria de mais investigações e estudo: não é precisamente a figura de Cristo aquela que faz explodir essa tomada de poder naquela zona de indistinção, assumindo-a plenamente e, ao mesmo tempo, fazendo-a deflagrar, a partir de dentro, mediante uma recomposição simbólica dela?

 

Os dois pontos extremos do Verbo que se faz carne no nascimento, que é Verbo e, portanto, palavra e comunicação, mesmo quando é in-fans; e o Verbo antes crucificado e depois vida nua no sepulcro; e o Ressuscitado como abertura em que bios e zoé não estão mais divididos e as formas de vida estão tão em potência a ponto de transfigurar o próprio corpo de Cristo sem apagar os seus sinais da morte?

 

Depois, não se deve esquecer que, para Agamben, o estado de sacertas e de exceção não diz respeito somente àquele que é “banido” da comunidade como “matável e insacrificável”, ou seja, fora tanto do direito quanto do sagrado, mas também o próprio “soberano”.

 

Também neste caso, então, a figura de Cristo não pode reunir em si esses dois extremos em uma relação revolucionária, desativando no “rei” a potência e a violência, e no excluído a impotência e a finitude, embora trazendo em si mesmo, também neste caso, todas as características das duas figuras?

 

Naturalmente, são apenas hipóteses que deveriam ser mais aprofundadas, mas acredito que, para responder a Agamben, é preciso entrar em seu próprio terreno em profundidade, medindo-o, na medida do possível, com o evento cristão – já que ele mesmo entrou várias vezes nesses âmbitos sem levar em conta, de forma adequada, não apenas o rito, mas também a figura de Cristo.

 

Além disso, para um cristão, não é precisamente a figura do Filho quem “organiza” sem “organicizar” e censurar essa dificilíssima passagem? E não deveria ocorrer algo semelhante também no rito? Como podemos responder, também hoje na situação pandêmica, à terrível e docíssima injunção evangélica: “Quem salva sua vida a perderá, e quem perde sua vida a salvará”? Como podemos reconciliar o abandono (o banimento?) de Jesus na Cruz com a entrega ao Pai na perspectiva agambeniana e nos eventos que estamos vivendo hoje?

 

Romano Guardini, mais uma vez, poderia vir em nosso auxílio, em particular com a sua “oposição polar” e com a interpretação que reencontramos em “O Senhor”?

 

Segundo Guardini, “aquele que é sacrificado” coincide com “aquele que sacrifica”, se falamos de Cristo, sem, no entanto, atenuar ou neutralizar a tensão e a contradição polar entre esses dois âmbitos.

 

Esposito escreve a esse respeito:

 

“No mundo de Guardini, a Cruz de Cristo, a sua decisão, ocupa um ponto mediano entre a decisão de Deus e a do homem.Trata-se de uma relação assimétrica. A primeira é original, absoluta; a segunda, derivada, defectiva. Mas ambas, maximamente livres. Ou, melhor, cada uma liberta em razão da liberdade da outra” (“Categorie dell’impolitico”, p. 29)

 

Parece-me que precisamente essa tensão mantém unidos os dois polos que Agamben também cita, mas em uma modalidade diferente tanto da assimilação quanto da confusão, tanto da captura que exclui a nua vida, descarregando o poder político sobre ela, quanto de uma visão desencarnada totalmente fora da história em devir e do tempo concreto em ato – a capacidade, em suma, de manter dinamicamente juntas vida e formas de vida, o subjetivo e o universal, o racional e o seu além, a ação e a contemplação, o corpo e o espírito, a contingência e a transcendência, a lei e a liberdade.

 

b) O segundo ponto.

 

Sobre isso, estamos perfeitamente de acordo. Na verdade, eu diria que a clausura, entendida no seu sentido mais profundo, é um fechamento que abre – enquanto que, no caso que estamos vivendo, poderíamos falar de uma abertura para a defesa da vida que, na realidade, nos exageros que, a meu ver, estão sendo vividos, nos fecha; e essa “abertura” é basicamente midiática, retórica, desincorporada... basta pensar nos vários slogans que remetem à unidade e à relacionalidade precisamente mediada/midiática.

 

Para continuar a leitura pascal, poderíamos dizer que é como se o Ressuscitado tivesse dito: “Eu sou um espírito”: no fundo, tudo teria sido muito mais fácil, menos escandaloso, menos “tocante” no sentido concreto de ser invadido pela sua presença encarnada de corpo que não pode mais ser contido nas formas de vida conhecidas.

 

Do ponto de vista litúrgico, então, que sentido pode ter uma liturgia vista pela mídia? Talvez não seja senão o profundo desejo de não se envolver, a passagem do ergo-emocional para uma má espiritualização e intelectualização – e, também desse ponto de vista, não é assim, talvez, infelizmente, também em tantas liturgias nas quais participamos com um corpo que já está perfeitamente imunizado da relação concreta com a comunidade, que se detém, quando está tudo bem, na simples escuta das palavras, mantendo-se a uma devida distância de todas as outras linguagens não verbais e corporais que imporiam o tato, o paladar, o sentir fisiológico etc.?

 

Pode haver a graça da presença sacramental nesses casos? Podemos dizer que realmente fazemos “a comunhão” comunitária sem a nossa presença imersiva? O que resta da actuosa participatio?

 

Estamos em uma cômoda passividade que o vírus tornou evidente, mas que já era um problema antes. Posso ser pessimista, mas infelizmente eu sinto isso, e já o sentia mesmo antes desta emergência, senão em casos muito raros. Concentramos a nossa atenção no corpo e no gesto, na igual dignidade das linguagens rituais, mas talvez, repito, esquecemo-nos de investigar a atual situação sociopolítica e antropológica dos corpos de hoje.

 

c) Terceiro ponto.

 

A cobertura do rosto, concretamente, rouba-nos exatamente a reconhecibilidade como pessoas singulares e encarnadas, tornando-nos anônimos dentro de um mecanismo que pretende tornar o anonimato e a anomia uma lei e uma midiatização que nos torna massa indistinta no sentido de Canetti e totalmente sós, desprovidos de relações imediatas (rompendo aquela dinâmica necessária entre imediaticidade e mediação, que eu lembro muito bem que você investigou): tornamo-nos assim uma massa na qual cada um está sozinho – uma solidão que, porém, não pode ser vivida como tal, por ser simultânea e viralmente perturbada pela pressão da massa e das mídias de massa, pelas suas interconexões virais mais do que pelo próprio vírus, com consequências subjetivas e narcísicas inevitáveis, mas perfeitamente previstas e reabsorvidas pelo sistema sociopolítico e funcionais a ele no sentido da espetacularização já evidenciada, por exemplo, por Guy Debord e Paul Virilio.

 

Nós não somos reconhecidos, assim como o corpo do Ressuscitado não é reconhecido imediatamente, mas por motivos diametralmente opostos! E assim nos reconhecemos em um “povo”, no “vamos conseguir” etc. de um modo, no fundo, desresponsabilizante, em que a ameaça contínua da morte e do contágio, a excepcionalidade da catástrofe se torna cotidianidade gerida; assim como nos reconhecemos como protagonistas da liturgia, mas permanecendo passivos e perdendo o senso e o gosto do sacerdócio universal demandado apenas ao celebrante: não é muito semelhante a sermos heróis permanecendo sentados no sofá, como nos diz hoje a retórica conectada ao risco do vírus?

 

É claro, somos responsáveis ficando em casa, até certo ponto – mas responsáveis, e nunca realmente responsoriais, correndo o risco de nós mesmos nos tornarmos o vírus, um conjunto de micro-organismos micro-organizados e sem um rosto, sem uma verdadeira forma de vida real que não seja aquela típica dos vírus, ou seja, aquela que se apoia passivamente, para permanecer viva, em outros corpos sem nome e sem rosto.

 

* * *

 

A profecia da norma e a vigilância sobre a sua degeneração (Andrea Grillo)

 

Caro Andrea,

 

Gosto muito desse teu “ir até o fim”. Aqui a filosofia ajuda a poesia, e a poesia ajuda os olhos e o nariz, aguça os sentidos. Você vê e sente o cheiro de clarões de luz e cantos escuros, pontos cegos e o brilho de uma estrela.

 

Veja, lendo esta sua segunda parte – mas já na primeira eu tinha sentido a mesma coisa –, pensei em Homero. Sim, precisamente em Homero. Recentemente, tendo filhos que estudam a Ilíada, reli com Giovanni o duelo entre Heitor e Aquiles. Talvez, há 40 anos, nunca mais o tinha levado em consideração.

 

Mas uma coisa me chamou a atenção: o elemento visionário. Quando parte a lança de Aquiles, Homero assimila a ponta da lança à estrela de Héspero, que brilha na noite. Toda a poesia antiga e medieval, até Dante, usa assim a linguagem. Nada mais de semelhante nos modernos, de Ariosto em diante.

 

Caro Andrea, você raciocina sobre esses temas com essa força de semelhança e metáfora. E isso enriquece muito e aprofunda ainda mais. Gostaria de tentar não replicar, mas sim acrescentar outras imagens e outras metáforas. Vejamos.

 

a) A vida a ser salva e a vida a ser perdida

 

Como você faz muito bem no primeiro ponto, você tenta fazer com que a problemática que estamos vivendo – litúrgica e não litúrgica – entre em uma tensão positiva entre bios e zoé, entre dado biológico e símbolo vital. Aqui fica evidente o equívoco de Agamben: ler tudo o que aconteceu como “prevaricação biopolítica contra a vida em plenitude” é o fruto de uma abstração, tanto em relação à realidade, quanto em relação ao modelo que pretende interpretá-la.

 

Mas você, e com razão, reivindica a maior riqueza de Agamben em relação ao que ele mesmo disse. E é verdade. Mas não só: você também encontra um modo como, graças a Guardini, podemos ler em Cristo uma dinâmica complexa de “bandido/senhor” que encontra nos mecanismos da “sacralização” uma confirmação surpreendente.

 

Assim, cristologicamente, se deveria recuperar algo que Agamben tenta verificar “remoto Christo”. Essa é uma perspectiva séria e árdua: mas a diferença não é simplesmente a “fé”, mas sim a mediação. Assim, pelo menos, eu entendo.

 

b) A lógica do “ficar em casa” é preservativa. Mas o é até certo ponto. Existe, no ser humano, um elemento irreprimível, que é passagem: de fora para casa e de casa para fora. Em longo prazo, ficar dentro – assim como ficar fora – é desumano. Deprime e oprime a humanidade extrovertida. Uma nação introvertida por necessidade se perde.

 

Assim, uma retórica da casa – que, nesses casos, bem entendido, serve de suporte para a manutenção social da emergência – torna-se insidiosa no momento em que perde a evidência da relação externa como alimento da casa.

 

c) No fim, a máscara como “rosto público”. Uma desfiguração social. Um elemento interessante, que emerge ao longo das semanas, é que a máscara também é uma confissão comum de fragilidade. E, depois de ter impedido a saudação, em certos casos quase a favorece, desnudando, com a cobertura, a fragilidade de cada um e a necessidade comum de “ser cuidado”. Uma espécie de “aguilhão” assumido publicamente como um sinal da ferida que cada um é potencialmente para os outros e também sofre em si mesmo.

 

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Difícil liturgia e negação do rosto (Andrea Ponso)

Certamente, a perícope evangélica: “Quem quiser salvar sua vida a perderá, e quem perder sua vida por causa de mim a salvará” não pode ser usada como justificativa de uma egoísta necessidade de liberdade neste contexto de contágio; mas é igualmente verdade que ela pode se tornar uma preciosa bússola de mediação contra a excessiva proteção e imunização da vida, contra a pretensão tecnomédica de um poder sobre a vida que, nos nossos dias, passa pelas restrições totais da liberdade a promessas de onipotência. A reconciliação desses dois extremos ou, como diria Romano Guardini, oposições polares, mantendo-os na sua tensão viva, deveria ser, na minha opinião, uma das tarefas do cristão hoje.

 

a) A vida a ser salva e a vida a ser perdida

 

Como você bem diz, não tento apoiar passivamente as teses de Agamben nesse ponto, mas sim abri-las e problematizá-las para ver se é possível uma leitura diferente à luz de Cristo. E eu também acredito que há muita coisa em jogo precisamente na “mediação”, mas, sobre isso, eu acho que você tem muito a dizer, e eu gostaria de aprofundar justamente esse ponto.

 

Na minha opinião, resta o fato já reiterado de que, além de Agamben, o ser humano que nós consideramos como destinatário do rito é o ser humano de hoje que, consciente ou não, é atravessado e organizado também pelos mecanismos biopolíticos em ato e não pode se livrar de tais “mediações” e midiatizações “imediatamente” simplesmente entrando no espaço da liturgia e da própria festa.

 

O “tempo livre” da festa, por exemplo, não deveria ser livre, mas sim um tempo em que é necessário o trabalho consciente e concreto do tempo que se liberta em perspectiva festiva. Eu acredito que isso não estava muito longe do verdadeiro Baudrillard quando ele escrevia, em “A troca simbólica e a morte”, que

 

“O trabalho (também sob a forma de tempo livre) invade toda a vida como repressão fundamental, como controle, como ocupação permanente em lugares e tempos regulados, de acordo com um código onipresente. É preciso sistematizar as pessoas por toda a parte, na escola, na fábrica, na praia ou na frente da TV […] mas esse trabalho não é mais produtivo no sentido original: não é mais do que o espelho da sociedade, o seu imaginário, o seu princípio fantástico de realidade. Pulsão de morte, talvez. [...] Nesse sentido, o trabalho não se distingue mais das outras atividades e, em particular, do seu termo oposto, o tempo livre, que, como pressupõe a mesma mobilização e o mesmo investimento (ou o mesmo desinvestimento produtivo), é hoje, da mesma forma, um serviço prestado [...] Em suma, não é apenas a distinção imaginária entre trabalho produtivo e improdutivo que entra em colapso, mas a própria distinção entre trabalho e todo o resto" (pp. 28-30).

 

Talvez aqui Baudrillard exagere, mas não há dúvida de que essa intuição, para o bem ou para o mal, em maior ou menor grau, já entrou nas nossas existências profundamente e que, portanto, a dificuldade de viver o sentido profundo da festa, também da festa cristã dominical (assim como toda outra forma de positiva “inoperosidade” religiosa) também depende de tudo isso.

 

Portanto, quando se fala do símbolo como prática que mantém unida em uma relação semiogenética recíproca e necessária a troca entre imediaticidade e mediação, seria interessante entender o quanto dessa mediação é, por sua vez, mediado por aquilo que Baudrillard sustenta aqui, que, não por acaso, intitula a sua obra usando o termo “símbolo” e “troca”, mas virando-o em uma negatividade que usa o símbolo como atribuição de um “lugar” em que a singularidade encarnada do ser humano e das suas formas de vida se reduz a sinal no sentido linguístico-diferencial do indiferenciado e da intercambialidade proposta por Saussure. Se fosse assim, a comunidade seria reduzida a mera organização social.

 

Quanto de tudo isso carregamos dentro de nós mesmos e dentro da celebração litúrgica e da oração? Quanto de baixamente “econômico” se inerva nas nossas vidas, transformando-as em mercadorias cujo valor é dado somente pela troca e pela infinita intercambialidade mecânica? Sabemos, com efeito, partindo precisamente do Sábado hebraico, que a festa é algo que desconstrói não as ações em si mesmas, mas o fato de serem economicamente ligadas a um fim externo e quantificável: o Sábado hebraico não é desprovido de ações como poderia parecer, mas, pelo contrário, como diz o próprio versículo bíblico, é um “repousar para fazer”. Em que sentido podemos ler isso também no domingo e nos nossos tempos festivos?

 

b) A lógica do “ficar em casa”

 

A casa também é a raiz dos óikos e da economia, que se reduz a uma economia “doméstica” e domesticada, ao gerencial mais do que ao político: certamente ela preserva, mas apenas até se transformar em prisão ou museu – é então que, de lugar privado, torna-se lugar de privação, de fechamento à alteridade: uma espécie de “banimento” que, em vez da expulsão, se transforma em inclusão e prevaricação.

 

Como sabemos, da mesma raiz, deriva par-óikos, termo com o qual ainda hoje designamos as “paróquias”: o seu significado une a proximidade e o ser estrangeiro, a passagem e a abertura como movimento, como estar a caminho na concretude do tempo e da história. Mais uma vez, portanto, uma tensão dinâmica, sempre problemática, mas fundamentalmente positiva, que corremos o risco de assumir como óbvia ou hipostatizada precisamente na sua essência pascal.

 

Essa essência, por sua própria natureza, é “contagiosa” ou, pelo menos, deveria ser; e o vemos como um problema também nesta pandemia: fora ou dentro, não é uma alternativa, mas sim uma ideologização, sempre, e não apenas hoje.

 

Mas acredito que a força própria do par-óikos não está nos seus dois focos extremos, mas sim no seu centro; e a comunidade de fé, assim como o rito, deveria nos ensinar a viver essa intensidade mediana.

 

No entanto, através do desenvolvimento da técnica e das mídias, nós estamos sempre de alguma forma “fora” e, ao mesmo tempo, “dentro”: e é precisamente essa indistinção que muitas vezes nos impede de viver a intensidade da mediação.

 

Em uma sociedade “do risco” e da “previsão do risco” como constante, a alteridade é gerida e até “criada” preventivamente – literalmente pré-vista –, impedindo, de fato, ou tornando extremamente difícil uma verdadeira relação com a alteridade – e, ao mesmo tempo, propondo-nos uma versão forçosamente domesticada (e doméstica) dessa crise fundamental capaz de realmente nos questionar em todos os âmbitos da nossa vida. No nosso mundo, em suma, tudo é “paróquia” precisamente porque nada o é mais realmente.

 

No fim, a máscara como “rosto público”

 

Também com base no que eu tentei dizer mais acima, acredito que, com grande dificuldade, a máscara pode ser vista como você, com razão, entende: estou bastante inclinado a interpretá-la, pelo contrário, como indistinção e negação do rosto, quando não se torna algo pior, como o estigma da imunização e do medo, da suspeita e da delação.

 

Digo paradoxalmente que ela pode se tornar, sem que nos demos conta disso a sério, um instrumento de unificação social que, no entanto, funciona como divisão e contraposição: somos todos iguais, todos temos a máscara – mas, ao mesmo tempo, cada um é perigoso, que deve ser mantido a distância ou ser punido. Eis o paradoxo do distanciamento socializado.

 

O que você espera seria um esforço realmente necessário para fugir, a partir de dentro, desse modelo: não sendo mais, como eu digo frequentemente, ser-comum, mas sim ser-em-comum (algo que tentei desenvolver no meu artigo sobre o Eclesiastes, precisamente em relação à “fundação” de uma comunidade a partir não do medo ou da “propriedade”, não de um “mais”, mas sim de um “menos”, de um vazio, de uma condição de falta).

 

Pôr em comum o próprio estigma sem que ele seja fagocitado na indistinção e no medo do outro é uma tarefa alta, árdua, mas necessária, que, no entanto, deve fazer as contas com a complexidade dos nossos sistemas sociais e políticos, que, por outro lado, vão em outras direções.

 

O “privado” posto em público, além disso, é uma característica já muito conhecida das “sociedades do espetáculo”, que, precisamente mediante a exposição, o desapropriam, tornando-o funcional para a representação: o nosso ser significante, por mais que seja doloroso, feio, arredio, mas encarnado e concreto, é transformada em sinal intercambiável da representação, em significado – também e talvez sobretudo quando se trata de dores e de tragédias –, precisamente como acontece e aconteceu com a vergonhosa imagem dos caixões sem o nome dos mortos nesses meses. Vida como indistinção, e morte como indistinção: esse é um dos grandes riscos que não dizem respeito à pequena subjetividade a ser preenchida de significados e conceitos, mas sim à profundidade antropológica do humano, antes ainda de qualquer discurso de fé.

 

Tínhamos medo, mesmo em tempos insuspeitos, de beber realmente do mesmo cálice e de compartilhar realmente o mesmo pão partido; muitas vezes até nos incomodava tocar a mão do outro no sinal da paz... Agora fingiremos que reconhecemos na máscara o estigma da dor alheia, e talvez muitos farão isso justamente porque estão a distância e não há o perigo de encontrar realmente quem está na nossa frente ou quem nos cumprimenta... Passamos na frente do outro como acontece na parábola do samaritano e, no máximo, o olhamos sentindo compaixão, mas certamente não o tocamos e, difícil e fugazmente, dirigimos a ele as nossas palavras.

 

É claro que podemos rezar por todos, mas esse “todos”, como tentei dizer, corre o risco de abstração, corre o risco de se tornar um álibi cômodo demais também, especialmente nestes tempos que estamos atravessando.

 

* * *

 

Uma esperança verdadeira, sem desespero e sem presunção (Andrea Grillo)

 

A tentação “imunizante” das atuais referências àquilo que é “comum” parece ter se tornado hoje, efetivamente, muito alta. Mas eu gostaria de distinguir, na liturgia cristã, e também na ritualidade humana e civil – a da saudação e do olhar – não apenas um “ser de fato”, mas também um “ser de vocação” (Lacoste).

 

Obviamente, como sempre ocorre para esses conceitos universais, é preciso vigiar sobre o “truque” pelo qual, com uma definição, tranquilizamos a nossa consciência. O fato de os nossos ritos – precisamente todos eles – terem uma “potencialidade vocacional” não significa que eles o sejam “em ato”. Para que eles possam sê-lo, não é suficiente que formalmente “sejam postos”. Mas, nesse espaço potencial, esconde-se e revela-se uma alternativa, uma luz, uma transgressão, uma abertura, uma esperança.

 

Não devemos perdê-la como impossível – e isso seria desespero – e não devemos banalizá-la como disponível – e isso seria presunção. Aqui, penso que poderíamos descobrir que a parábola dos ritos não é simplesmente de “constituição do sujeito”, mas sim uma épica de “instituição da história”.

 

E essa consciência, embora pouco clara, já seria muito, para nós, aqui e agora, no meio de uma crise de futuro que nos perturba e nos atormenta.

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