16 Junho 2020
Thimothy Snyder, historiador do mundo contemporâneo, professor da Universidade Yale, autor de dois livros essenciais para entender o momento atual - Sobre a tirania e O caminho para o fim da liberdade -, considera que a democracia estadunidense atravessa um dos seus piores momentos e que a presidência de Trump é o governo de uma elite branca e autossuficiente. Conversamos com ele, pelo Facetime, sobre a violência racial e o autoritarismo que abre passagem nos Estados Unidos.
A entrevista é de Xavier Mas De Xaxàs, publicada por La Vanguardia, 15-06-2020. A tradução é do Cepat.
Trump conduz os Estados Unidos para um sistema oligárquico, autoritário, inclusive para uma tirania?
Sem dúvida. Trump conduz os Estados Unidos para a tirania. É um tirano clássico. Preocupa-se com o simbólico, no lugar do prático. Preocupa-se com os mitos, no lugar das realidades. Preocupa-se com sua imagem mais do que qualquer coisa. Sob sua administração, além disso, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres. É um oligarca e um autoritário que se sente muito bem na companhia de outros oligarcas e autoritários. É um insolente que não faz nenhum esforço para governar e, o que é ainda mais grave, não faz nenhum esforço para se conectar com os cidadãos, com o conjunto da sociedade estadunidense, mas apenas com sua base eleitoral, as elites brancas, os supremacistas.
O fascismo volta, então, a ser uma possibilidade nos Estados Unidos, como foi nos anos 20 e 30 do século XX?
O país está muito dividido, é verdade, mas não acho que o fascismo seja agora uma possibilidade nos Estados Unidos. Trump parece fascista porque sabe tirar proveito das táticas do fascismo, como a propaganda para esconder a verdade, como priorizar a oligarquia branca e como sempre procurar inimigos externos para justificar que nada pode ser feito de dentro para resolver os problemas. Soa fascista porque quer colocar a América em primeiro lugar, assim como fizeram os fascistas estadunidenses dos anos 30. Mas não é um fascista de verdade, porque não tem uma dimensão militar. Não quer levar os Estados Unidos à guerra ou repetir a experiência fascista dos anos 30 na Europa.
Trump parece que não pode governar sem avivar a desigualdade econômica.
Um dos objetivos da Administração Trump tem sido prejudicar a sociedade estadunidense. Isso foi feito com impostos regressivos que transferiram grande parte da riqueza para os muito ricos, e também reduzindo a atenção em saúde. Os Estados Unidos estão a caminho de ser o país mais desigual do mundo. Todos, exceto o 1% dos mais ricos, estão em pior situação e o sofrimento resultante é o que alimenta o mecanismo do autoritarismo e da tirania. Diante dessa frustração constante, o Governo não faz nada construtivo, apenas gera mais violência. Esse é o problema de fundo. A estratégia de Trump com a pandemia, por exemplo, levou a muitas mortes que poderiam ter sido evitadas. E proporcionalmente o vírus matou três vezes mais negros do que brancos.
Trump aviva eterno conflito racial.
É verdade, mas acredito que não vai dar certo porque muitos brancos, principalmente os jovens, compreenderam que o racismo não é apenas uma injustiça para os negros, mas é uma estratégia para espalhar a ideia de que nada pode ser feito para mudar as coisas, que tudo isso é inevitável, que a única coisa que podemos aspirar é contê-lo e que para isso nada melhor do que um sistema oligarca e tirano. Muitos brancos perceberam que esse tipo de racismo afeta não apenas os negros, mas eles também.
Na eternidade americana, como você diz, o inimigo sempre é negro.
Quando Trump fala das pessoas, não se refere a todos os americanos. Refere-se às pessoas reais, e diz assim, pessoas reais. É um grupo muito seleto ao qual os negros não pertencem. Ele afirma que a presidência de Obama foi uma aberração porque Obama é negro e se inventou a mentira, além disso, de que era estrangeiro para marginalizá-lo ainda mais. Para que os negros não façam parte das pessoas reais, que continuem sendo escravos.
Hoje, não há escravidão nos Estados Unidos, mas há segregação encoberta e marginalização dos negros e outras minorias. O número de negros encarcerados é assustador. Existem centenas de milhares de jovens negros na prisão, sem opção de receber educação e refazer suas vidas. Um em cada três homens negros acabará na cadeia. É desanimador. O sistema não apenas os mata, mas os aprisiona por toda a vida.
Os Estados Unidos são um dos países do mundo com mais prisioneiros. Existem mais de 2,3 milhões e outros seis milhões em liberdade condicional. Esse é o sofrimento adicional sobre o qual se justificam muitos autoritarismos. Muitos brancos podem se convencer de que precisam perder o poder aquisitivo, até a expectativa de vida - como já é o caso -, caso lhes sejam demonstrado que os negros estão em situação ainda pior.
Qual a semelhança entre um judeu alemão dos anos 1930 e um afro-americano de 2020?
Nos anos 1930, os Estados Unidos eram um país oficialmente racista. A população negra vivia segregada, sujeita ao poder dos brancos. Isso se passava inclusive com os militares negros. Hitler admirava as leis raciais americanas. De um ponto de vista histórico, o antissemitismo dos anos 1930 não é comparável ao racismo de hoje nos Estados Unidos. Mas dito isto, podemos ver que o antissemitismo nazista e o supremacismo branco nos Estados Unidos criaram cidadãos de segunda classe, sem os mesmos direitos.
Trump é um tirano solitário ou é a ponta de lança de um movimento mais amplo, de um trumpismo, uma nova ordem que sobreviverá a ele?
Trump não tem um partido, um movimento político próprio. Pertence ao partido republicano. Poderíamos dizer que sequestrou o Partido Republicano ou que o Partido Republicano foi sequestrado por seu populismo, porque viu a possibilidade de se tornar o partido hegemônico. Mais que isso, viu que é possível converter a democracia americana em um sistema de partido único. Mas Trump não tem uma força alternativa. A ideologia do trumpismo, além disso, é muito simples. Limita-se a perpetuar o status quo. Divide o país entre bons americanos e os maus americanos. Os bons, obviamente, são os brancos.
Trump tem, além disso, a habilidade para persuadir milhões de brancos de que as coisas eram melhores no passado. O americano médio notou, nos últimos quarenta anos, que sua vida foi se deteriorando e Trump o fez lembrar que a vida entre os anos 1930 e os anos 1960 era melhor. A desigualdade, então, não era um problema. Agora é e, além disso, o que fica em pé do sistema antigo está sob o assédio dos negros, latinos e mestiços. Trump não acredita que seja capaz de construir nada, nem mesmo um movimento ao seu redor. Seu propósito é buscar inimigos e destruir. A esperança que no resta é que o próprio partido republicano o destrua.
Que semelhanças você vê entre Trump e Putin?
A lista é longa. Não gostam da verdade, dos fatos comprovados. Gostam da propaganda e dos mitos. Ambos são oligarcas. Putin é muito mais oligarca, um oligarca rico, dos mais ricos do mundo. Talvez seja, inclusive, a pessoa mais rica do mundo. Sem dúvida, controla dezenas de bilhões de dólares. Trump, por outro lado, é um oligarca que certamente está falido, mas é um oligarca que quer ser como Putin. Trump e Putin acreditam em superpotências e não em colaboração internacional. Ambos, além disso, consideram que uma vez obtido o poder, o governo não serve para nada. Detestam o governo. Reconhecem que o povo tem o direito de viver bem, mas acreditam que o governo não pode fazer nada para ajudar o povo.
Putin ajudou Trump a vencer as eleições de 2016 e parece que voltará a fazer isso agora.
Sem dúvida. Na medida em que conhecemos mais detalhes da interferência russa nas eleições presidenciais de 2016, mais grave se mostra seu alcance. Os russos nunca deixaram de ajudar Trump. O esforço dos hackers do Kremlin tem continuado. Vemos isso na maneira como agitam as tensões raciais nos Estados Unidos, como agora espalham o medo de fraude eleitoral, que deve servir de desculpa para reduzir o direito ao voto dos pobres, os negros e outras minorias.
Trump parece determinado a dificultar ao máximo a votação por correio, porque diz que é potencialmente fraudulento.
Seu objetivo é favorecer o voto das pessoas que se beneficiam do status quo e da desigualdade e dificultar o voto dos que pedem mais reformas e mais igualdade. Trump trabalha para suprimir os eleitores e age com a ajuda dos estados republicanos, onde se redesenham as circunscrições eleitorais para isolar o voto dos democratas.
Então, você não acredita que as eleições presidenciais de novembro serão justas.
As eleições nos Estados Unidos são sempre injustas. A relação entre dinheiro e política é muito estreita para que possam ser justas. O que agora devemos nos perguntar é se as próximas eleições presidenciais serão especialmente injustas. Teremos uma eleição militarizada, por exemplo, com policiais e soldados nos colégios eleitorais, como sugere Trump, intimidando eleitores negros e pobres? Não acredito que cheguemos a esse extremo. Acredito que as eleições serão tão injustas como todas porque o dinheiro manda e muitos estadunidenses são impedidos do direito ao voto.
Trump disse em 2016 que, se perdesse, denunciaria fraude. É muito possível agora volte a fazer o mesmo se perder?
É verdade, mas não acho que essa estratégia tenha uma longa trajetória. Primeiro, porque todo mundo espera que aja assim, independentemente de ter dados reais para impugnar o resultado. Segundo, porque as eleições, como você sabe, são de responsabilidade dos Estados e não vejo os governadores republicanos assumindo que em seus Estados houve fraude. E terceiro porque um presidente que perdeu as eleições e que ainda tem dois meses no cargo não tem muito poder. É um pato manco. Não pode tomar decisões drásticas, radicais. O que pode fazer e certamente fará, e será horrível, é denunciar o sistema eleitoral e, consequentemente, deslegitimar a democracia nos Estados Unidos, algo que até agora nenhum presidente fez.
Acredita que Trump tentará mobilizar sua base eleitoral para que se rebele nas ruas? Fez isso agora contra os estados que estenderam o confinamento e pediu aos seus que saiam às ruas para combater os manifestantes antirracistas.
Sim, é verdade, e vimos pequenos grupos responderem a essas chamadas. Mas o grosso de seu eleitorado não se moveu. Acredito que Trump está perdendo boa parte de sua base, especialmente a mais religiosa e de mais idade. O que, sim, pode acontecer é um de seus apoiadores abrir fogo contra uma concentração antirracista. Mas acredito que se isso acontecer, será o fim de Trump. Um dirigente autoritário, um tirano, só recorre a esse tipo de violência se estiver convencido, cem por cento, de que se sairá bem, e eu não acredito que nem Trump, nem os estrategistas ao seu redor, estejam convencidos disso. Seria o caos. Estamos vendo os protestos mais graves do século até agora, com mobilizações massivas nos 50 Estados da União, e ainda não vimos nenhuma contramanifestação importante. Isso deve ser muito frustrante para Trump. Acredito que percebe que caiu em uma armadilha e está cada vez mais isolado.
Levantou uma cerca ao redor da Casa Branca.
É horrível a forma como mobilizou o Exército e ordenou à polícia que lançassem cassetetes e gases contra manifestantes pacíficos na Praça Lafayette de Washington, porque queria tirar uma foto em frente à igreja de Saint John. Negou a essas pessoas o direito de se expressar livremente, um direito que está na primeira emenda à Constituição e que todos nós, inclusive os republicanos, deveríamos respeitar.
Você já disse várias vezes que a Europa é a melhor esperança para o futuro do mundo. Qual é a sensação de ver tantos europeus se manifestando nesses dias em solidariedade ao movimento antirracista americano?
É muito bom que haja pessoas, em qualquer lugar do mundo, que saiam às ruas em defesa de princípios básicos como a igualdade racial, bem como contra a brutalidade policial. O que me interessa destacar sobre as marchas na Europa é que existem muitos europeus que reconhecem que há estadunidenses com quem vale a pena conversar e compartilhar ideais. Hoje em dia, parece que o mais fácil é criticar os Estados Unidos e dizer que é um país que não tem nada a ver com a Europa. As manifestações na Europa mostram que não é assim, que é possível formar uma frente comum, que continua existindo uma boa relação entre europeus e norte-americanos.
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“Trump e Putin acreditam em superpotências e não em colaboração internacional”. Entrevista com Timothy Snyder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU