10 Junho 2020
Na última segunda-feira, participantes da União Internacional das Superiores Gerais – UISG protagonizaram a primeira de uma série de sessões on-line sobre proteção infantil e sobre como as iniciativas de salvaguarda foram impactadas pela pandemia de coronavírus Covid-19.
A reportagem é de Elise Ann Allen, publicada por Crux, 09-06-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A Irmã Nuala Kenny, médica com experiência em pediatria e participante do comitê ad hoc de abuso sexual infantil da Conferência Episcopal Católica do Canadá, foi a principal palestrante da sessão de 8 de junho, focada na Teologia da Infância.
Composta de quatro webinários que se estendem até o início de julho, a série é organizada pela Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, pelo Centro de Proteção à Criança, da Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, pela linha de ajuda infantil italiana Telefono Azzuro e pela UISG.
Em seu discurso, Kenny disse que, embora ela não seja teóloga, o seu trabalho como médica – no qual tem visto repetidamente casos de abuso sexual infantil – “deixou claro que há questões espirituais profundamente enraizadas em jogo”.
“Sugiro que o contexto e a cultura de salvaguarda precisam vir em primeiro lugar, para que o trabalho sobre políticas e protocolos seja eficaz”, apontou ela, insistindo que nenhum esforço para lidar com a questão do abuso sexual infantil trará resultado se não houver também uma base espiritual para esses esforços.
Embora o abuso sexual infantil dentro da Igreja Católica realmente só tenha começado a causar problemas na década de 1970, ele vem acontecendo “ao longo da história”, segundo Kenny, que observou que o problema do abuso de poder na Igreja já fora mencionado em 306, durante o Sínodo de Elvira.
Fazendo notar que há anos o abuso, o silêncio e a falta de ação do comando da Igreja formavam o método de trabalho para lidar com a questão, a palestrante explicou que o impacto da crise a curto e a longo prazo será sentido ainda nos próximos anos.
O abuso clerical causa um dano duplo, continuou a religiosa, chamando estes perpetradores de “assassinos de almas”, porque não apenas o padre representa Deus, mas por causa disso a vítima perde seu “senso de consolo e cura espiritual”.
“O silêncio e a negação contínuos” na Igreja, “onde a verdade deveria nos libertar, agravam o dano”, disse ela, insistindo que “o abuso sexual de menores e vulneráveis, na sociedade, não se resume apenas a alguns maus sacerdotes. Estamos diante de uma questão sistêmica muito mais profunda”.
Apontando para estudos que identificam condições prévias aos abusos, Kenny disse que geralmente os casos originam-se em alguma forma de imaturidade psicológica ou psicossexual e em uma escolha – em algum ponto ao longo do caminho – de superar as inibições naturais de uma pessoa, aquele reflexo que diz que violentar um menor é errado, e de superar as formas de resistência da vítima.
Kenny disse ainda que, em seus anos atuando como médica, um dos fatores desinibidores mais comuns nos casos de abuso, em termos médicos, “é o álcool”. Segundo ela, isso vale tanto para o abuso doméstico quanto para o abuso infantil de qualquer tipo.
Para os padres, parte da superação da resistência da vítima está no “status especial” que muitas vezes recebem, dando a impressão de que estavam acima da moral.
São percepções como essa, disse a irmã, que devem levar a Igreja a questionar sua cultura interna, que é “imperial, hierárquica, patriarcal e clerical”.
“Nesta cultura, os menores às vezes são para serem vistos, não ouvidos; são propriedade paterna”, disse ela, observando que, embora a Igreja fez progressos significativos nos últimos 15 ou 20 anos, há uma tendência de se concentrar apenas em certas formas de abuso, enquanto se esquece do quadro geral.
“A cultura contemporânea está cheia de abuso infantil”, incluindo não apenas o abuso sexual físico, mas também a prevalência de pornografia infantil, o tráfico de crianças e de crianças-soldados, isto é, “será preciso termos uma cultura de prevenção muito séria”.
Ela também enfatizou a necessidade de uma conversão espiritual no processo de prevenção, insistindo que “as reformas estruturais são secundárias, a primeira reforma deve ser a reforma da atitude”.
Quanto ao desenvolvimento de uma Teologia da Infância, Kenny disse que os elementos-chave, de acordo com suas próprias reflexões pessoais, devem incluir a interação de Jesus com as crianças nas escrituras, o contexto imediato e específico em que a criança cresce, pesquisas científicas sobre crianças e desenvolvimento infantil e os elementos principais da teologia geral.
Jesus não apenas se recusa quando seus discípulos tentam afastar as crianças dele, mas cura inúmeras delas nos Evangelhos, e é de uma criança que ele pega os pães e os peixes antes de multiplicá-los, disse Kenny.
Conforme o desenvolvimento de uma teologia da infância aconteça, as pesquisas sobre crianças e infância, segundo a palestrante, tornar-se-ão cada vez mais importantes, principalmente quando se trata de estudar a cognição e as formas de aprendizagem, bem como o desenvolvimento da moralidade.
Kenny também salientou a importância da família na promoção do crescimento e desenvolvimento saudável dos menores, inclusive a questão da religiosidade. Ela destacou os desafios modernos que estes podem enfrentar em termos de manterem-se na fé, notando que a era digital, apesar de ter um grande potencial, “pode também fazer da religião apenas mais um canal, apenas mais uma opinião”.
Hoje, as crianças também estão crescendo com a imagem do “padre pedófilo”, disse ela, observando que, no passado, as crianças geralmente viam os padres como estando em pedestais, com um “status superespecial”. No entanto, atualmente elas crescem vendo manchetes sobre padres pedófilos e talvez não conheçam padres bons e santos, disse Kenny, insistindo que “esse é um problema grave para todos nós”.
Sublinhando a necessidade de aprender com os erros do passado, Kenny disse que a Igreja daqui para frente deve desenvolver uma eclesiologia clara sobre a vulnerabilidade, comprometendo-se não só em levar adiante a missão de cura em Jesus, mas também concentrando-se no cuidado dos fracos e vulneráveis.
“Precisamos romper o silêncio que caracterizou a crise de abusos sexuais, particularmente em nossa Igreja”, disse ela. “Somos chamados a denunciar as injustiças (...) e não para ficarmos sem fazer nada. Precisamos desenvolver o empoderamento para um diálogo significativo na Igreja” e nos comprometer “a falar pelos que não têm voz”.
Segundo Kenny, é necessário desenvolver uma “ética da vida” mais consistente na Igreja. Ela disse às vezes se sentir frustrada por ter amigos e colegas que reduzem a posição pró-vida católica a apenas questões de moralidade sexual e saúde reprodutiva.
“Os mesmos que marcham pela vida negam os casos de abuso e negam que eles tenham ido cometidos pelas mãos dos padres”, disse ela, falando a partir de sua própria experiência. Uma ética mais clara da vida, continuou, deve ir além do simples condenar os escândalos; precisa envolver a formação da consciência e a construção da virtude.
Kenny expressou a crença de que, embora a atenção à salvaguarda infantil possa ter sido desvirtuada devido ao coronavírus, “nunca voltaremos a ser os mesmos”. Ela também expressou a esperança de que a Igreja, ao enfrentar os desafios futuros, “seja mais justa, mais amorosa, mais atenciosa, mais comprometida com a proteção”.
Seguindo a apresentação de Kenny, a próxima sessão será realizada em 18 de junho com o padre alemão Hans Zollner, membro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores e coordenador do Centro de Proteção à Criança, como convidado especial.
Um webnário sobre o modelo de segurança relacional da proteção infantil será realizado em 30 de junho, com o último da série sobre o cuidado dos menores e vulneráveis pós-pandemia a se realizar em 6 de junho.
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Irmãs dão início a série de webinários sobre o combate ao abuso sexual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU