06 Junho 2020
Será o Poder Judiciário capaz de tomar as medidas constitucionais, necessárias e urgentes, para nos livrar desse calamitoso desgoverno? Indaga Fábio Konder Comparato, professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 05-06-2020.
Em várias ocasiões, o atual Presidente da República participou de atos públicos, convocados com o objetivo de derrubar a vigente ordem constitucional, de modo a instituir, em lugar dela, um regime político autoritário e antidemocrático. Em reunião ministerial realizada no Palácio do Planalto, em 22 de abril do corrente ano, cujo vídeo foi divulgado por decisão do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal, nossas instituições políticas foram vilipendiadas pelo Chefe do Poder Executivo e alguns de seus Ministros, em meio a palavrões e turpilóquios de toda sorte.
Por outro lado, em meio ao profundo sofrimento de toda sorte, provocado pela pandemia do coronavírus, o governo federal revela-se praticamente incapacitado para enfrentar essa terrível moléstia, havendo o atual Chefe de Estado manifestado constantemente sua despreocupação com ela. Ora, segundo estudos realizados em 48 países pelo Imperial College de Londres, a taxa de contágio da pandemia no Brasil é a maior do mundo.
É incontestável que tais atos e omissões caracterizam delitos de várias espécies.
Antes de mais nada, crimes de responsabilidade, conforme dispõe a Constituição Federal (arts. 85 e 86), pois tais atos atentam contra a Constituição Federal e especialmente contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”; assim como contra “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais” (art. 86, incisos II e III). Tais delitos, como sabido, foram definidos na Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950.
Além disso, os mesmos atos tipificam também, em tese, crimes contra a segurança nacional, notadamente aquele definido no art. 23 da Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983, ou seja, “incitar: I – à subversão da ordem política ou social; II – à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis; III – à luta com violência entre as classes sociais; IV – à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei”.
Quanto aos crimes de responsabilidade, entretanto, não se pode deixar de considerar que o respectivo processo não é judicial e sim parlamentar. Ou seja, ele tem início perante a Câmara dos Deputados, que admite a acusação pelo voto de dois terços dos seus membros, e se encerra no Senado Federal, que é o único órgão competente para proferir o julgamento. Trata-se, pois, de procedimento de caráter nitidamente político, no qual a interpretação formal dos ditames constitucionais pode ceder lugar a interesses puramente pessoais ou político-partidários.
Já o processo dos crimes contra a segurança nacional realiza-se perante a Justiça Militar, ressalvada, no entanto a competência originária do Supremo Tribunal Federal, nos casos previstos na Constituição (art. 102, inciso I, alíneas b e c). Foi exatamente por isso, ao que tudo indica, que o Procurador-Geral da República solicitou à Corte Suprema a abertura de inquérito para “investigar fatos em tese delituosos”, ocorridos durante a manifestação contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, no dia 20 de abril em Brasília, pois dela participaram o Presidente da República e vários membros do Congresso Nacional.
Sucede, no entanto, que além dos processos criminais, há também a possibilidade de se propor uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental perante o Supremo Tribunal Federal, com fundamento no art. 102, § 1º da Constituição Federal, dispositivo este regulamentado pela Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999.
Em primeiro lugar, porque tal ação judicial não tem caráter litigioso, não havendo, portanto, o confronto entre autores e réus. Trata-se de medida proposta com o objetivo de “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” (Lei nº 9.882/1999, art. 1º).
Em segundo lugar, o seu procedimento, em princípio, é mais célere que o de um processo criminal, havendo inclusive a possibilidade de o relator do processo deferir a medida liminar, “em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, ad referendum do Tribunal Pleno” (Lei nº 9.882, art. 5º, § 1º).
Em terceiro lugar, porque a decisão final “terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público” (Lei nº 9.882, art. 10, § 3º).
Por essas razões, o PSOL tomou a decisão de ajuizar a ADPF nº 686, sendo designada como relatora a Ministra Rosa Weber. A ação tem por objeto o reconhecimento de que o atual Presidente da República descumpriu abertamente dois princípios fundamentais de nossa organização constitucional, quais sejam, o princípio do Estado de Direito, inscrito no art. 1º da Constituição Federal e o princípio de que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196 da Carta Magna).
Concomitantemente, a ADPF nº 686 requer, nos termos do art. 5º, § 1º, da Lei n.º 9.882/1999, a concessão de medida cautelar, para a imediata proteção do povo brasileiro contra dano grave e de difícil reparação. Até o momento em que escrevo estas linhas, porém, ainda não houve decisão a respeito dessa medida cautelar.
Ouso dizer que o desdobramento dessa ação judicial dará um prognóstico seguro sobre o futuro político de nosso País. Será o Poder Judiciário capaz de tomar as medidas constitucionais, necessárias e urgentes, para nos livrar desse calamitoso desgoverno?
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A solução judicial. Artigo de Fábio Konder Comparato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU