04 Mai 2020
"A maneira de remediar a dolorosa ausência da despedida dos que morreram nesta pandemia existiria. Quem tem autoridade para fazê-lo poderia indicar um dia e uma hora para evocar e honrar a memória das dezenas de milhares de nossos compatriotas, sobretudo idosos, que nos últimos meses a praga levou embora. Um dia de lembrança e de despedida que chame ao compartilhamento de um drama que atingiu algumas famílias, mas diminuiu a todos nós", propõe Corrado Augias, escritor italiano, em artigo publicado por Repubblica, 29 de abril de 2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A pandemia que nos atingiu, o vírus que não desapareceu, mas está à espreita para nos atacar novamente, tirou o conforto de muitos de compartilhar um luto com aqueles que amam. Mas foi ainda pior: arrancou de nós um dos componentes fundamentais da nossa antiga comum civilização humana.
Os comboios de caminhões militares que levavam os corpos para longe de Bergamo desempenhavam uma função piedosa, mas olhando para aqueles comboios a memória ou associação mental inevitavelmente iam para todas as circunstâncias em que as "honras fúnebres", como são definidas no jargão burocrático, por alguma razão foram negadas. As valas comuns nos lazaretos, nos campos de batalha, nos campos de concentração; as valas comuns daqueles que não tinham dinheiro suficiente para um enterro, como aconteceu também com Mozart, as valas comuns das quais ainda existem vestígios em Paris, uma lembrança macabra dos anos do Terror.
Há uma razão para que, em cada época e cultura, um dos sinais da civilização seja o culto aos mortos, o último abraço, a cerimônia de despedida. Giambattista Vico em La Scienza Nuova:
"Observamos todas as nações ... conservam esses três costumes humanos: que todas têm alguma religião, todas realizam casamentos solenes, todas enterram seus mortos".
O cuidado dos mortos, o adeus extremo, as orações, o pranto compartilhado, a esperança - para alguns - de que a morte não seja mais que a passagem para outro e mais alto nível de vida - tudo isso está na despedida de um ente querido.
Toda vez que participei de um funeral católico, fiquei comovido com a negação da morte por parte do celebrante: você não está morto, passou para uma nova vida hoje, é algo nesse sentido. A evocação de um novo nascimento, a passagem para uma vida que nunca terá fim porque eterna. O maior consolo que pode ser dado àqueles que choram diante do corpo inanimado de um ente querido. Trata-se de sincera confiança ou o respeito convencional pela tradição, o alívio que os rituais podem dar aos que permanecem é inquestionável. Isso também eliminou a pandemia. Não é culpa de ninguém, é claro, mas o fato permanece.
Até poucos anos atrás, a cremação de cadáveres era praticamente proibida na Itália; dizia-se que a Igreja Católica se opunha porque a destruição com fogo poderia comprometer a ressurreição final. Mais compreensível, mais poética, a proibição da cremação no judaísmo: os mortos devem retornar à terra, isto é, ao mesmo pó do qual surgiram.
A maneira de remediar a dolorosa ausência da despedida existiria. Quem tem autoridade para fazê-lo poderia indicar um dia e uma hora para evocar e honrar a memória das dezenas de milhares de nossos compatriotas, sobretudo idosos, que nos últimos meses a praga levou embora. Um dia de lembrança e de despedida que chame ao compartilhamento de um drama que atingiu algumas famílias, mas diminuiu a todos nós. Partiram principalmente aqueles da geração que reconstruiu a Itália após a guerra, aqueles que viram a chegada da República e o nascimento da Constituição, aqueles que primeiro experimentaram um pouco de bem-estar após séculos de dificuldades.
Seria bom que, por um ou dois minutos em um determinado dia, ao som de uma sirene, os italianos parassem onde quer que estivessem, saíssem dos carros, chegassem às janelas, em silêncio, silenciosos, conscientes, participando da memória, mas também expressando a confiança que um novo começo será, mais uma vez, possível.
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Coronavírus, um dia para aqueles que morreram sós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU